A política da técnica: um olhar sobre a “questão amazônica”
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  • Foto do escritorVinicius Alves do Amaral

A política da técnica: um olhar sobre a “questão amazônica”

No vocabulário político, muitas palavras se encontram associadas a certos temas. Assim, “soberania nacional” e “sustentabilidade” são termos muito recorrentes em discursos sobre a Amazônia brasileira. No entanto, desejamos explorar aqui outra palavra que por muito tempo pontuou as argumentações sobre o destino da região: “técnico”.


Convém definir bem o termo: geralmente se confunde a figura do “técnico” com a do “perito”, ou seja, o especialista em determinado assunto que se torna uma autoridade sempre convocada para debater certos temas. O perito detém um saber próprio, mas o técnico –, no sentido em que a palavra foi empregada durante boa parte do século XX na cena pública –, detém saberes e práticas geralmente associados à organização e gestão do poder.


Embora já existisse na Primeira República (1889-1930) um clamor por uma administração racional, competente e completamente apartada do jogo político por parte de alguns intelectuais, foi só durante a década de 1930 que a figura do “técnico” adquiriu maior proeminência no Brasil. O grande marco, sem dúvida, foi a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) em 1938, cujo objetivo era formar uma burocracia moderna para um Brasil moderno.


Diretores do Departamento Administrativo do Serviço Público
Diretores do Departamento Administrativo do Serviço Público. Fonte: Memorial da Democracia.

Diante do passado recente, onde o centro de decisões tinha sido refém das oligarquias, o “burocrata” se tornaria um personagem capaz de fundar uma dinâmica regulada não pelo apadrinhamento, mas sim pela competência e pelo saber. Como pontua Carlos Henrique Paiva (2009), os quadros formados no serviço público durante o governo varguista se tornaram fiadores de uma identidade construída em oposição ao político, sendo este por vezes confundido com o cacique político ou o “coronel”.


No entanto, aquilo que Marilena Chauí (2014) batizou de “ideologia da competência” carrega em seu âmago uma proposta de administração autoritária, uma vez que escamoteia a participação política sob o argumento da eficiência e da neutralidade. Trata-se de um aspecto que se acentuou no Brasil após o fim do Estado Novo (1937-1945), em paralelo ao crescimento da classe burocrática. Os “técnicos” consolidaram-se como essenciais para o funcionamento da política nacional, especialmente dos projetos desenvolvimentistas.


Assim, encontramos comissões técnicas tanto no segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), quanto nos mandatos de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e, posteriormente, de Jânio Quadros (1961). O desenvolvimento nacional estava na ordem do dia e precisava ser traçado e executado sob bases racionais para ser executado o quanto antes.


Presidentes Getúlio Vargas (1951-1954), Juscelino Kubitschek (1956-1961) e Jânio Quadros (1961).
Presidentes Getúlio Vargas (1951-1954), Juscelino Kubitschek (1956-1961) e Jânio Quadros (1961). Reprodução.

Após os Anos JK, contudo, o desenvolvimentismo passou a ser cobrado sobre um tópico que se tornou cada vez mais sensível na política brasileira: a redistribuição de renda. A situação fundiária e as precárias condições de vida da maioria da população contrastavam com o crescimento econômico auferido nos parques industriais. Assim, alguns políticos trabalhistas, conhecidos por seu reformismo, como Santiago Dantas, elevaram o tom de seus discursos, exigindo maior participação política daqueles esquecidos nos planos de desenvolvimento (ainda que de forma gradualista). Nesse ponto, uma afinidade natural se constituiu entre os “técnicos” e os políticos conservadores e antirreformistas: mesmo reconhecendo a atuação do povo como essencial numa democracia, ambos condenavam a forma como ela vinha sendo realizada e qualificavam-na como pura “demagogia”.


