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Foto do escritorHistória da Ditadura

A Grande Família e a censura (os anos 1970): limites e possibilidades.

Atualizado: 15 de out. de 2020

Quando digo que estudei o seriado da Rede Globo, A Grande Família, dos anos 1970, na monografia e no mestrado, muita gente se surpreende. Geralmente me perguntam: “Como assim? O programa da Nenê, do Agostinho, do Lineu? E o que isso tem a ver com História?” Aliás, algumas pessoas sequer sabem da existência de uma primeira versão que antecedeu ao trabalho realizado entre os anos 2000 e 2010.

Inicialmente, eu sempre respondo, eu queria compreender o processo que levou os roteiristas do seriado – Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha), Armando Costa e Paulo Pontes -, todos comunistas, a escreverem para uma emissora que apoiava o sistema; ou melhor, era fruto desse mesmo sistema: a Rede Globo de televisão “nasceu” em 1965, ano seguinte ao golpe militar.

Na tentativa de integrar o Brasil, segundo os interesses dos governos militares, houve, no período, o aprimoramento técnico em diferentes setores. Por exemplo, a indústria fonográfica e, sobretudo, a televisão foram meios de comunicação que se expandiram consideravelmente. Naquele momento, muitos intelectuais de esquerda atuaram nos grandes veículos de comunicação de massa. Na televisão, para além dos casos já citados, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri e Ferreira Gullar são nomes que não podem ser esquecidos. Para entender a entrada dessa intelectualidade nas mídias em expansão, usei o conceito de “ambivalência”, a partir de dois grandes autores: o francês Pierre Laborie e o russo Mikhail Bakhtin. Resumindo, ao mesmo tempo em que os intelectuais de esquerda se incomodavam com as limitações da atuação na indústria cultural – por exemplo, a Rede Globo sofria censura, mas, também, impunha uma autocensura -, também viam pontos positivos, como a possibilidade de diálogo com um público amplo, jamais imaginável no teatro ou nas pequenas produtoras musicais. Além disso, durante a ditadura, com o acirramento da censura de uma maneira geral, muitas peças foram vetadas, levando vários intelectuais a irem para a televisão como forma de suprir suas necessidades financeiras.

Imagem: Reprodução (Acervo: O Globo)

Imagem: Reprodução (Acervo: O Globo)


Pensando na questão das ambivalências, estudei roteiros e episódios de A Grande Família e consegui um material inédito: 110 pareceres da Censura Federal acerca do programa. Os relatórios dos censores me fizeram repensar uma série de mitos relacionados ao papel da censura durante o regime militar. Estudando parte da historiografia sobre o tema, descobri que práticas censórias eram comuns desde os tempos do Brasil colonial e que muitos governos ditos democráticos tiveram atitudes repressivas. Também desmistifiquei aquela velha ideia do senso comum de que todo censor é “burro”, não percebendo as mensagens nas entrelinhas. Embora casos assim pudessem acontecer, o período ditatorial promoveu cursos de aprimoramento para os censores, que passaram a ser conhecidos como técnicos de censura. Por fim, constatei que grande parte da censura promovida no período da ditadura militar era ligada “à moral e aos bons costumes” e não a assuntos estritamente políticos. A censura política foi mais atuante na imprensa do que nos veículos de entretenimento propriamente ditos, chamados no período de “diversões públicas”.

Em relação ao caso específico de A Grande Família, o programa foi composto por duas fases: uma anterior e outra posterior à entrada dos redatores comunistas. Ambas retrataram uma família unida, amorosa e, ao mesmo tempo, muito briguenta. Seguindo uma tradição do estilo da comédia de costumes, os episódios apresentavam um conflito inicial e a posterior reconciliação entre os membros da família. Os Silva – sobrenome dos protagonistas do programa (Lineu, o pai; Nenê, a mãe; Seu Flor, o avô; Bebel, a filha mais velha; Agostinho, o marido malandro de Bebel, que em realidade era Carraro, e não Silva; Júnior, o filho intelectual, inexistente na última versão do seriado; por fim, Tuco, o filho hippie e desligado) – viviam dificuldades financeiras, que foram agravadas após a entrada de Vianinha, Costa e Pontes na redação. Por exemplo, antes a família morava em Copacabana e depois foi para o subúrbio. Pensando no contexto histórico e social da época, anos 1970, o Brasil começava a sentir a crise do “milagre econômico”. Consequentemente, houve um arrocho salarial da classe média, característica constantemente retratada no seriado.

