História da Ditadura
As máquinas de memória
Atualizado: 29 de abr. de 2021
Tese: As máquinas de memória. O corpo-vítima da ditadura militar brasileira como peça dos processos de subjetivação do contemporâneo
Orientador: Edson Luís de Almeida Teles
Instituição: Universidade Federal de São Paulo, 2019
1. Qual a questão central da sua pesquisa?
A questão central se insere numa tentativa de demonstrar que os contornos bloqueadores das produções das máquinas de memória democráticas não agem apenas sobre os sentidos do passado, mas atuam também como máquinas subjetivas. Maquinismos de subjetivação que nos fabricam, ao mesmo tempo em que operamos peças e escorremos produtos, que podem ser mecanismos de dominação, resistência ou as duas formas misturadas. As duas situações não se excluem e são vividas ao mesmo tempo.
2. Resumo da pesquisa
A narrativa se estrutura atravessada por pensadores da filosofia política contemporânea, em especial Gilles Deleuze e Félix Guattari. O objetivo central da tese é pensar nas implicações subjetivas, comuns e contemporâneas dos processos democráticos de produção de memórias acerca da ditadura brasileira e de suas vítimas (1964-1985). Que efeitos de dominação e resistência fabricam, que desejos e ações ajudam a compor. A primeira hipótese é que essas políticas se movimentam em torno do corpo vítima política da esquerda organizada. A segunda hipótese é que essas políticas são fabricadas fundamentalmente por instituições governamentais como a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a Comissão de Anistia e a Comissão Nacional da Verdade, e por coletivos de familiares de vítimas, sobreviventes e ativistas de direitos humanos como a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo, o Instituto Vladmir Herzog e o grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. A terceira hipótese é que são políticas maquínicas. Máquinas de memória menores e maiores que dentre tantos componentes agem igualmente acopladas à justiça de transição, à razão consensual, ao pacto da transição controlada, à impunidade, à teoria dos dois demônios, aos maquinismos judiciais, securitários, midiáticos, empresariais, ao inimigo interno e aos crimes de tortura, estupro, assassinato, desaparecimento forçado etc. A quarta hipótese é que os processos e produtos dessas máquinas agem ao mesmo tempo fabricando subjetividades binárias-dominantes e subjetividades múltiplas-resistentes. Dispositivos que compõem apaziguamentos como familiares de vítimas e sobreviventes, que se sentem pacificados por medidas de reparação ou pelo perdão encenado pela Comissão de Anistia, ao mesmo tempo que agem na produção de modos de desejar guerra contra quem recebe “bolsa ditadura”, mas que também participam da composição de fluxos de desejar habitar solidariamente o comum como ocorre em associações do tipo Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo e movimento Mães de Maio. Máquinas maiores que, por sua natureza governamental, atuam como mecanismos de conservação do Estado e de seu direito de matar; porém, afetadas pelas máquinas menores, também fabricam significantes que agem para romper com os dualismos dos termos e das correspondências. Máquinas de memória menores que planejam furar com implicações binárias como a teoria dos dois demônios, que infiltra ditos e não ditos na relação amigo/inimigo da ditadura, e que se desdobra em táticas de dominação como a produção dos atuais corpos matáveis e matados; ao mesmo tempo que agem como peças compositoras de representações e subjetividades dualistas, em especial quando seus mecanismos são capturados pelo ressentimento produzido por uma justiça que nunca vem. Máquinas de memória maiores e menores que agem em tensão e complementaridade, mas cuja atuação conjunta não elimina o conflito. Máquinas que, apesar de operarem com foco nas vítimas militantes políticas e limitadas pelas implicações da impunidade, fabricam o que até o momento melhor se produziu no país em termos de reconhecimento da ditadura e de suas vítimas.
3. Quais foram suas principais conclusões?
As máquinas de memória brasileiras operam limitadas pelos efeitos da impunidade, que desde a ditadura até o tempo presente têm por discurso legitimador a versão que transforma a não punição dos criminosos do regime militar em uma necessidade à reconciliação nacional. Essa representação fortalece-se associada a um imaginado pacto democrático entre os dois lados da guerra: militantes da esquerda armada versus um suposto grupo de militares radicalizados. Em decorrência, apesar das lutas e deslocamentos fabricados pelas máquinas menores, devido aos silenciamentos e aos bloqueios operados por peças do aparelho de Estado como o Supremo Tribunal Federal, que em 2010 optou por manter a impunidade, as produções memorialísticas brasileiras foram impedidas de desmontar engrenagens – subjetivas e objetivas – criadas em ditadura. Estratégias de controle e dominação do Estado ditatorial continuam em operação e são atualizadas. A violência de Estado e sua impunidade se reproduzem. No entanto, o repudio social a esses modos de operar do aparelho de Estado brasileiro é publicamente pouco notado. As subjetividades dos não diretamente afetados pela violência estatal em grande medida se percebessem como parte não implicada, não eram da esquerda radical assim como hoje não são bandidos ou traficantes. Tivemos uma grandeza ditadura, porém essa percepção social não veio à tona como memória relevante. A questão se evidencia quando nos deparamos com a eleição do atual ocupante da cadeira de presidente da República, mesmo sendo notoriamente conhecido por sua admiração à ditadura e à torturadores como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
4. Referências
Gilles Deleuze; Félix Guattari. Mil Platôs, v. 01 ao 05. São Paulo, Editora 34. DOSSIÊ Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil [1964-1985]. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado, 2009.
Edson Teles e Vladimir Safatle (Org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
Gabriel Gatti (Org.). O mundo de víctimas. Barcelona: Anthropos Editorial, 2017.
Silvia Maria Brandão Queiroz é graduada em história pela PUC-SP. Especialista em Direitos Humanos pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Mestra e doutora em Filosofia pela UNIFESP. Da graduação ao doutorado pesquisa a ditadura, relacionando-a com mecanismos de dominação e resistência, e também com implicações contemporâneas. Fabricou alguns artigos sobre a temática.
Caso queira divulgar sua pesquisa sobre temas relacionados às ditaduras latino-americanas do século XX ou sobre questões do Brasil contemporâneo, não necessariamente na área de História, escreva para o email: hd@historiadaditadura.com.br.
Crédito da imagem destacada: Cartaz com dissidentes políticos. Arquivo Público do Estado de São Paulo, Cartaz Terroristas 20-C-2 1493 (1976).
Comments