Se nos anos 1930, a afirmação do técnico se dá em oposição à política da Primeira República, nas décadas de 1950 e 1960 a política trabalhista será esse “outro” do discurso tecnicista. Não por acaso, tecnocratas terão trânsito livre nas malhas do governo após o golpe de 1964. Afinal, eles compartilhavam com muitos militares o sentimento de desprezo pela política partidária: para os primeiros, ela representava um obstáculo improdutivo e uma ameaça a seu próprio brio; para os últimos, um fator de divisão cívica.


Assim, longe de ocupar um lugar neutro e equidistante em relação aos grupos políticos em embate na nossa histórica recente, os “técnicos”, nos moldes que se tornaram clássicos na cena pública, tinham seus favoritos. Talvez, através de um exemplo, nosso argumento fique mais claro. O nome de Arthur Cezar Ferreira Reis (1906-1993) é mais associado à historiografia, uma vez que sua pesquisa sobre o passado amazônico é extensa, mas ele também foi um técnico.


De historiador a técnico


Nascido em uma família com antepassados seringalistas – como o coronel Cosme Ferreira –, Arthur Reis formou-se em Direito no Rio de Janeiro e retornou ao Amazonas em 1928 para atuar como professor de História nos colégios tradicionais de Manaus. Além do magistério, ele também colaborava frequentemente com o Jornal do Commercio, órgão classista que era de propriedade de seu pai, Vicente Reis.


 Arthur Cezar Ferreira Reis
Arthur Cezar Ferreira Reis. Acervo pessoal. Reprodução.

Quando houve a Revolução de 1930, o jovem professor foi convidado a ser chefe de gabinete da Junta Revolucionária que se instalou no Amazonas, mas logo saiu do cargo. Em 1935, aceitou ser diretor de Instrução Pública do governador Álvaro Maia. Uma vez no posto, ele defendeu em inúmeras oportunidades a legitimidade da história regional no ensino básico. Em 1939, oito anos após publicar sua História do Amazonas, Arthur Reis passou num concurso para o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Na qualidade de fiscal de seguros, ele se mudou para Belém e, posteriormente, para o Rio de Janeiro.


Na então capital federal, o amazonense participou de diversos cursos de qualificação. Em 1947, foi escolhido para representar o Brasil na Conferência de Comércio e Emprego organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e realizada em Havana. Mas o que ele considerava sua verdadeira aclamação como funcionário público foi sua nomeação para chefiar a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), em 1953. Para entender a importância da SPVEA, no entanto, precisamos compreender seus antecedentes.


Uma questão de interesse nacional


Graças à bancada de representantes amazônicos na Assembleia Constituinte de 1946, a Carta Magna promulgada naquele ano consagrou um dispositivo legal para financiar o desenvolvimento da região, que tinha sido solapado pela crise da borracha em 1910. Esse dispositivo, o artigo 192, previa a remessa de verbas para os estados amazônicos, mas sua aplicação dependia da definição legal do que representava a Amazônia. Nesse sentido, a atuação de vários especialistas (geógrafos, historiadores, administradores, dentre outros) foi essencial para a criação do conceito de Amazônia Legal.


Arthur Reis foi um dos especialistas ouvidos, o que demonstra que nele convergia tanto a figura do técnico (por sua formação e experiência na carreira administrativa) e do perito (pelo seu conhecimento sobre a Amazônia). Para ele, não restava dúvida: a política de desenvolvimento da Amazônia era técnica, pois


[...] não pode ser promovida mantendo-se os sistemas de rotina até então em uso na região, antes exigindo, através da atuação de pessoal qualificado, planos de ação, programas de trabalho de campo em bases que não sejam resultantes do empirismo, mas o fruto da experiência alcançada nos laboratórios, nas usinas, nos centros de pesquisas e nas próprias tarefas diárias, a ensinarem o que deve ser feito (REIS, 2001 [1961], p. 168).

