A biblioteca de... Heloísa Starling
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  • Foto do escritorGuilherme Leite Ribeiro

A biblioteca de... Heloísa Starling

Atualizado: 16 de fev.

A partir de entrevistas curtas, a série “A biblioteca de...” é um convite para nossos leitores conhecerem mais o universo de nomes importantes da historiografia. Aquele ou aquela que nos inspira pode indicar caminhos de leitura fundamentais para o nosso aprendizado. Por isso, conhecer o que essas referências leem é mais do que uma simples curiosidade: é, antes de tudo, um modo de descobrir novos horizontes de saber.


Heloísa Starling

A convidada desta edição é a historiadora Heloísa Starling. Formada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a autora realizou seu mestrado e doutorado em Ciência Política, cursados, respectivamente, na UFMG e no Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (IUPERJ), atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Professora de História da UFMG desde 1982, tornou-se titular em 2012 pela mesma universidade. Referência em estudos sobre a ditadura militar brasileira, Starling é ainda coordenadora do “Projeto República: núcleo de pesquisa, documentação e memória”, ligado à UFMG, além de bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em 2019, foi agraciada pelo prêmio Sergio Buarque de Hollanda, da Biblioteca Nacional, pelo livro Ser republicano no Brasil Colônia: a história de uma tradição esquecida (2018). Por essa mesma obra, foi finalista do 61º Prêmio Jabuti, também de 2019, na categoria “Humanidades”, além de concorrer em “Inovação” por Brasil, uma biografia (2015), que escreveu junto com Lilia Schwarcz. Além desses, destacam-se em sua importante carreira a escrita de obras como Os senhores das gerais: os novos inconfidentes e o golpe de 1964 (1986), Lembranças do Brasil: teoria política, história e ficção em Grande sertão: veredas (1999) e, mais recentemente, A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil (2020), também com Lilia Schwarcz.


Que livro você recomenda para quem está iniciando na área de História?


Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, de José Murilo de Carvalho. O leitor vai se deparar com a narrativa de um momento estratégico da nossa história. Entre nós, a República neutralizou a cidade, reprimindo a emergência da população urbana na cena pública. Impedida de ser república, conta José Murilo, a cidade criou suas repúblicas – os nódulos de participação social que surgiram em determinados bairros, associações, irmandades, grupos étnicos, igrejas, festas religiosas e profanas, cortiços e maltas de capoeiras. E o leitor vai conhecer a importância da imaginação e da multiplicidade das fontes como as duas ferramentas capazes de tornar flexível o campo da História, transbordar os limites estreitos da especialização e convidar o historiador a travar diálogos improváveis e não antecipados.


Qual foi o livro que você mais gostou de escrever?


Ser republicano no Brasil Colônia: a história de uma tradição esquecida. Fazer esse livro me ensinou muito. Entendi que contar histórias serve principalmente para isso: chamar de volta ao presente não só algo que aconteceu alguma vez e partiu, mas um pouco daquilo que ocorreu no passado, ainda está aqui, entre nós, e prossegue no futuro. E como não existe acesso ao passado sem mediação, eu entendi também que o historiador vive a cata de documentos e arquivos; ele quer, a todo custo, intrometer-se num tempo que não é o seu, abrir portas e escarafunchar gavetas que não lhe pertencem, sentir com sentimentos de outras pessoas e fazer novas perguntas a uma sociedade que se desintegrou no final do século XVIII. Descobri, então, que toda história começa com uma pergunta ao passado. No meu caso: o que era ser republicano no Brasil colônia?


Que livro que você escreveu teve maior repercussão e crítica? A que atribui isso?


Brasil, uma biografia, que Lilia Schwarcz e eu escrevemos. Creio que isso está relacionado com a composição do livro. O livro é o resultado de uma parceria intelectual que teve início em 2005 e se abasteceu tanto da constância do afeto, quanto da formação intelectual muito diversa das autoras. Os capítulos tomaram forma a partir de um diálogo que começa pela empatia comum das duas autoras com o biografado e, também, foi cheio de humor, o que ajudou muito na hora de dessacralizar os grandes personagens e os grandes eventos nacionais. O livro traz, como resultado dessa parceria, uma visada narrativa e historiográfica muito própria. Procura revelar no tempo longo da História aquilo que, para nós, seria a marca e a complexidade da formação social brasileira: um país com uma história recorrente de lutas políticas, de reivindicação de autonomia e igualdade, de construção dos princípios de cidadania e de reconhecimento e expansão da liberdade, mas, ao mesmo tempo, marcado pelo nó da violência e sua determinação cultural profunda. A história do Brasil não é uma coisa ou outra; ela é uma coisa e outra: ela é uma história que começa ainda no século XVI nas Santidades – as rebeliões indígenas que combinavam milenarismo com anticolonialismo –, e continua com as diversas modalidades de luta dos escravos e com as primeiras revoltas dos colonos; e é, também, esse nó de violência fruto da nossa herança escravocrata e cuja trama é ainda presente na sociedade brasileira contemporânea.


