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  • Foto do escritorEliza Vianna

A categoria é: viva

Atualizado: 17 de jan. de 2022

“Eu não quero ter razão, eu quero lucidez" Hebert Daniel

Há um ano vivemos em pandemia. O vírus exótico vindo de uma China que queremos distante pelos nossos eurocentrismos baratos e já tão fora de moda se aproximou. Primeiro pelos jornais, em sinais tímidos, como sugere o modelo teórico proposto por Rosenberg (1992) – considerado clássico para a área de história das ciências e da saúde – e aos poucos transformou-se em tragédia vívida e inegável, embora alguns ainda insistam em fazê-lo. Charles Rosenberg constrói seu modelo de análise das epidemias com base no livro A peste, de Albert Camus, e divide o percurso epidêmico em quatro estágios – ou quatro atos de uma peça teatral. Ainda que repetidos à exaustão pelos.as historiadores.as da saúde e das doenças, vale lembrá-los.


Segundo Rosenberg, o primeiro estágio de uma epidemia seria a negação, quando aos poucos se desvela o reconhecimento do problema; na sequência viria a tentativa de explicação para o fenômeno epidêmico, em que são mobilizados diferentes elementos morais, religiosos e científicos; o terceiro ato traria as respostas públicas dos atores sociais envolvidos: população civil, poder público etc.; e, por fim, tendo em vista que as epidemias são eventos com uma duração limitada, viria a reflexão sobre o acontecido.


Relembrar desse modelo teórico de compreensão no dia de hoje, quando somamos 12.220.011 casos confirmados da doença, 300.685 mortes – e, diante do número alarmante, até esquecemos a discussão sobre subnotificação (Araújo Neto, 2020) –, parece uma piada de mal gosto.


Há um ano nos vemos engasgados numa mistura confusa de negação e respostas moralizadas e ineficazes, e a dimensão da tragédia se aprofunda. Há um ano muito se falou de Rosenberg, muito se leu o livro de Camus; isto, é claro, dentro de uma bolha de acesso ao conhecimento e reflexão de um país cuja desigualdade grita cada vez mais alto. Há um ano, surgia o projeto História em Quarentena, que se esforçou para reunir diversos pesquisadores para debater e tentar compreender o processo todo que estávamos – e infelizmente ainda estamos – vivendo.


No dia da primeira live que fiz junto com Paulo César Gomes, intitulada “As doenças na história: epidemias e sociedade”, cercavam-nos medo e incertezas sobre o que viria. Do ponto de vista do conhecimento médico-científico sobre a doença, tivemos consideráveis e velozes avanços, entre os quais o mais destacável certamente é a produção de vacinas. Mas hoje, um ano depois, temos um cenário infinitamente mais avassalador. E a tendência é piorar.


Logo do projeto História em Quarentena (www.historiaemquarentena.com)

A nulidade da gestão pública; a insistência em um tratamento precoce ineficaz que consome dinheiro público e agrava o caos da saúde; a recusa em estabelecer condições para o isolamento social; a produção e o compartilhamento desenfreado de mentiras eufemizadas com a expressão estrangeira fakenews são alguns dos incontáveis problemas que tornam o Brasil hoje recordista de mortes pela doença. Mortes evitáveis, é necessário salientar.



Hoje, muitas de nossas incertezas já foram substituídas pela compreensão do cenário que nos cerca, mas o medo certamente se multiplica. Enquanto escrevo, contabilizo mentalmente os afetos que essa pandemia já me levou e trago a preocupação com quase incontáveis amigos e conhecidos que têm, nesse momento, seus parentes em situação grave.


O discurso da falsa dicotomia entre saúde e economia se reatualiza, fazendo com que trabalhadores.as no risco da fome iminente tenham de se arriscar pelo direito inventado de trabalhar. Há muito já esquecemos que o direito mais fundamental que sustenta a sociedade é o direito à vida. A farsa da democracia representativa nos deixa impotentes diante de notícias trágicas que refletem a precarização da vida em seus níveis mais extremos: entregadores passando fome enquanto carregam pratos caros para os privilegiados; uma educadora tentando proteger crianças de um tiroteio que atinge a escola e, ao mesmo tempo, manter o distanciamento recomendado à prevenção do vírus; profissionais de saúde esgotados tentando salvar vidas no chão do hospital; a classe média “esclarecida” repetindo o inútil mantra do “fique em casa” enquanto come a refeição trazida pelo entregador faminto. Acredito que mesmo os mais negacionistas percebam, em alguma medida, a dimensão de nossa tragédia. E saber que ela era evitável não muda o fato de que ela está aí e algo precisa ser feito para minorá-la.


