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Foto do escritorJoão Teófilo

Imprensa e autoritarismos ontem e hoje

Atualizado: 9 de mar. de 2022

 

Regimes autoritários costumam manter relações conflituosas com veículos da imprensa que ousam questionar sua tirania. Foi assim com a ditadura do Estado Novo, comandada por Getúlio Vargas, e também durante a ditadura militar brasileira. Em outras partes do mundo, também é comum haver exemplos desse tipo regime, comprovando que, de tempos em tempos, jornais e jornalistas vivem sob riscos.

A visão de mundo que esses regimes buscam forjar perante a sociedade não tolera os discordantes, pois o autoritarismo não permite o contraditório. A censura e a autocensura são os dois mecanismos mais evidentes usados por governantes tiranos. Na censura, há mecanismos com ordens explícitas que determinam quais assuntos podem ou não ser veiculados; a autocensura, por sua vez, deriva do clima de perseguição que esses regimes impõem. Com isso, ao invés de ser feita por agentes externos aos veículos de comunicação – como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, criado em 1939 –, a censura é feita pelos próprios veículos, que assumem para si a tarefa de determinar o que é adequado publicar.

Em relação a esse último aspecto, é preciso pontuar que a divisão entre a autocensura e a conivência é bastante tênue. Isso porque, se, por um lado, veículos de comunicação podem ser um empecilho para a elaboração de visões de mundo que os regimes autoritários forjam, por outro, podem ser elementos essenciais para a construção de narrativas que corroboram essas visões. Seja por interesses financeiros, ideológicos ou ambos. É preciso destacar que muitos jornais e jornalistas foram simpatizantes dos regimes nazifascistas na Europa, nos anos 1930 e 1940, e das ditaduras militares latino-americanas, entre os anos 1960 e 1980.

Na ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, muitos jornalistas foram perseguidos, presos e mortos, sobretudo aqueles ligados à imprensa alternativa.[1] Tornou-se emblemático o exemplo do jornalista Vladimir Herzog, editor da TV Cultura e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), morto em decorrência de torturas sofridas no DOI-Codi de São Paulo, em 1975. Igualmente, é conhecido o caso do jornal O Pasquim, veículo da imprensa alternativa, cujas críticas à ditadura por meio do humor resultaram, em 1970, na prisão de quase todos os seus integrantes. O clima de constante perseguição era a tônica do momento.

Ainda em relação ao Brasil e à ditadura militar, o campo de apoios construído entre setores da imprensa foi arquitetado por veículos de destaque, a exemplo dos jornais O Globo, Estadão e Folha de S. Paulo. Estes periódicos representam o outro lado da relação entre a imprensa e o autoritarismo: a perspectiva do colaboracionismo. Nesses casos, a autocensura, por si só, não serve de elemento explicativo, sendo preciso encontrar nos valores autoritários compartilhados entre esses veículos e a ditadura uma das razões para uma relação amistosa.[2] Ainda que esses jornais, em algum momento, tenham vivido tensões com a ditadura por razões pontuais, o que prevaleceu foi uma relação de apoio.

Passadas algumas décadas dessas conjunturas históricas, vários países do mundo, incluindo o Brasil, voltam a assistir à emergência de governos de caráter autoritário. A ascensão da extrema direita tem nos proporcionado, mais uma vez, cenas assustadoras. Como era de se esperar, sucessivos ataques à liberdade de imprensa vêm ocorrendo. O Brasil, pelo menos desde 2013, tem sido atingido por uma onda autoritária que acabou culminando na eleição de Jair Messias Bolsonaro para a Presidência da República.

Manifestantes protestam em frente ao Congresso Nacional (Jose Cruz/ Agência Brasil – Wikimedia Commons)

Os exemplos históricos mencionados nos permitem lembrar que não há ineditismo na experiência política brasileira. No entanto, este momento possui um fator cujo impacto ainda é pouco conhecido: a internet. O ambiente de atual de violência no campo político está presente com enorme força no mundo virtual. Há vários jornalistas sendo atacados nas redes sociais, entre os quais muitos recebem inclusive ameaças de morte. As formas de intimidação são cada vez mais agressivas como, por exemplo, a divulgação de dados pessoais como maneira de constranger os profissionais da Comunicação, desencorajando a tomada de posicionamentos críticos.

Jair Bolsonaro e seus apoiadores, muito antes da campanha eleitoral de 2018, já demonstravam desprezo por jornais que publicavam reportagens que o criticavam. Com isso, veículos como a Rede Globo de Televisão, além do jornal Folha de S. Paulo, foram associados ao comunismo ou mesmo ao Partido dos Trabalhadores (PT), fazendo prevalecer uma polarização política que remete a um imaginário dos tempos da Guerra Fria.

Bolsonaro, que chegou ao poder com um discurso de combate à corrupção, não tardou a ser objeto de um jornalismo investigativo eficiente de periódicos como a Folha de S. Paulo e O Globo. Assim, teve início a exposição de uma série de episódios nada republicanos envolvendo não apenas Jair Bolsonaro, mas também sua família, cujos filhos ocupam cargos legislativos.

De funcionários fantasmas à apropriação indevida de salários de funcionários – o esquema de “rachadinha”, comandado por Fabrício Queiroz, braço direito da família Bolsonaro –, passando por relações escusas com a milícia do Rio da Janeiro – inclusive com milicianos suspeitos do assassinato da vereadora Marielle Franco –, Bolsonaro e os filhos estão envolvidos em uma série de escândalos que tem colocado por terra o discurso de honestidade e combate à corrupção.

