50 anos do Massacre de Manguinhos
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50 anos do Massacre de Manguinhos

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

Livro sobre cassação de cientistas da Fiocruz expõe a repressão da ditadura militar

“É imprescindível advertir a sociedade para a defesa da ciência brasileira e da democracia”, diz historiador

Há exatos 50 anos, em 1º abril de 1970, sob a vigência do Ato Institucional nº 5, dez pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz – embrião da Fiocruz – foram cassados pela ditadura militar e tiveram seus direitos políticos sumariamente suspensos, causando perdas incalculáveis para o país. Analisar a conjuntura política e histórica do período que antecede um dos episódios mais sombrios na história da Fiocruz é o objetivo do livro ‘Massacre de Manguinhos: ciência brasileira e o regime militar (1964-1970)’ do historiador Daniel Guimarães Elian dos Santos, que será lançado em breve pela editora Hucitec.

O autor mostra que a cassação dos dez cientistas – Herman Lent, Haity Moussatché, Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Cid de Mello Perissé, Hugo de Souza Lopes, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba, Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque, Masao Goto e Domingos Arthur Machado Filho –, não foi um episódio isolado ocorrido no ano de 1970, mas “o ápice de um processo relativamente longo, tramado pelos órgãos de segurança, com base em histórico policial anterior a 1964”, e que contou, inclusive, com a participação de gestores da própria instituição, aponta o historiador. Um extenso conjunto de documentos analisado pelo historiador, incluindo itens das agências de informação e repressão disponibilizados à consulta pública apenas recentemente, mostra que além dos atritos pessoais e divergências internas, estava em disputa um projeto de ciência para o Instituto Oswaldo Cruz e para o país. Em tempos de revisionismos históricos e negacionismos científicos, o autor ressalta a importância de se lançar luz sobre esse episódio, não apenas para homenagear a memória desses cientistas, mas para valorizar a prática democrática para o desenvolvimento pleno da atividade científica e intelectual.

Confira a entrevista com o autor.

O que o motivou a pesquisar a história dos cassados de Manguinhos?

O interesse começou quando participei do projeto de organização de acervos do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz e tive a oportunidade de conhecer a trajetória desses cientistas, por meio de seus arquivos pessoais e profissionais: ofícios, cartas, manifestos de apoio da comunidade científica, processos administrativos e depoimentos para a investigação. Quando ingressei no mestrado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC, apresentei um pré-projeto com o objetivo de pesquisar sobre o cientista Walter Oswaldo Cruz. Filho mais novo do fundador da Fiocruz, assim como os cientistas cassados, Walter também respondeu a inquéritos, teve seu laboratório destruído e sua equipe dispersa. Talvez não tenha figurado entre os dez cassados apenas porque morreu antes, no início de 1967. A partir das primeiras orientações, no entanto, ampliei o escopo do trabalho para pesquisar o próprio episódio do Massacre de Manguinhos.

Logo no prefácio do livro, lemos que o golpe de 1964 mergulhou Manguinhos em um ‘ostracismo científico’, nas palavras da historiadora Nara Azevedo, pesquisadora da COC. Entretanto, a partir de 1930, já se pode perceber o enfraquecimento do modelo idealizado por Oswaldo Cruz ao criar o Instituto Soroterápico de Manguinhos em 1900, baseado em ensino, pesquisa e produção. Sob que condições isso se deu?

