Natália Guerellus
Decolonizemos!
Atualizado: 5 de abr. de 2022
Comecemos pelas figuras (de linguagem) do desgoverno.
No último dia 15 de maio, a Fundação Palmares publicou vários anúncios de artigos fadados à polêmica, como aquele “A verdade sobre Zumbi dos Palmares”, em uma tentativa, acredito eu, de falsa metáfora do artigo que se intitula, na verdade, “A narrativa mítica de Zumbi dos Palmares” e é assinado por Mayalu Felix, doutora em linguística pela UFF e pela Universidade Paris Nanterre. Passemos então à ironia que se encontra na autoria: trata-se de uma pesquisadora formada em uma das universidades francesas mais revolucionárias, maior palco do “maio de 68” e historicamente próxima da esquerda, mas a autora se define como “cristã e roqueira liberal-conservadora”.
Bom, o caso dos anúncios no site da Fundação virou polêmica, foi parar no tribunal e o atual presidente da Palmares vai ter que se retratar. Quanto ao artigo em si, bem escrito e argumentado, peca pela metonímia característica da extrema direita brasileira, especialmente no que consiste em tirar a palavra do seu contexto semântico e em nomear a parte pelo todo. É somente através dessa lógica de pensamento redutor que podemos compreender um argumento que é capaz de generalizar o movimento negro como marxista. Além de não refletir sobre a pluralidade do movimento negro, reproduz um anacronismo já gasto, que acredita que somente o marxismo faz a crítica ao capitalismo e ao neoliberalismo.
Preciso, no entanto, agradecer à Mayalu, por me permitir refletir, de um lado, sobre os limites tênues entre história e ficção e, de outro, sobre a importância, hoje, de lermos obras do feminismo decolonial.
Narrativas sobre povos escravizados, resistência e rebeliões escravas, dão vida aos movimentos negros e aos movimentos feministas; eles nunca prescindiram, nem das narrativas históricas, nem das narrativas literárias, nem das narrativas míticas. Porque antropólogos, psicanalistas, filósofos… e até astrólogos exilados na Virgínia, citados no texto da (anti)Fundação Palmares, podem dizer o que quiserem sobre mito e história, mas mulheres, homens, queers negros, conscientes do racismo estrutural da sociedade brasileira, entendem muito bem a importância de Zumbi e da resistência quilombola, assim como entendem as denúncias de Abdias do Nascimento e a loucura de Ponciá Vicêncio, e isto porque não é preciso compreender somente com o intelecto, mas porque é algo que se sente… na pele.
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No caso mais específico da autoria feminina ficcional, é impossível não considerar a importância da literatura de Toni Morrison para o movimento negro nos Estados Unidos e fora dele, por exemplo, ou de Carolina Maria de Jesus e de Conceição Evaristo no Brasil de hoje, de Maryse Condé e de Léonora Miano, escritora camaronesa, na França, entre muitas outras. Simplesmente porque elas falam do que a ficção pode tratar da melhor forma, daquilo que não foi documentado, nem escrito, da história que não foi contada – a não ser pela oralidade –, daquilo que deve ser imaginado por dever de memória, daquilo que fala das marcas da violência de um sistema global: o trauma, a loucura, os fantasmas, a perda, a fragmentação, a mudez imposta.
Mas essa ficção é importante ainda sob outro ponto de vista: ela ajuda a decolonizar o mundo; provoca o nosso pensamento e o nosso modo de fazer história, porque denuncia engessamentos fundamentais da epistemologia ocidental, como o que tange a noção de tempo e de espaço. Ao apresentarem, no presente, as consequências físicas e psíquicas – eu diria até espirituais – de um passado que poderia ter sido, elas quebram com a ideia de uma história unívoca, de um tempo contínuo, e de um espaço somente terrestre.
Essas narrativas pervertem a noção de tempo à qual estamos habituados; apresentam, por vezes, um tempo em espiral, por vezes um tempo estelar, suspenso, onde passado e presente estão mais conectados do que nos diz a nossa vã filosofia. Ao mesmo tempo, pervertem nosso espaço físico e psíquico, quando subvertem a noção de continente, país, território, cidade, campo, vila, fazenda, e fazem habitar nestes espaços sem fronteiras seres vivos e mortos, que se comunicam, se ensinam, crescem juntos.