Qual livro de História do Brasil é obrigatório ter na estante?


A obra completa de Evaldo Cabral de Mello. Por várias razões. Evaldo ensina a enxergar o Brasil a partir de um deslocamento certeiro de perspectiva historiográfica – Brasil não é um só, são muitos. Ao mudar nosso ponto de mirada, seus livros nos ajudam a compreender que os eventos que ocorreram em um determinado momento não tinham necessariamente que acontecer de uma única forma – sempre existe a possibilidade de que as coisas possam ser distintas do que foram. Também ensinam a construir uma história da ação política no que ela tem de enredo, intrigas, incerteza e peripécia. Mestre da arte de narrar, Evaldo, em algum ponto do entrecho, vai nos ajudar a refletir sobre como o tema foi tratado anteriormente pela historiografia e, ao longo da narrativa, esmiuçar em cada documento o dado empírico. Sua escrita é poderosa: convoca a força da história, que confere permanência às ações humanas, para revelar aos brasileiros que os fatos dependem de nossas escolhas e o destino do país não está dado. Afinal, ensina Evaldo Cabral de Mello, história não é destino, nem está escrita nas estrelas. “As coisas”, ele insiste, “só são previsíveis quando já aconteceram”.


Em sua biblioteca, tirando suas próprias obras, qual autor(a) está mais presente?


Hannah Arendt. Penso que a obra de Arendt é essencial para o historiador por inúmeras razões. Para citar apenas duas. Uma, a importância do poder da imaginação. “Pensar com uma mente alargada”, explicava Arendt, “significa treinar a própria imaginação para sair em visita”. A imaginação é a visão clara, ela dizia; permite ver as coisas em suas perspectivas próprias. Só a imaginação acerta posicionar a alguma distância de nós o que está tão próximo que não conseguimos enxergar com nitidez; e só ela consegue aproximar suficientemente o remoto para que possamos ver o que está longe demais no tempo e tratar disso como se fosse um assunto nosso. A outra razão: o historiador é um perigo para as tiranias, porque seu trabalho se sustenta em uma única modalidade de verdade – a verdade factual. Significa fazer a ostentação pública de fatos que não podem ser modificados pela vontade de quem ocupa o poder, nem podem ser demovidos a não ser por força de mentiras cabais; por essa razão, seu contrário não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, e sim a falsidade deliberada, a mentira. Arendt explicava que eliminar a verdade factual sustentada pelo historiador faculta ao governante dar um passo no sentido do totalitarismo. A produção da verdade passa a ser função exclusiva do Estado – e aquilo que esclarece acontecimentos sociais, econômicos ou políticos está sempre oculto. Só pode ser revelado pelo líder, o único capaz de desvendar os segredos do poder e expô-los ao povo.


Qual foi o último livro que você leu e que lhe marcou?


O poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro, de Fábio Victor. O livro traz o resultado de pesquisa e investigação jornalística sobre como os militares se esforçaram para tutelar a República após o fim da ditadura militar – e sua atuação na Constituinte e em cada governo civil. Descreve as motivações ideológicas e o arco de interesses políticos articulados nos quartéis ao longo desse período. E revela como os militares aderiram à candidatura e ao governo Jair Bolsonaro. É um livro extraordinário.


Qual o seu livro preferido fora da área de História?


Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Ele costumava dizer que o que se quer tirar de um livro “é o leite que a vaca não prometeu”. Não é que sua literatura consiga ver mais do que a história – mas ela ajuda o historiador a ver mais intensamente. Permite enxergar aquilo que de algum modo já está acontecendo, ao nosso lado, e em algum ponto do horizonte distante. Em seguida, ele faz funcionar o sinal de alarme – a oportunidade de refletir sobre o que estamos fazendo hoje.


Qual a sua opinião sobre os últimos lançamentos de livros sobre a temática da ditadura militar? Destacaria alguma obra ou autor(a) em específico?


Eu gostaria de destacar pelo menos três livros sobre a temática da ditadura publicados em 2023. Um, A Torre: o cotidiano de mulheres encarceradas pela ditadura, de Luiza Villaméa. O livro trata da experiência das mulheres encarceradas na Torre, nome de uma das alas do Presídio Tiradentes, em São Paulo. O outro, As ditaduras argentina e brasileira em ação: violência repressiva e busca de consentimento, organizado por Daniel Lvovich e Rodrigo Patto Sá Motta, traz dez ensaios inovadores de autores brasileiros e argentinos numa reflexão sobre o contexto histórico das ditaduras militares no Brasil e na Argentina entre 1960 e 1980. E o terceiro, Linguagens políticas do Brasil democrático, organizado por Luís Reznik reúne um conjunto formidável de textos sobre a experiência democrática brasileira na década de 1950. O livro apresenta a visão crítica acerca da experiência democrática produzida antes e depois do seu encerramento e analisa a disputa política em torno dos conceitos “legalidade”, “democracia”, “povo”.

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