O Instituto Oswaldo Cruz desfrutava de prestígio nacional e internacional pelo sucesso obtido no combate da peste bubônica e das campanhas sanitárias contra a febre amarela e a varíola, por exemplo, durante a Primeira República (1889-1930). Apesar de contar com poucos recursos governamentais, a instituição] gozava de autonomia político-administrativa e também financeira, que lhe permitia comercializar a produção biológica, de onde tirava recursos que aplicava em pesquisa clínica. Com o projeto centralizador do primeiro governo Getúlio Vargas, em 1930, que reforçou a intervenção e coordenação governamentais das atividades de saúde no território nacional, o instituto perdeu prestígio político e gradualmente a autonomia financeira e político-administrativa. Após o golpe de 1937, com a reforma implementada pelo Ministério da Educação e Saúde Pública, o instituto foi proibido de produzir e comercializar qualquer produto veterinário, atribuição que passou a ser restrita ao Ministério da Agricultura. A verba pela venda da vacina da manqueira, produzida pelos cientistas Alcides Godoy e Astrogildo Machado, representava cerca de 30% da receita do instituto. Além disso, as áreas de produção e pesquisa foram separadas, diluindo, enfim, o modelo idealizado por Oswaldo Cruz. Os conflitos internos causados pelas divergências em torno do que deveria ser prioridade começaram a aparecer e, com o passar do tempo, foram acentuados.

Do golpe de 1964 até a cassação dos cientistas, em 1970, seis anos se passaram. Qual era a situação do Instituto Oswaldo Cruz nesse período?

A instabilidade interna e mais a perda de autonomia política e financeira e a escassez de recursos dificultaram a elaboração de um projeto capaz de integrar os diferentes setores do instituto. Paralelamente, a ideia de criar um novo ministério para a ciência surgiu e se fortaleceu no período pós-guerra, em que a ciência passou a ser vista como um instrumento importante para o processo de desenvolvimento e planejamento econômico em todo o mundo. Esse grupo exercia influência nas gestões de Amilcar Machado e Tito Cavalcanti (1958-1964), deixando à margem os que não se identificavam com a visão. Logo depois do golpe, com o Ato Institucional nº1, o então ministro da Saúde, Raymundo de Britto, afastou os pesquisadores que ocupavam cargos de chefia. Tem início, então, uma fase de investigações, delações e inquéritos com o objetivo de apurar a existência de ideias comunistas no instituto. Ao todo, houve três inquéritos na instituição, o último em 1966. Nada se provou contra qualquer dos pesquisadores. Foi por isso que, naquele 1º de abril de 1970, a notícia da cassação surpreendeu a todos.

As interpretações vigentes, incluindo o discurso dos próprios cientistas cassados, atribuem o Massacre de Manguinhos principalmente à perseguição pessoal. Esse foi realmente o motivo mais importante?

Mais do que questões pessoais, os conflitos entre os cientistas de Manguinhos giravam em torno de divergências acerca de um projeto de ciência para o Instituto Oswaldo Cruz e para o desenvolvimento da ciência no país. Se de um lado havia aqueles que defendiam a manutenção do compromisso com a saúde pública e vislumbraram na ascensão dos militares ao poder a oportunidade de colocar em prática seu projeto institucional, de outro, existia um grupo – do qual os cassados faziam parte – que reconhecia a atividade científica como instrumento importante para o processo de desenvolvimento nacional. Com o acirramento da Guerra Fria e do anticomunismo, diversos pesquisadores do instituto foram considerados subversivos por defender a ideia de um novo ministério e acusados de realizar atividades de oposição ao regime, praticar irregularidades administrativas e e de corrupção. Contudo, como já afirmei, nada foi provado.

No livro ‘Massacre de Manguinhos’, o pesquisador Herman Lent afirma o protagonismo do diretor Rocha Lagoa no processo de banimento. Qual foi o papel do diretor do Instituto Oswaldo Cruz no episódio?

