Enterrando Lucía: o futuro do Chile sob o governo feminista de Boric
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  • Foto do escritorLuan Aiuá

Enterrando Lucía: o futuro do Chile sob o governo feminista de Boric

Atualizado: 20 de dez. de 2022

Na tarde quente e seca do dia 16 de dezembro de 2021, ouviu-se por grande parte da região metropolitana de Santiago um insistente “buzinaço”. Pouco tempo depois, dezenas de pessoas entusiasmadas se reuniram na Praça Dignidade. A três dias da eleição presidencial mais polarizada da história do Chile, as manifestações poderiam ser confundidas com atos político-partidários ligada ao pleito. Não era o caso. O motivo dos buzinaços, gritos e celebrações era a morte, aos noventa e nove anos, de Lucía Hiriart, viúva do ditador Augusto Pinochet.

Não era por menos a euforia vista na capital. Mais do que a primeira dama do ditador, Lucía era uma das assessoras mais influentes de Pinochet, tendo desempenhado um papel chave no golpe de 1973 e na ditadura militar chilena. O ditador admitiu em suas memórias que ela foi a principal incentivadora para que ele participasse do golpe contra Salvador Allende: “Uma noite, minha mulher me levou ao quarto onde dormiam meus netos e me disse: ‘eles serão escravos porque [você] não tem sido capaz de tomar uma decisão.’”


Lucía Hiriart e Augusto Pinochet
Lucía Hiriart e Augusto Pinochet. Wikimedia Commons.

A morte de Lucía, que também chegou a ser acusada de delitos de corrupção, marca para muitos chilenos o encerramento de um ciclo que começou a se configurar com as manifestações de outubro de 2019. E parecia ser um presságio para o que aconteceria no segundo turno, com a vitória do candidato de esquerda Gabriel Boric contra José António Kast, ferrenho pinochetista da extrema direita.

A trajetória de Boric até a presidência foi marcada por uma contundente crítica a toda herança ditatorial, em um contexto de luta contra o modelo neoliberal chileno por parte de diversos movimentos sociais: indígenas, ecológicos, feministas e educacionais. Agora, ao ocupar o Palácio La Moneda, o novo presidente precisará dar vazão às demandas desses distintos movimentos. O mais potente deles, sem dúvidas, é o feminista, que percorreu o mundo em várias línguas com a performance Un violador en tu camino, do coletivo autônomo Lastesis. Um dos pontos nevrálgicos do governo Boric, portanto, será apoiar o combate ao patriarcalismo, traçando políticas efetivas que reduzam as variadas discriminações de gênero e tente consolidar maior equidade entre homens e mulheres.


coletivo chileno; Mulheres;
Mulheres mexicanas realizam a performance Un violado en tu camino do coletivo chileno Las Tesis. Wikimedia Commons.

A batalha contra o patriarcalismo na estrutura social chilena só será possível com o enfrentamento de um outro problema: o modelo neoliberal, que encontrou no Chile de Pinochet o seu laboratório, mantendo-se vivo e ainda mais forte no retorno à democracia. O projeto neoliberal, como nos mostram Pierre Dardot e Christian Laval, cria o chamado “sujeito empresarial”, que governa a si mesmo e cria suas próprias oportunidades em uma ótica extremamente individualizante. Para que esse sujeito se torne real é necessário também um “governo empresarial”, que possibilite situações de concorrência que supostamente privilegiam os indivíduos mais aptos e os mais fortes, adaptando-os à competição, vista no ideal neoliberal como a fonte de todos os benefícios.

O “sujeito empresarial” e o “governo empresarial”, no entanto, não se fundamentam apenas a partir da lógica mercantil, mas também por meio da mobilização de tradições e valores conservadores que garantem o chamado “trabalho reprodutivo”, como bem nos mostra Wendy Brown. Na ótica neoliberal, em que o Estado não oferece nenhum tipo de assistência social, cabe às mulheres a função do trabalho reprodutivo – o cuidado da casa, do marido e dos filhos – para que o trabalho produtivo, que garante lucro ao capital, possa ser desempenhado sem interferências.