No entanto, mesmo participando do processo, Reis não estava satisfeito com a versão definitiva da Amazônia Legal. Em uma palestra na Escola Superior de Guerra (ESG), o historiador admitiu que a Amazônia não era apenas a floresta tropical, mas que alguns estados estavam se aproveitando do relativismo na interpretação sobre a região para se incluir no rol de beneficiados pelos recursos federais.


Mas apenas definir a área de atuação não era suficiente. O governo federal criou a SPVEA em 1953 como uma autarquia ligada à Presidência da República com o objetivo de regular o desenvolvimento regional da Amazônia. Reis, que havia participado da comissão que formulou o órgão, foi escolhido por Vargas para ser seu primeiro diretor. Porém, o que parecia o ponto alto de sua carreira tornou-se sua grande decepção, uma vez que as verbas enviadas eram poucas, bem como o pessoal qualificado da instituição era escasso. Somavam-se a este quadro, as desavenças políticas entre o superintendente e os governadores, principalmente do estado do Amazonas, que acreditavam que Reis estava sabotando-os.


Assim, o historiador renunciou ao cargo em 1955. Um ano depois, ele foi indicado como o segundo diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), instituição responsável pelo mapeamento científico da região. O inventário do conhecimento amazônico servia ao propósito maior do desenvolvimento, uma vez que era preciso saber o que havia à disposição antes de arregaçar as mangas. Eis um raciocínio muito caro a Arthur Reis, que elogiava o “realismo” dos colonizadores portugueses: diante da exploração do território amazônico, estes se adaptaram ao ambiente para desenvolver técnicas e instituições que protegeram sua possessão. Mirando no exemplo do passado, Reis insistiu por longos anos na necessidade de o Brasil desenvolver a Amazônia, apelando inclusive para os sentimentos cívicos. Nesse sentido, suas falas e escritos ressoaram especialmente entre os militares, animados pelo espírito da segurança nacional.


Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia

A própria ideia da Amazônia enquanto “vazio demográfico” – defendida por autores como o próprio Arthur Reis e Golbery do Couto e Silva – guarda uma afinidade inescapável com a visão dos colonizadores, uma vez que a região é o lar de inúmeros povos indígenas. Contudo, eles não eram encarados como “brasileiros” e muito menos como capazes de participar da formulação de políticas públicas sobre o seu destino na região. Assim, a Amazônia se consolidou como pauta estritamente pertencente aos militares e aos técnicos durante as décadas de 1950 e 1960, sob o pretexto dos ideais de segurança nacional e desenvolvimento que orientavam tais grupos na cena pública. Portanto, a indicação de Arthur Reis como governador do Amazonas em 1964 pelo marechal Humberto Castelo Branco não soa tão deslocada assim: ele era um “filho da terra” e um técnico comprometido com o desenvolvimento da Amazônia, além de também desprezar as forças políticas trabalhistas.


De governador técnico a líder partidário


Enquanto governador, Arthur Reis chamou a atenção dos holofotes da imprensa nacional quando enviou tropas para interditar a Assembleia Estadual do Amazonas e ocupar o Tribunal de Justiça do estado, em agosto de 1964, além de fechar a oficina de dois jornais de oposição. As medidas autoritárias foram tomadas após os desembargadores absolverem oposicionistas do governo, ao passo que os deputados aumentaram seus salários, abalando a proposta de austeridade fiscal do governador.


Em entrevistas, Reis justificava-se alegando que estava agindo em nome da “revolução”, como se seus ideais estivessem acima da ordem constitucional. O objetivo era “higienizar” a máquina pública, algo que coaduna com a visão de muitos tecnocratas. Diante da ausência de punição contra o governador, mesmo com a retirada das tropas, o clima político em Manaus indicava que a vontade do chefe do Executivo estadual era lei. O funcionamento do governo e o desenvolvimento regional não estavam abertos à discussão sob seu mandato: tratava-se de assunto reservado aos técnicos e aos elementos de confiança do governador.


