A fotografia como denúncia: engajamento político e luta contra o racismo
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  • Marcus Vinicius de Oliveira

A fotografia como denúncia: engajamento político e luta contra o racismo

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

O ano de 1988 foi marcado por diversas disputas públicas em torno do centenário da abolição dos escravos no Brasil. Enquanto comemorações oficiais buscavam reafirmar a abolição como fruto da ação benevolente da princesa Isabel e a “harmonia racial” do país como parte de sua história, uma série de outras produções e protestos buscava ressaltar os problemas oriundos do regime escravocrata no Brasil e suas permanências na sociedade atual. A crítica vinha, majoritariamente, de membros do movimento negro, que reivindicavam a necessidade de revisão dos heróis nacionais, com a inclusão de Zumbi dos Palmares, e a decretação do dia 20 de novembro, data de sua morte, como um marco importante para a luta negra no Brasil, dentro de seu conjunto de proposições.[1]

Nesse cenário de disputas públicas, o dia 11 de maio de 1988 foi marcado por mais uma delas. A “Marcha contra a farsa da Abolição: nada mudou, vamos mudar!” ocorreu na Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio de Janeiro, e foi organizada por diversos grupos que integravam o movimento negro. Suas críticas ao racismo estrutural da sociedade brasileira, à exclusão social imposta às populações negras e à violência cotidiana vivenciada pelos negros no Brasil contrastava com as comemorações oficiais do governo. Este buscava afirmar uma harmonia racial na construção histórica do país por meio do acionamento da ideia de “democracia racial” tão presente na ditadura brasileira.

Embora vivenciassem o primeiro governo civil depois de 21 anos de regime autoritário, a manifestação foi acompanhada por todo aparato investigativo e repressivo dos anos ditatoriais, que permanecia em atividade. A presença de tropas de polícia fortemente armadas acompanhando o desenvolvimento do ato também demarcava o interesse dos órgãos repressivos em conter qualquer ameaça possível. Logo, o “nada mudou” da Marcha também ganhava um acréscimo, já que as atividades dos militantes negros ainda eram monitoradas e vigiadas por órgãos de repressão que avaliavam as discussões e as denúncias do racismo como “atividades perigosas”.[2] A partir deste cenário podemos observar a imagem 1.

racismo

Imagem 1: Marcha contra a farsa da Abolição: Nada mudou, vamos mudar!. Fotógrafo Januário Garcia. 1988. Arquivo pessoal.

A imagem em tela apresenta uma senhora negra com suas bolsas caminhando em uma avenida com certa distância da lente fotográfica. No lado esquerdo da imagem fotográfica, observam-se algumas pessoas aglomeradas, enquanto, no lado direito, a fileira de policiais equipados com máscaras, escudos e cabos de madeira ganha destaque. A cena captada à noite e com flash converge o olhar para a senhora no centro da imagem. A verticalidade da fotografia, o primeiro plano vazio e iluminado, a parede de policiais em oposição aos manifestantes cria uma cena de tensão que está justamente no confronto entre a polícia armada e a senhora desarmada.

O confronto do aparato profissional com o prosaico de uma senhora carregando sacolas permite explorar também um conflito de gênero. Os cabos da polícia apontados rementem à ideia de falos eretos. A metáfora permite uma crítica aos estupros sofridos por mulheres negras, que demarcariam a miscigenação louvada oficialmente dentro da ideia de “democracia racial”.

Essa fotografia foi produzida pelo fotógrafo negro Januário Garcia, em 1988, na Marcha contra a farsa da Abolição. Garcia iniciou sua carreira de fotógrafo na década de 1970, quando fotografou para jornais alternativos do período e montou seu próprio estúdio, onde trabalhava com publicidade. Nessa área, enfrentou diversas barreiras impostas pelo racismo no país, assim como em diferentes áreas que também atuou profissionalmente. No entanto, conseguiu se inserir no mercado por meio de uma rede de sociabilidade e trabalhar em diferentes áreas da fotografia profissional no país, tanto que seu acervo pessoal é composto por esses trabalhos que permitem observar um conjunto de diversos aspectos da vida social, política, cultural e econômica do negro no Brasil.[3] Dentre eles, podemos destacar a documentação fotográfica do movimento negro realizada desde os anos 1970, quando ingressou na militância, da qual a imagem 1 faz parte.