Foi a partir da ditadura de Pinochet que essa concepção neoliberal de sociedade foi gestada no Chile. Esse projeto neoliberal não seria possível sem a articulação e a mobilização de valores autoritários, elitistas e conservadores em torno de um ideal de nação, que, para a ditadura militar e seus aliados civis, resgatavam o que seria a verdadeira essência do Chile: uma chilenidad que encontrava suas raízes na República Conservadora Portaliana. Não foi à toa que a união entre a nova direita gremialista, os economistas neoliberais e o autoritarismo, que resgatava a figura de Diego Portales – político do século XIX que estruturou a base de uma república conservadora e centralizadora no país andino – serviu tão bem ao projeto ditatorial. Nessa miscelânea de ideias que sustentou a ditadura, era preciso definir bem o papel desempenhado pelas mulheres. Durante a ditadura, Lucía se apropriou do Centro de Mães (CEMA) – organização que auxiliava na capacitação profissional de mulheres para ajudar no sustento da família – e o transformou em um centro ideológico de apoio ao regime. O CEMA buscou cooptar mulheres pobres em um esforço de ampliação da base social da ditadura; e, ao mesmo tempo, realocou como voluntárias para um órgão ligado ao oficialismo, as mulheres de elite e de classe média que haviam tido uma relevante atuação na campanha de deslegitimação do governo Allende.

A ex-primeira-dama também havia sido presidenta da Secretaria Nacional da Mulher, organização criada na ditadura e que possuía claros fins ideológicos. Com uma ampla gama de cursos de doutrinação – que exaltavam o regime pinochetista, a Declaração de Princípios da Junta e a Constituição, além de criticar os grupos e as ideias das esquerdas – a Secretaria buscava delimitar o espaço do homem como público/político e o da mulher como privado/apolítico. Em suma, tratava-se de uma organização de mulheres, feita para mulheres e que reforçava uma ordem patriarcal. Lucía encarnava esse espírito.


Apesar do discurso conservador de submissão da mulher ao mundo privado/familiar, durante a ditadura as mulheres tiveram que lutar pelo sustento de suas famílias e buscar emprego em um contexto de implementação do modelo neoliberal. Se inserir no mundo do trabalho, muitas vezes de forma precarizada, e ser responsável pelo cuidado da casa se tornou a realidade de muitas mulheres, principalmente as mais pobres.

Como nos mostra Clarisse dos Santos Pereira, em recente texto para o História da Ditadura, a dinâmica criada pelo modelo neoliberal também resulta na desestruturação de muitas famílias. O discurso conservador de valorização da família e de um ideal de mulher como pilar desta instituição se mostrava contraditório à medida que o modelo neoliberal se aprofundava no país. Com o aumento da miséria, a partir da década de 1980, e a necessidade de se trabalhar na informalidade, muitas vezes em mais de um emprego, as mulheres chilenas viram suas famílias se desestruturarem em meio à miséria das poblaciones. As atividades desenvolvidas pela Secretaria Nacional da Mulher e pelo CEMA incentivavam o trabalho informal, legitimando o poço de desigualdade que se configurava no Chile de Pinochet e estabelecendo um claro recorte de classe para quem o discurso oficialista em relação a mulher poderia ser supostamente benéfico.


Boric assumiu a Presidência no dia 11 de março de 2022 e os meses seguintes à sua vitória nas urnas serviram para realizar o processo de transição de poder e apresentar seus ministérios com suas respectivas subsecretarias. Prometendo um gabinete paritário, Boric surpreendeu ao anunciar que catorze dos vinte e quatro ministérios serão comandados por mulheres. O compromisso que aparece em seu plano de administração de formar um “governo feminista” não se traduz apenas no número de mulheres ministras, mas também nos importantes e estratégicos ministérios que elas irão comandar.


Sebastián Piñera; Gabriel Boric; Izkia Siches; Giorgio Jackson
Sebastián Piñera em seu primeiro encontro oficial com o presidente eleito Gabriel Boric e seus ministros Izkia Siches (Interior) e Giorgio Jackson (Segpres). Wikimeida Commons.

Um dos mais simbólicos nomes é o de Izkia Siches. Política independente, ex-presidenta do Colégio de Médicos, referência no combate da pandemia da Covid-19 e ex-chefa de campanha de Boric, ela irá comandar o poderoso Ministério do Interior e Segurança Pública. Responsável por articular as tarefas políticas do governo, a geografia administrativa do país e a manutenção da ordem pública, é ela quem assume a Presidência na ausência do mandatário eleito, já que o Chile não possui a figura de vice-presidente. Siches é a primeira mulher no comando da pasta na história do país.