Quando chegou ao Amazonas, o próprio Reis declarou que seu governo seria técnico e deputados estaduais aplaudiram sua fala, confiando na sua neutralidade. No entanto, logo ficou claro que os adversários dos trabalhistas tinham mais espaço no governo. Na eleição indireta para governador em 1966, Reis impôs o nome de seu secretário da Fazenda, o empresário Danilo Duarte Matos Areosa,

Empresário Danilo Duarte Matos Areosa (1921-1983), governador do estado do Amazonas entre  1967 e 1971.
Empresário Danilo Duarte Matos Areosa (1921-1983), governador do estado do Amazonas entre 1967 e 1971. Imagem: Agência Nacional/ Arquivo Nacional. Wikimedia Commons.

como seu sucessor, o que foi acatado pela maioria da Assembleia, de modo coerente com as novas diretrizes partidárias: uma das condições essenciais para a fundação da Aliança Renovadora Nacional (Arena) era de que o governador deveria ser o presidente estadual do partido. Porém, Reis não se sentia confortável em dirigir uma organização com a qual ele, enquanto técnico, não possuía qualquer familiaridade ou simpatia. Mas o bipartidarismo instituído pela ditadura militar pode ser entendido como uma concessão não só à classe política, mas também à opinião pública, no sentido de afastar a “suspeita” de que se tratava de um Estado de exceção nos moldes totalitários, ou seja, um regime de partido único.


Reis continuou não muito afeito às circunstâncias, impondo um nome de sua confiança sem experiência como político. Areosa, no entanto, estava a par de seus planos de desenvolvimento regional, e se tornaria famoso por ser o governador que recebeu os primeiros benefícios gerados pela Zona Franca de Manaus.


Vozes sob constante suspeita


Na década de 1970, os efeitos dos projetos desenvolvimentistas já se faziam sentir na Amazônia. Era o tempo da euforia com a Zona Franca de Manaus, em pleno funcionamento, e com a Transamazônica, uma das muitas obras faraônicas do “Brasil Grande”. No saldo dessa reconfiguração social da Amazônia pela ditadura militar, também encontramos o agravamento dos conflitos fundiários no campo, com a política de colonização agrícola e os massacres de indígenas.


O destaque dado para os atingidos pelos projetos desenvolvimentistas a partir dos anos 1980 ajudou a alargar o mérito da discussão sobre os rumos da Amazônia. Com a ajuda da imprensa alternativa e dos movimentos sociais eclesiais, como a Pastoral da Terra, ou não, no caso dos antropólogos e ecologistas, a região deixou de ser tema de interesse apenas de técnicos e militares.


Na década de 1980, em meio ao processo de transição democrática, a grande novidade foi a mobilização de lideranças indígenas por meio de associações fora da alçada da Fundação Nacional do Índio (Funai) para representar os interesses de povos antes negligenciados pelo Estado. Se antes a discussão era direcionada ao poder, como se todas as propostas fossem apresentadas somente ao Estado, a sociedade civil passou a ser a maior interlocutora desses personagens que entravam em cena no debate público.


Na trajetória de Arthur Reis, esse momento coincide com um período de retração do historiador e “técnico” da vida pública. Longe de se considerar ameaçado por estes novos elementos, Reis dizia-se satisfeito com os rumos tomados pela Amazônia nos anos 1970 e, por isso, voltou ao magistério, agora no ensino superior.


No entanto, nem todos reagiram de forma tão branda quanto Reis. Não é raro encontrarmos declarações e mesmo publicações de militares e técnicos desqualificando as falas de lideranças camponesas e indígenas, de antropólogos e de missionários. No campo discursivo, o embate que começou a se desenvolver a partir da década de 1980, entre novas e velhas vozes sobre a Amazônia, se fundamentou, entre outras coisas, numa oposição entre a autoridade e a vivência. De um lado, elementos capacitados a falar e tratar dos problemas amazônicos, porque detinham um saber (supostamente) objetivo ou uma missão cívica (a defesa da segurança nacional) e, do outro, aqueles que falavam por grupos sociais que estavam sendo afetados pelas políticas públicas para a região.


