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Foto do escritorGraciella Fabricio da Silva

Breves considerações sobre a Base Nacional Curricular Comum e o ensino de História.

Atualizado: 13 de abr. de 2022

 

Na última semana, o Ministério da Educação (MEC) divulgou a mais recente versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Segundo o texto sobre a BNCC, apresentado no site do MEC:

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece os direitos, os conhecimentos, as competências e os objetivos de aprendizagem para todas as crianças e adolescentes brasileiros desde a Educação Infantil até o Ensino Médio. Ela está prevista na Constituição brasileira, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e no Plano Nacional de Educação (PNE). É um documento normativo, uma política do Estado brasileiro.

A Base será referência obrigatória para a elaboração dos currículos nos estados, nos municípios, na rede federal e nas escolas particulares. Pode-se afirmar que a Base estabelece o ponto aonde se quer chegar, enquanto os currículos traçam o caminho até lá.

A implementação da Base vai assegurar a igualdade de aprendizagem, essencial num país como o Brasil, onde há tantas desigualdades entre as escolas. Garantirá também a equidade, isto é, o direito de aprendizagem de todos os alunos.[1]

Governo Federal apresenta nova BNCC (Imagem: Reprodução Internet)


Para compreender o que a BNCC significa, bem como o seu impacto, é necessário apresentar um breve panorama sobre a história da educação no Brasil, de modo a realizar uma contextualização da base e da política educacional como um todo.

Breve histórico sobre a educação no Brasil

As finalidades e objetivos da educação são diretamente influenciados pelo momento histórico, o que faz com que variem de um contexto a outro. Uma série de fatores (sociais, políticos, econômicos) interferem na determinação do que será ensinado e aprendido. Tendo isto em vista, observa-se que, em todos os períodos históricos, as finalidades da educação estiveram entrelaçadas aos interesses econômicos predominantes.

Desse modo, se, no período colonial, marcado pelo modelo agroexportador baseado na exploração do trabalho escravo, a educação dos grupos subalternos não fazia sentido aos olhos dos grupos dirigentes, nos períodos posteriores, a instrução das classes populares foi ganhando cada vez mais espaço no debate político. Contudo, foi somente a partir da década de 1930, com o avanço da política industrial, que a educação dos trabalhadores ganhou contornos mais definidos em termos de política de Estado. O objetivo era formar mão de obra necessária ao trabalho na indústria. Nesse contexto, começou a se delinear a tendência a se investir na formação profissionalizante, a qual adquiriu contornos mais explícitos durante o período da ditadura (1964-1985), com a Lei 5.692/71. Neste período, predominou a ideia de profissionalização compulsória ainda no 2º grau (correspondente ao atual Ensino Médio).

1º Observadas as normas de cada sistema de ensino, o currículo pleno terá uma parte de educação geral e outra de formação especial, sendo organizado de modo que:

a) no ensino de primeiro grau, a parte de educação geral seja exclusiva nas séries iniciais e predominantes nas finais;

b) no ensino de segundo grau, predomine a parte de formação especial.

2º A parte de formação especial de currículo:

a) terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, no ensino de 1º grau, e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau;

b) será fixada, quando se destina a iniciação e habilitação profissional, em consonância com as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista de levantamentos periodicamente renovados[2].

Imagem: Unplash


A ideia de educação para o trabalho vinha acompanhada de uma formação que tinha por finalidade não apenas o treinamento de mão de obra em si, mas também forjar um certo tipo de cidadania, voltada ao fortalecimento de valores como disciplina e nacionalismo. Em outras palavras, a educação desenvolvida dentro desses parâmetros era revestida de um acentuado caráter conservador. Ela não tinha o objetivo de promover emancipação social, mas apenas reforçar o modelo de sociedade existente, por meio da manutenção da hegemonia burguesa e da submissão dos trabalhadores ao capital, tanto nacional como internacional.

Esse modelo de educação vem sendo aprimorado e é o que tem prevalecido desde então. Isso vem ocorrendo por intermédio de uma estreita relação com o capital internacional, na qual o Brasil ocupa uma condição dependente. Durante o período da ditadura iniciada com o golpe de 1964, esse entrelaçamento entre capital nacional e capital internacional se manifestou através de uma série de acordos firmados com órgãos internacionais – principalmente os de origem estadunidense – para investimento em diversas áreas, inclusive a educação. Entre 1964 e 1968, foram firmados diversos convênios entre o Ministério da Educação e a United States Agency for International Development (USAID) para promover a cooperação financeira e a assistência técnica a escolas e universidades brasileiras. A partir da década de 1970, acentuou-se a interferência do Banco Mundial na elaboração das políticas educacionais em diversos países, inclusive o Brasil. Mesmo após a redemocratização, os sucessivos governos brasileiros auxiliaram a intensificar essa interferência, por meio da assinatura de uma série de acordos com a instituição. Conforme pode ser depreendido a partir da leitura e análise dos documentos elaborados pelo próprio Banco Mundial, a educação é compreendida como uma forma de “reduzir a pobreza” por intermédio da elevação da produtividade dos trabalhadores.