Os ministérios das Relações Exteriores, da Saúde, da Secretaria Geral do Governo e da Defesa também ficarão nas mãos de mulheres, sendo este último comandado por Maya Fernández, neta de Salvador Allende. No caso da chancelaria chilena, Antonia Urrejola é apenas a segunda mulher a ocupar o cargo na história do país. Já a Secretaria Geral do Governo, primordial na comunicação da presidência com a população – incluindo o tom utilizado ao responder aliados e opositores políticos – ficará nas mãos da comunista Camila Vallejo, a líder estudantil que esteve na liderança da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (FECH) nos massivos protestos de 2011. Foram justamente os sucessivos erros de comunicação de Sebastián Piñera durante o Estallido Social chileno que fizeram com que seu governo atingisse os menores índices de aprovação na história do país. Portanto, o papel de Vallejo será um dos mais estratégicos para uma administração que enfrentará forte oposição no Congresso e de outras forças conservadoras, contrárias às transformações estruturais que Boric pretende realizar.

Quillota; Valparaíso; Las Tesis
Mural feminista em Quillota na Região de Valparaíso com frases da performance Un violador en tu camino do coletivo Las Tesis. Wikimedia Commons.

Outra mudança crucial da estrutura do governo de Boric é a inclusão do Ministério da Mulher e da Equidade de Gênero no Comitê Político, considerado o núcleo duro da administração chilena e do qual participam as ministras e os ministros da Fazenda, do Interior, da Secretaria Geral do Governo e da Secretaria Geral da Presidência. Com a inclusão de Antonia Orellana, ministra da Mulher e Equidade de Gênero, o Comitê Político, que discute e estrutura as principais ações governamentais, será composto por uma maioria de mulheres. Essa nova configuração política, que alia representatividade e estrutura institucional bem definida, reforça o compromisso de um “governo feminista”, que se consolidará em ações concretas acerca das demandas de gênero. O programa de Boric também se compromete a diminuir as desigualdades de gênero no âmbito trabalhista, criar pelo menos quinhentos mil empregos femininos, descriminalizar e legalizar o aborto a partir da consigna “Educación sexual para decidir, anticonceptivos para no abortar, aborto legal para no morir” e combater a violência de gênero. Demandas históricas do movimento feminista que, pela primeira vez na história do Chile, estarão no centro das decisões políticas.

Para cumprir seu programa de governo, Boric precisou costurar alianças com partidos de centro-esquerda – os quais já foram duramente criticados pelo grupo político do novo presidente – já que o novo Congresso chileno estará bastante dividido, sem nenhum bloco formando maioria. No entanto, serão o apoio da população e a pressão dos movimentos sociais que garantirão que mudanças profundas sejam realizadas, a começar pelo Plebiscito de saída da nova Constituição. A Assembleia Constituinte chilena, uma das poucas na história mundial a se configurar com equidade de gênero e a ser presidida por duas mulheres, terminará seus trabalhos ainda em 2022 e, sendo formada por uma maioria de representantes de esquerda, possui um claro alinhamento com o novo governo eleito. Um amplo respaldo popular na aprovação da nova Carta será a primeira grande vitória de Boric e a maior vitória das mulheres rumo a um Chile independente, soberano e igualitário. Infelizmente, Lucía, que morreu na impunidade, não verá esse brilhante e necessário futuro feminista.

 
  1. Os santiaguinos chamavam este local, epicentro das manifestações na capital, de Praça Itália, apesar de seu nome oficial ser Praça Baquedano. Com os protestos que se iniciaram em outubro de 2019, a população passou a chamar este simbólico ponto de encontro de manifestantes de Praça Dignidade.

  2. O gremialismo defendia um Estado autoritário e uma sociedade organizada a partir de um corporativismo de raiz católica, em que entidades, instituições e grupos fariam a intermediação entre o indivíduo e o Estado. Igreja, família e universidade seriam exemplos de distintas entidades de intermediação (cuerpos intermédios). Jaime Guzmán, seu fundador, acreditava que a sociedade deveria permanecer alheia aos debates e decisões chaves para o desenvolvimento do país, focando em seus interesses próprios e próximos. O poder executivo, organizado de maneira autoritária, sem sofrer pressões das massas e sustentado por técnicos e intelectuais de visão, seria o responsável pelas resoluções que afetariam todo o conjunto da sociedade.


REFERÊNCIAS


BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

LECHNER, Norbert; LEVY, Susana. Notas sobre la vida cotidiana III: el disciplinamiento de la mujer. Santiago: FLACSO, 1984.

PEREIRA, Clarisse dos Santos. Armadilhas neoliberais: reflexões sobre feminismo e trabalho. História da Ditadura, 26 jan. 2022.


Como citar este artigo:

FERNANDES, Luan. Enterrando Lucía: o futuro do Chile sob o governo feminista de Boric. História da Ditadura, 11 mar. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/enterrandoluciaofuturodochilesobogovernofeministadeboric . Acesso em: [inserir data].


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