Somam-se a isso os fatos que têm sido levantados pela CPI das Fake News, que tem evidenciado como atua a milícia virtual bolsonarista, ligada ao chamado “gabinete do ódio”. Este gabinete atuaria, dentro do próprio Palácio do Planalto, na publicação e veiculação de notícias falsas, inclusive para atacar representantes de outros poderes com os quais Bolsonaro tem protagonizado constante atrito, como os ministros do STF e os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre respectivamente. 

Os ataques que têm sido feitos à liberdade de imprensa extrapolam os espaços da Internet. Para além das milícias digitais, que disseminam notícias falsas como forma de se contrapor às reportagens sobre os escândalos envolvendo Bolsonaro, o presidente, cotidianamente, tem destratado os jornalistas que fazem a cobertura das atividades presidenciais. Diante de perguntas incômodas, Bolsonaro, quando não abandona as entrevistas sem nada responder, se comporta de modo nada cortês, para não dizer arrogante. Em certas ocasiões, diante de repórteres e apoiadores fanáticos que se aglomeram em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro traz consigo reportagens negativas sobre seu governo para dizer que são mentirosas. Na verdade, o presidente ataca seus opositores para deslegitimar qualquer informação que não seja elogiosa a ele ou a seu governo.  

(Marcello Casal Jr/ Agência Brasil)

Esses ataques se ampliaram na atual crise sanitária causada pelo coronavírus. Comportando-se como um negacionista da pandemia, buscando sempre minimizar seus efeitos e a gravidade do vírus, Bolsonaro tem buscado desqualificar o trabalho de veículos que fazem a cobertura sobre o avanço da doença. Suas atitudes abrem espaço para a desinformação, contribuindo ainda mais para aumentar a crise no país, cujo número de infectados e mortos não para de crescer.

Sua horda de fanáticos, que endossam a política antiquarentena do governo federal, costumeiramente sai às ruas exigindo o fim do isolamento social, além de apoiar movimentos que pedem a instauração de um novo AI-5 e o fechamento do STF e do Parlamento. Nessas ocasiões, os ataques à imprensa ganham outra dimensão, igualmente violentos, com agressões físicas contra repórteres que fazem a cobertura dessas manifestações. Estimulados pelo clima de ódio à imprensa alimentado pelo governo, os apoiadores de Bolsonaro, por exemplo, agrediram, no início de maio, um repórter fotográfico do jornal O Estado de São Paulo, que foi derrubado no chão, chutado e levou murros na barriga. Em meados deste mês, agrediram uma repórter da TV Bandeirantes na cabeça com um mastro de bandeira. Mais recentemente, um repórter cinematográfico da TV Integração, afiliada da Rede Globo, foi agredido em Barbacena-MG. As imagens desses episódios circulam amplamente pela Internet.

Casos como esses não podem ser compreendidos como pontuais ou circunstanciais. Os efeitos desses ataques têm se refletido no ranking sobre liberdade de imprensa feito pela ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF). O Brasil caiu pelo segundo ano consecutivo, passando a ocupar a 107ª posição entre 180 países listados, mantendo a tendência de queda. A RSF alerta que essa queda deve permanecer na medida em que Bolsonaro seguir incentivando ataques à imprensa.[3]

Tornou-se famoso nas redes sociais um vídeo, retirado do documentário Céu Aberto, de João Batista de Andrade, em que o general Newton Cruz discute com um jornalista, mandando-o calar a boca, gesto que Bolsonaro repetiu recentemente. O episódio envolvendo Newton Cruz, ocorrido nos estertores da ditadura, nos lembra muito o Brasil atual. No vídeo é possível ver que militares detém o jornalista agredido, que é obrigado a pedir desculpas a Newton Cruz na frente dos demais colegas que cobriam a cena. Imagino que este gesto autoritário seja o sonho de Bolsonaro.

Preocupa que os episódios recentes caiam no campo da banalização. Bolsonaro tem perdido apoio, como demonstram as pesquisas de opinião. Contudo, mantem-se fiel a ele uma parte de seu eleitorado que é justamente a mais radical, e que tem perpetrado esses e outros atos envolvendo agressões físicas, não apenas contra jornalistas. A depender do desenrolar dos acontecimentos atuais, alimentado por uma crise que combina os âmbitos político, econômico e sanitário, é possível que cenas assim se repitam, tornando ainda mais arriscado o trabalho de jornalistas no Brasil atual.

Neste texto, busquei articular duas dimensões temporais para falar sobre a liberdade de imprensa, mais apropriadamente sua ausência. Não quis mostrar que o presente repete o passado. No entanto, existem elementos autoritários que não são inéditos e estão inscritos na cultura política brasileira de maneira duradoura, emergindo em momentos de crise. Fica claro que, seja no passado ou no presente, líderes autoritários não toleram uma imprensa livre, e que tentativas de ferir a liberdade de expressão representam um forte indício de que a democracia se deteriora.

 

Notas:

[1] Cf. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2003; AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru, SP: Edusc, 1999.

[2] TEÓFILO, João. Nem tudo era censura: imprensa, Ceará e ditadura militar. Curitiba: Appris, 2019.

 

Crédito da imagem destacada: Divulgação

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