A educação é a pedra angular do crescimento econômico e do desenvolvimento social e um dos principais meios para melhorar o bem-estar dos indivíduos. Ela aumenta a capacidade produtiva das sociedades e de suas instituições políticas, econômicas e científicas e contribui para reduzir a pobreza, acrescentando o valor e a eficiência ao trabalho dos pobres e mitigando as consequências da pobreza nas questões vinculadas à população, saúde e nutrição (…). (Banco Mundial, 1992, p. 2 apud Figueiredo , 1998, p. 1126)

(…) é certo que as taxas mais elevadas de repetência e consequentemente evasão entre crianças de grupos de baixa renda são um dos principais fatores que contribuem às disparidades de renda no Brasil, e também é um empecilho à produtividade do trabalho e ao crescimento econômico. (Banco Mundial, 1993, p. 23, idem)

(…) A educação é um importante instrumento de promoção do crescimento econômico e da redução da pobreza. (…) A educação pode ajudar a reduzir a desigualdade, proporcionar novas oportunidades aos pobres e, consequentemente, aumentar a mobilidade social. (Banco Mundial, 1995, p. xv-xviii, ibidem)[3]

Imagem: Unplash


Isso significa que, nessa perspectiva, o investimento em educação tem um caráter compensatório, cuja finalidade é manter os níveis de pobreza dentro dos limites suportáveis, de uma forma que não ameace o desenvolvimento capitalista. Em suma, sob a perspectiva das relações de dominação de classe no regime do capital, o financiamento de projetos educacionais tem por finalidade servir como uma forma de controle da população, já que não há nenhuma preocupação explícita em dissolver as desigualdades sociais – manifestas, inclusive, no campo educacional.

Uma educação que serve de instrumento à dominação e à intensificação e extensão da exploração burguesa da classe trabalhadora tem sido, então, o modelo de educação que prevalece no Brasil.

Tendo em vista a continuidade do processo de expansão capitalista, pode-se afirmar que a Base Nacional Curricular Comum está inserida em um contexto em que a educação tem por finalidade aumentar a produtividade da mão de obra. Esse aumento de produtividade não se traduz necessariamente em melhoria das condições de vida e nem na ampliação de direitos da classe trabalhadora brasileira. As recentes medidas anunciadas pelo governo federal, em relação à Previdência Social e aos direitos trabalhistas, sinaliza que não há qualquer vinculação entre os objetivos estipulados no texto da própria BNCC e a realidade vivida por milhões de pessoas no país. Apenas descolados da realidade concreta da maioria da população brasileira e da própria educação brasileira é que os princípios explicitados na BNCC fazem sentido, o que a transforma em um mero ideal a ser atingido.

Longe de constituir uma forma de melhorar a educação, através da utilização da “aprendizagem como estratégia para fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades”[4], a BNCC é, na verdade, uma forma de controle, inclusive da atuação do professor. Professoras e professores têm sua autonomia limitada e vêm sua atuação restrita a aplicação de conteúdos e avaliações pré-estabelecidos, os quais, muitas vezes, não condizem com a realidade na qual eles, a escola e a comunidade escolar se inserem. Busca-se, com isso, instituir um pensamento único – o que, no caso da BNCC, contradiz a finalidade de valorizar a pluralidade e a diversidade.

A História no currículo escolar da educação básica

O contexto histórico também diz muito sobre os conteúdos a serem ministrados em cada disciplina. Isso significa que o ensino de História não está isento das interferências da configuração histórica em que ele ocorre. O próprio processo de consolidação da História como disciplina escolar o explicita. Enquanto tal, ela surgiu no século XIX, na França, e possuía uma forte apelo nacionalista. O objetivo do estudo do passado era a elaboração de uma genealogia da nação.

Com a BNCC recentemente apresentada pelo MEC não é diferente. Observa-se forte influência do pensamento liberal. Isto fica notável na elaboração do que será ensinado aos estudantes do Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano). Nessa etapa, todo o conhecimento histórico tem por base a noção de sujeito, ou seja, a de indivíduo. A partir daí, toda a perspectiva de ensino de História é elaborada a partir de círculos: do indivíduo, parte-se para a abordagem sobre a família e a escola para apenas então abordar noções de temporalidade e outras temáticas relativas ao conhecimento histórico propriamente dito.

Para o Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano), estabelece-se a cronologia como elemento norteador do ensino de História ao longo de todo o ciclo (não foi apresentada a versão sobre o Ensino Médio). Aqui, também, observa-se uma orientação ideológica bem definida. Predomina, no documento, um forte viés tradicionalista, expresso no privilégio concedido à ordenação cronológica segundo o curso da história europeia (Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea).

A ideia de organização curricular segundo a cronologia é própria do século XIX, quando houve a consolidação da História enquanto ciência. Acreditava-se que a ordenação dos fatos segundo a cronologia seria capaz de conferir à História a cientificidade requerida. Sendo assim, a História se resumiria a uma sucessão de fatos organizados cronologicamente. Embutida nessa perspectiva, estava presente a noção de uma temporalidade sequencial e progressiva. Ou seja, a História seria uma sucessão de fatos e datas que indicariam o desenvolvimento linear da humanidade rumo ao progresso. Todavia, essa perspectiva se referia a um contexto europeu. Desse modo, toda a narrativa histórica desenvolvida nesse sentido tinha como conclusão lógica a ideia de que a Europa representaria o ápice do desenvolvimento histórico. Em outras palavras, a própria Europa representava o progresso.