Como militante negro, a prática fotográfica de Januário Garcia configura-se como forte denúncia do racismo através da construção visual do ato público realizado em 1988. Sua narrativa visual buscou tanto documentar o próprio acontecimento, como dimensionar visualmente as permanências do racismo na sociedade brasileira, como podemos perceber na imagem 1. A senhora retratada busca simbolizar uma das ancestrais que construiu o país e sua caminhada de cabeça erguida indica esse longo percurso da diáspora africana, que é constantemente vigiada pela violência do poder estabelecido. Nesse sentido, o engajamento político do fotográfico construiu uma linguagem visual complexa, ou seja, uma fotografia composta por diversas camadas que precisam ser confrontadas.

O flash usado para captar a cena também aciona a tensão social latente nas diferentes camadas desse documento histórico. O uso do flash pelo fotógrafo convoca o observador a enfrentar esse passado perturbador e a se engajar na luta antirracista junto com os militantes negros. O olhar engajado orienta a prática fotográfica de Garcia na produção da imagem 1[4]e reafirma seu compromisso intelectual na produção de um trabalho para a população negra do país.[5] Assim, o fotógrafo combate a negação dos dramas presente na construção histórica brasileira que ganhavam centralidade em comemorações oficiais, como aquelas ocorridas em 1988, e em figuras públicas como Millôr Fernandes que afirmava que “no Brasil, não havia racismo, porque o negro sabe qual é o seu lugar”.[6]

Garcia nos convoca a enfrentar o passado e sua violência como um meio para construirmos uma sociedade democrática, já que democracia sem equidade racial não existe. Nesse sentido, a imagem fotográfica é mobilizada justamente como seu espaço de denúncia e lócus de ação política. Por meio da imagem, o fotógrafo atua nessa sociedade que nega a existência do racismo, indica sua permanência e demarca a necessidade fundamental de sua mudança radical. A distribuição dos elementos no espaço fotográfico desafia o observador a enfrentar o passado escravista e discricionário.

O incômodo quando se analisa a cena de uma senhora negra que simplesmente passava por ali, vigiada pelo aparato repressivo governamental (responsável por “impor o lugar da/do negra/negro no país”) possibilita a crítica de uma sociedade fundada no mito da democracia racial. O breve espaço entre a população negra e a repressão do Estado é para onde nossos olhos buscam fugir, mas também é justamente o local possível para mudarmos essa realidade. Portanto, sua potência visual nos mobiliza e nos convoca a refletir, por meio da fotografia, sobre uma questão importante: Como podemos provocar uma sociedade no desmantelamento do seu próprio racismo? Ou como podemos provocar nossa sociedade a confrontar-se com seu racismo estrutural?

 

Notas:

[1] Vale atentar-se para o fato que Duque de Caxias (patrono do exército) também estava inserido nessa crítica. Cf. PEREIRA, A. “O Mundo Negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Niterói: UFF (tese de doutorado), 2010.

[3] Januário Garcia realizou o curso de fotografia no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), o qual era coordenado pelo fotógrafo Georges Racz, chegou a substituí-lo como professor nesse curso. Além disso, estabeleceu contato com outros profissionais da área, agências de publicidades, periódicos e estúdios sonoros para os quais vendia seu trabalho. Esse conjunto de relações promoveu a diversidade de produção fotográfica, a qual incorpora também sua documentação do movimento negro e do cotidiano da população negra. Portanto, sua presença na fotografia contemporânea brasileira se estabeleceu de diferentes modos e em diálogo com essa rede de sociabilidade estabelecida ao longo de sua jornada profissional. Cf. entrevista pública concedida no seminário anual Uma agenda para a fotografia de 2019. Disponível no acervo sonoro do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI/UFF).

[4] MAUAD, A. Fotografia pública e cultura do visual, em perspectiva histórica. IN: Revista Brasileira de História da Mídia. Vol. 2, nº2, jul. 2013/dez. 2013.

 

Referências:

AZOULAY, Ariella. The Civil Contract of Photography, New York: Zone Books, 2008.

BURGIN, Victor. Thinking Photography. Londres: MacMillan Press, 1982.

Entrevista pública de Januário Garcia concedida no seminário anual Uma agenda para a fotografia de 2019. Disponível no acervo sonoro do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI/UFF).

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, nº 92/93. 1888. p. 69-82.

MAUAD, Ana. Fotografia pública e cultura do visual, em perspectiva histórica. IN: Revista Brasileira de História da Mídia. Vol. 2, nº2, jul. 2013/dez. 2013.

OLIVEIRA, Eduardo de Oliveira e. Etnia e Compromisso Intelectual. In: GTAR. Caderno de Estudos da III Semana de Estudos Sobre o Negro na Formação Social Brasileira. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1977. p. 22-27.

PEREIRA, Amílcar. “O Mundo Negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Niterói: Universidade Federal Fluminense (tese de doutorado), 2010.

 

Crédito da imagem destacada: Januário Garcia (Site Ronca Ronca)

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