Os pareceres dos técnicos de censura durante a primeira fase não impuseram corte algum. O seriado foi considerado bem “água com açúcar”, a ponto de uma parecerista relatar que o programa foi “liberado para às 21 horas, todavia, poderia substituir qualquer filme no horário das 14 horas. Desempenho segundo as regras e determinações da Censura Federal. Artisticamente fraco. Comicidade forçada. Sem mensagem. Diversão comercial”.

Imagem: Reprodução (Fonte: Isto É)

Imagem: Reprodução (Fonte: Isto É)


A segunda fase do programa foi mais elogiada do que a primeira. De forma ambivalente, nesse momento, cortes foram impostos. Por exemplo, houve supressão de passagens contrárias aos valores morais defendidos pelo regime: o termo “pô” não foi permitido, possivelmente, por ter sido considerado uma alusão a palavrão. Uma passagem de Tuco cantando com a namorada “Ai, esse cara está me consumindo… De noite, na cama, eu fico…” foi igualmente vetada pela referência à atividade sexual.

De algum modo, a censura política se fez presente em determinados casos. Por exemplo, o termo “democracia”, no contexto da ditadura, foi suprimido. No parecer relativo ao capítulo “Onde foi parar minha cabeça?” (14/06/1973), Júnior, o personagem do programa mais preocupado com as causas humanitárias, estava aflito com as dificuldades financeiras vivenciadas por sua família. A censura permitiu a liberação do episódio, porém, fez uma observação: “Convém, salvo melhor juízo, diminuir as falas, angústias do Paladino (Júnior)” [grifos no original].

Ao contrário da visão que enquadra os censores como burros, em alguns casos foi possível observar que os pareceristas perceberam a crítica às dificuldades financeiras vivenciadas pelos Silva – arquétipo da família tradicional brasileira -, como no caso supracitado de “Onde foi parar minha cabeça?”. Porém, a crise financeira foi interpretada como um problema que não atingia apenas o Brasil, não sendo vista como uma crítica direta ao governo dos militares. Além disto, muitos técnicos de censura elogiaram a postura do programa de apresentar uma dificuldade inicial, mas, posteriormente, resolvê-la, mostrando a união familiar. Afinal, quer forma mais eficaz de valorização da moral e dos bons costumes do que a defesa de valores ligados à família em seus moldes tradicionais?

Antes de analisar a documentação produzida pela censura, imaginei que os censores fossem se preocupar com o fato de que a segunda versão do seriado fora redigida por intelectuais de tradição comunista, tão estigmatizados pelo regime militar, no contexto mais amplo da Guerra Fria. Ao contrário, justamente após a entrada de Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes, o programa foi mais elogiado pelos pareceristas, pois, apesar da crítica ao empobrecimento da classe média, os valores de amor familiar foram enaltecidos em todos os episódios. Ainda que houvesse cortes pontuais a alguns roteiros, seja por irem contra “à moral e aos bons costumes”, seja pela sutil crítica à política, o programa foi bem-visto pelos técnicos de censura. Nesse sentido, lanço o questionamento: A Grande Família foi um programa de crítica social ou de defesa da moral e dos bons costumes? Arrisco responder que, ambivalentemente, as duas coisas.

Roberta Alves Silva é professora de História do Colégio Pedro II.

Para saber mais: 

Carlos Fico. “’Prezada censura’: cartas ao regime militar”. Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, p. 251-286, set. 2002.

Miliandre Garcia. “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2008.

Pierre Laborie. “1940-1955. Os franceses do pensar-duplo”. In: Samantha Quadrat; Denise Rollemberg (Org.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: Legitimidade, Consenso e Consentimento no Século XX – Europa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

Douglas Attila Marcelino. Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de livros e diversões públicas nos anos 1970. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2006.

William de Souza Nunes Martins. Produzindo no escuro: políticas para a indústria cinematográfica brasileira e o papel da censura (1964-1988). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2009.

Denise Rollemberg. “O Bem-Amado e a censura: uma relação rigorosa ou flexível?”. In: Marcos Napolitano; Rodrigo Czajka; Rodrigo Patto Sá Motta (Org.). Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 63-84.

Roberta Alves Silva. A Grande Família: intelectuais de esquerda, Rede Globo e censura durante a ditadura militar (1973 – 1975). Dissertação (Metrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2015.

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