Imagem: Unplash


Ainda no século XIX, o pensamento marxista colocou em xeque essa perspectiva e, no século XX, o avanço das pesquisas na área de História permitiu que a perspectiva positivista de ordenação cronológica dos acontecimentos históricos e de tempo linear a ela subjacente fossem questionados. Nesse sentido, foram de grande relevância os trabalhos desenvolvidos pelo grupo de historiadores que formou a chamada “Escola dos Annales”. Utilizando novas metodologias, novas problemáticas – que iam além da narração dos feitos dos grandes homens e dos grandes eventos, até então predominantes – e abrindo-se para a utilização de novas fontes históricas. Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel ampliaram não só as possibilidades de pesquisa na área, como também, a partir de um diálogo com áreas como a Antropologia, a Economia e a Sociologia, puderam rever a perspectiva temporal adotada até então, abrindo caminho para falar nas diferentes durações dos acontecimentos e das mentalidades. Cabe destacar, também, a contribuição dos historiadores marxistas, como Edward P. Thompson, Christopher Hill e Eric Hobsbawm, além do próprio Karl Marx (ainda no século XIX), que reforçaram, com suas pesquisas, o campo de estudos da história “dos de baixo”, a partir do estudo da formação histórica da classe trabalhadora e das transformações ocorridas no sistema capitalista e suas contradições. Assim, além de indicar uma carga ideológica bem demarcada, a organização curricular do ensino de História em termos puramente cronológicos pode ser compreendida como um retrocesso em termos de análise historiográfica.

Por fim, é possível questionar até que ponto a BNCC trará a igualdade e a equidade de aprendizagem estabelecidas. Para além dos discursos, outros elementos devem ser considerados, quando se aborda a educação. Afinal, a carência de profissionais das mais diversas disciplinas é uma realidade em diversas escolas do país. Por si só, esse fato coloca um entrave à promoção desse objetivo. Impelidos pela baixa remuneração, professoras e professores são submetidos a extensas jornadas de trabalho. Em sua maioria, os profissionais da educação dedicam-se ao trabalho em mais de uma escola, impedindo, assim, que tenham tempo para elaborar atividades pedagógicas com melhor qualidade (e isso ocorre mesmo nas redes em que se respeita a lei 11.738/2008, que estabelece o piso nacional do magistério e a reserva de 1/3 da carga horária para atividades de planejamento). Salvo raras exceções, a maioria dos estudantes do país sofrem com a precarização do trabalho docente, diante das limitações impostas ao desenvolvimento de um trabalho de qualidade por parte de seus profissionais. Não haverá base e currículos capazes de melhorar a qualidade da educação no Brasil se não for encarado de forma séria o problema da dupla (e muitas vezes tripla) jornada de trabalho dos professores e da sua remuneração.

Graciella Fabrício da Silva historiadora e professora de História.

 

Bibliografia:

BRASIL. Ministério da Educação. “Base Nacional Curricular Comum”. Disponível em: MEC.

BRASIL. “Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971”. Disponível em: Câmara Federal.

Ireni Marilene Zago Figueiredo. “Os projetos financiados pelo Banco Mundial para o Ensino Fundamental no Brasil”. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 30, n. 109, p. 1123-1138, set./dez. 2009. Disponível em: Scielo.

José Renato Bez de Gregório. “O papel do Banco Mundial na contra reforma da educação superior no Brasil: Uma análise dos documentos que precederam o REUNI.” In: Trabalho Necessário. Ano 10, n. 14. Niterói: UFF, 2012. Disponível em: UFF.

Alexandre Tavares do Nascimento Lira. “Reflexões sobre a legislação de educação durante a ditadura militar (1964-1985)”. Disponível em: Arquivo do Estado de São Paulo.

Jurandir Malerba. “Uma análise da Base Nacional Comum Curricular.” Disponível em: Café História.

Elza Nadai. “O ensino de História no Brasil: trajetória e perspectiva.” In: Revista Brasileira de História. Vol. 12, n. 25/26. São Paulo. Setembro 92/Agosto 93. p. 143-162. Disponível em: ANPUH.

ZOTTI, Solange Aparecida. “Organização do ensino primário no Brasil: Uma leitura da história do currículo oficial”. Disponível em: Unicamp.

 

Notas:

[1] BRASIL. Ministério da Educação. “Base”. Disponível em: MEC.

[2] BRASIL. “Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971”. Disponível em: Câmara Federal.

[3] Ireni Marilene Zago Figueiredo. “Os projetos financiados pelo Banco Mundial para o Ensino Fundamental no Brasil”. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 30, n. 109, p. 1123-1138, set./dez. 2009. Disponível em: Scielo.

[4] BRASIL. Ministério da Educação. “Base Nacional Curricular Comum”, p. 10. Disponível em: MEC.

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