O médico Francisco de Paula Rocha Lagoa era um pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz que construiu parte de sua carreira fora da instituição, em missões científicas no exterior e na direção da filial mineira, o Instituto Ezequiel Dias. Formado pela Escola Superior de Guerra (ESG), ascendeu ao cargo de diretor do instituto logo nos primeiros meses do regime militar. As condições institucionais para banir os cientistas surgiram assim que Lagoa assumiu o Ministério da Saúde em 30 de outubro de 1969. Alguns meses depois, em abril de 1970, ele consumou o seu propósito, quando a Presidência da República, ocupada pelo então general Emílio Garrastazu Médici, determinou, com base no AI-5, a aposentadoria e a suspensão dos direitos políticos dos cientistas de Manguinhos. Em 1978, em entrevista concedida ao jornalista Maurício Dias da revista Isto é, Rocha Lagoa negou qualquer envolvimento nas punições aos cientistas de Manguinhos. Segundo ele, ao assumir o ministério já havia duas comissões de inquérito investigando a atuação dos cientistas, ambas instauradas na gestão de Raimundo de Britto.

Historiador Daniel Guimarães Elian dos Santos, autor do livro Massacre de Manguinhos (Acervo pessoal do autor)

Há algum documento que comprove essa versão?

A documentação produzida pelos órgãos do sistema de informação do regime desmascara o papel tecnicamente ‘burocrático’ assumido por Rocha Lagoa e expõe sua participação fundamental no processo de perseguição aos cientistas do Instituto Oswaldo Cruz. Em minha pesquisa, tive acesso a um documento-denúncia, enviado aos órgãos de segurança e informação, no qual o informante, sem identificação, afirma que grupos subversivos do instituto pretendiam centralizar os órgãos de pesquisa visando influir nas diretrizes da política científica do país. Meses depois, a mesma frase, atribuída então ao diretor Rocha Lagoa, foi apresentada ao cientista Herman Lent por um agente do órgão de segurança durante um interrogatório. O fato nos revela a atuação ativa de Rocha Lagoa ao longo de todo o processo sofrido pelos cientistas.

Qual a representatividade dos cientistas cassados para a instituição?

À época da cassação, os dez cientistas afastados representavam em torno de dez por cento do quadro da instituição. Eram pesquisadores sêniores, por volta dos 50 anos de idade, que lideravam – e formavam – equipes de jovens pesquisadores em seus respectivos laboratórios. A cassação trouxe prejuízos enormes para a instituição. Linhas de pesquisa foram interrompidas, estagiários e alunos dispensados, laboratórios destruídos, coleções de insetos e helmintos dispersadas, acordos de colaboração com instituições de pesquisa nacionais e internacionais encerrados.

A cassação foi um episódio isolado durante o regime militar?

Longe disso. Nos primeiros anos do novo regime, os militares, a fim de conter o projeto revolucionário das esquerdas, intervieram nas universidades e instituições de pesquisa, prendendo, demitindo, instaurando inquéritos e sindicâncias. A Operação Limpeza cassou mandatos e suspendeu os direitos políticos de indivíduos considerados subversivos, com ‘ideias de esquerda’. Entre abril e junho de 1964, o novo regime realizou as primeiras cassações e instaurou os primeiros IPMs visando extirpar a corrupção e a subversão dos órgãos públicos e das instituições de ensino e pesquisa. Em 1965, o país testemunhou a demissão em massa de docentes da Universidade de Brasília que protestavam contra a demissão de alguns professores. Entre os anos 1968 e 1973, o AI-5 puniu 168 professores, pesquisadores e intelectuais, entre eles os dez cientistas do Instituto Oswaldo Cruz.

Qual a importância de se lembrar e estudar o Massacre de Manguinhos? Por que escrever um livro sobre isso?

No contexto atual que vivemos no país, de corte orçamentário para a Ciência e Tecnologia e da reprodução constante de um discurso anticientífico pelos atuais governantes do Brasil, é imprescindível advertir a sociedade para a defesa da ciência brasileira e da democracia. Como avalia Gilberto Hochman – historiador e professor da COC –, não haverá desenvolvimento científico e tecnológico voltado para a solução dos problemas nacionais sem memória, liberdade e justiça.

Por Jacqueline Boeachat para a revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos em parceria com o site História da Ditadura

 

Crédito da imagem destacada: Acervo COC/Fiocruz

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