Gostaria, nesta crônica, de falar rapidamente de Léonora Miano, aquela das três escritoras que acredito menos conhecida no Brasil, apesar de traduzida pela editora Pallas. Miano inspira a mais nova geração do movimento panafricano e do movimento feminista negro na França, principalmente através da popularização da ideia de uma identidade afropeia [afropéenne]. Miano inspira, assim, de modo especial a jovem geração de mulheres negras francesas, sendo citada, por exemplo, em um documentário representativo dessa geração, Ouvrir la voix (Dir. Amandine Gay, 2017).
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Miano afirma, por sua vez, ser fortemente inspirada por Morrison, em parte devido ao impacto dessa autora sobre o movimento negro, mas também pela complexidade com que Morrison trata a questão racial, não idealizando um ser negro, mas tratando da violência, do incesto, do infanticídio; assuntos tabus dentro da própria comunidade.
Em seu livro premiado A estação da sombra, Miano conta a história do clã Mulongo, presente no interior do continente africano, mas cuja localização não é precisa, é ficção, mas descrita como sendo longe do mar. A trama começa com o desaparecimento de doze homens do clã após uma noite de incêndios. No dia seguinte, o Conselho do clã decide isolar as “mães cujos filhos desapareceram” numa só moradia, afastada da comunidade, até que se descubra o que aconteceu, de fato, no dia do incidente. A desconfiança sobre elas é o primeiro sinal da catástrofe que será descrita no livro. Ao longo do romance, percebemos, aos poucos, como esse rompimento da relação, primeiro física, depois espiritual, entre mães e filhos é o começo de toda a desestruturação social. Miano traz uma visão original sobre uma história que nos foi dada através de documentos administrativos ou de relatos de viagem de europeus, e que falam da captura de populações africanas para serem escravizadas nas Américas. A versão apresentada pela autora camaronesa nos é inalcançável, se limitarmos a história ao documento escrito. Através dos Mulongo compreendemos a perversidade do ato de tornar o outro escravo e a fragmentação psíquica e social exercida não só sobre as pessoas, mas sobre toda uma cosmogonia, uma forma de viver que, em questão de dias, não existirá mais, nunca será documento (escrito).
A reflexão caminha junto com o crescimento da importância do feminismo decolonial em sua luta contra a opressão de todo um sistema social, econômico, cultural, psíquico. É duro assumir, mas nem todas as mulheres que se dizem feministas lutam pela libertação de todas as mulheres. “A cada dia, em cada cidade, milhares de mulheres negras, racializadas, ‘abrem’ a cidade. Elas limpam os espaços que o patriarcado e o capitalismo neoliberal precisam para funcionar”, nos diz Françoise Vergès, pensadora decolonial nascida na Ilha da Reunião, e que acaba de ser traduzida em português pela Ubu Editora.
O feminismo decolonial vem para escancarar o velho patriarcado, o capitalismo racista, mas também o universalismo feminista, que reforça esses mesmos capitalismo e patriarcado. Inclusive, este feminismo usurpado serve de bandeira cool do capitalismo ou mesmo de bandeira cool de alguma esquerda que não quer discutir interseccionalidade. O feminismo decolonial denuncia o fato de que a nossa sociedade capitalista racial, fundada na modernidade, entenda-se, na escravidão de corpos indígenas, negros e mestiços, conta com o apoio de um feminismo branco liberal conservador.
É preciso, portanto, decolonizar, a todo momento, decolonizar a nós mesmos e ao coletivo. No Brasil, ainda, acredito que Djamila Ribeiro faz um importante trabalho nesse sentido junto ao grande público, com a coleção “Feminismos Plurais”, conectando autores e autoras que se debruçam sobre a questão racial e nos ajudam a pensar o quanto incorporamos o racismo até no seu sentido mais profundo. Além disso, reafirma a ideia de que pensar a interseccionalidade e, no Brasil, especialmente a questão racial, não é fazer um debate específico, é fazer O debate que pode ajudar a sociedade brasileira contemporânea. E que Zumbi, mito e verdade, esteja conosco!
*Cabe aqui uma explicação quanto ao vocábulo “decolonial”, e não “descolonial”, com s. As palavras ainda estão se configurando conceitualmente e muitas vezes são usadas como sinônimos. No presente texto, no entanto, escolhi “decolonial” por concordar com sua utilização enquanto projeto futuro de decolonização das instituições, mentalidades, ciência etc., diferenciando-se, assim, de “descolonização”, termo ligado ao passado histórico das guerras de libertação nacional africanas ao longo do século XX.
Crédito da imagem destacada: Wikimedia Commons
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