O que talvez tenhamos esquecido em nossas tentativas de análise e compreensão – e aqui a primeira pessoa do plural é uma escolha que compartilha da certeza de que nossas reflexões não fogem aos pares – foi de nos colocar como sujeitos da história. Não como intelectuais salvadores das massas como muitos de nós gostariam, mas como pessoas de nosso tempo, cuja ação é tão ou mais importante do que a análise. Não acho honesto que um ano depois nós só possamos dizer “fique em casa”, tampouco que nossa principal participação política seja dizer o que quer que seja. O discurso é apenas parte do processo. Combater as desigualdades que nos cercam é imediato, dentro dos limites de nosso cenário de tragédia em ascensão. Ciente da metalinguagem hipócrita que inevitavelmente me acompanha, gostaria de propor aqui que não nos restrinjamos ao papel de profetas de um apocalipse já em curso.


Fácil dizer o que não fazer. O difícil é saber nossas reais possibilidades de ação dentro dos limites da democracia representativa; dentro de um sistema capitalista cada vez mais predatório; diante do cenário neoliberal que conseguiu aumentar significativamente sua capacidade de nos explorar sem precisar sair de casa. Nossas formas de mobilização soam envelhecidas e pouco convincentes. Além do mais, a mobilização coletiva em que tanto apostamos como maioria constitui um dos maiores riscos de transmissão da doença. Exigir a vacinação ampla e a renda básica certamente são as pautas mais emergentes e centrais, mas não podemos nos iludir com a eficácia das vacinas diante das novas mutações do vírus, nem nos contentar com um auxílio emergencial feito às custas do congelamento de salários e que não supre as demandas básicas diante da inflação crescente.


Vacinação. Divulgação / Prefeitura do Rio

Iniciei esse texto pensando em propor uma reflexão sobre a série Pose, que traz em um de seus episódios duas personagens contemplando um cemitério de covas anônimas de vítimas da epidemia de HIV/Aids, muitas destas vítimas invisibilizadas pelo estado constituíam afetos dos protagonistas da história. Vi-me na tentativa de repetir um lugar comum de transformar luto em luta. É bonito como palavra de ordem, mas como realmente colocar em prática exatamente agora? E como fazê-lo aqui sem assumir apenas um tom imperativo e vazio? Na série, assim como na epidemia de Aids, a mobilização foi a alternativa para não morrer em silêncio. Proteger os seus, recuperar a noção de comunidade, que também remete às sociedades de ajuda mútua dos princípios do movimento operário.


Queria que fosse possível reconstruir palavras de ordem que nos dessem força diante do caos. Uma das frases principais da série Pose é “a categoria é viva”. Lembrar a importância da vida foi uma das principais estratégias políticas no enfrentamento da Aids. Recuperar a importância de estar vivo mesmo que a negligência nos queira mortos. Pensar que ainda estamos vivos, mesmo que visualizar a vida em seu sentido pleno pareça cada vez mais difícil... No contexto da Aids, a mobilização coletiva foi uma saída viável para cobrar respostas públicas, mas a pauperização e interiorização da doença em muito contribuíram para que ela saísse da pauta do dia e continuasse matando. Hoje essa mobilização nos parece cada vez mais difícil. Será que o neoliberalismo já nos fragmentou a ponto de não ser viável retomarmos a ação coletiva?


Algumas das leituras que têm me acompanhado nesses tempos trágicos têm sido aquelas que tratam de outros apocalipses, como a narrativa que Chimamanda Adichie fez da guerra civil nigeriana em Meio sol amarelo, os depoimentos que Svetlana Aleksiévitch colheu com os sobreviventes do acidente nuclear da Bielorrússia em Vozes de Tchernóbil ou a história que Isabel Allende nos conta sobre o golpe militar no Chile em A casa dos espíritos. O elemento em comum que encontro em todos eles é o de que, diante do inacreditável, só nos resta recuperar o que acreditamos ser humanidade.


Aí vale a ressalva de Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo: o que a matriz europeia de pensamento nos vendeu como humanidade não tem nada a ver com ela e o humano só pode existir se rompermos com a falsa ideia de universalidade.


O que isso quer dizer na prática? Não sei. Para mim tem sido fazer o possível para diminuir o sofrimento de quem me cerca enquanto tento aprender como fazer mais. Manter o aspecto reflexivo que nos é inerente sem achar que as respostas serão teóricas. Ampliar redes, agir com as redes que temos para combater simultaneamente a fome, o vírus, a desinformação. E para você?


 

Referências


ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio sol amarelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.


ALLENDE, Isabel. A casa dos espíritos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.


ARAÚJO NETO, Luiz Alves. A notificação de doenças no Brasil: um problema histórico. Boletim Eletrônico da Sociedade Brasileira de História da Ciência. Número 24 - Junho 2020. Disponível em: SBPC. Acesso em 24/03/2021.


CAMUS, Albert. A peste. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.


KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


ROSENBERG, Charles. Explaining Epidemics. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.


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