Não por acaso, os primeiros geralmente levantam a suspeita de que os últimos não podiam participar do debate devido ao seu forte envolvimento com o assunto (como se sua vivência os cegasse para a objetividade científica) ou, no caso mais grave, por estarem conscientemente sabotando o desenvolvimento e a soberania nacional.


Quando o professor Frederico Arruda, da então Universidade do Amazonas, fundou, ao lado de estudantes e intelectuais, o Projeto Jaraqui, no início de 1980, para conscientizar a população sobre a exploração predatória da floresta e a integração forçada dos indígenas, o Jornal do Commercio de Manaus publicou um editorial no qual alertava que “por detrás de movimentos tão ‘espontâneos’ como este podem ocultar-se forças que estaríamos longe de conceber na sua procedência e força”.


Mesmo o primeiro governador do Amazonas eleito diretamente em 1982, Gilberto Mestrinho, desqualificava a pauta conservacionista dos ambientalistas em seus discursos. Inclusive, quando reeleito dez anos depois, ele se tornou um dos maiores detratores da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (popularmente conhecida como ECO-92), realizada no Rio de Janeiro. Para o político, a defesa da sustentabilidade estava ligada a um complô de poderosas nações, principalmente os Estados Unidos, para retirar das mãos do Brasil e dos demais países amazônicos o direito de exploração sobre a região. Em seu ataque aos discursos do movimento Greenpeace, Mestrinho teria afirmado que seus membros:


Baseiam reivindicações em teorias que não possuem base científica necessária. Aliás, toda a convenção debate teorias sem fundamento científico exaustivamente comprovado. Por exemplo, dizem que a camada de Ozônio está se reduzindo. Mas um estudo da Nasa mostrou recentemente que a camada aumentou (Jornal do Brasil, 8 jun. 1992, p. 2).

Na mesma época, o analista político Carlos Castello Branco criticou tanto a pauta ecológica quanto a indígena por serem guiadas mais por lugares comuns do que pela ciência. O articulista, preocupado que o olhar condescendente para com “sociedades primitivas” comprometesse o potencial amazônico, concluía que “o destino da humanidade e a sobrevivência da Terra nada têm a ver com a demarcação das reservas ianomâmis” (Jornal do Brasil, 7 jun. 1992, p. 2).


As afirmações de Mestrinho e Castello Branco demonstram muito bem como os traços do pensamento autoritário e corporativo sobre a Amazônia, reforçados durante a ditadura militar, sobreviveram durante a Nova República.


Aos trancos e barrancos


Da parte do governo federal, vale ressaltar algumas iniciativas importantes no sentido de romper com a tradição das políticas públicas para a Amazônia fundadas no corporativismo. Em 1985, foi publicado o I Plano de Desenvolvimento da Amazônia: Nova República (1986-1989) pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), sucessora da SPVEA. O diretor da instituição, Henry Hayath, assinalava que o programa tinha sido guiado por duas premissas básicas: “[...] promover um planejamento mais participativo e, ao mesmo tempo, assegurar uma técnica ascendente ao processo de planejamento regional”. (SUDAM, 1985, p. 7)


Data de 1985, como consequência do novo enfoque para a Amazônia, o encerramento do Ministério do Interior, utilizado durante a ditadura militar para coordenar as ações desenvolvimentistas na região, e a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente. As diretrizes do I Plano, contudo, não receberam continuidade pelos governos de Fernando Collor (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1995). Durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), houve a criação do Conselho Nacional da Amazônia em 1995, mas o órgão não chegou a funcionar de fato. Uma das diretrizes do Conselho era a participação dos governadores em audiências públicas, o que representava um aceno ao que fora planejado em 1985 pela SUDAM.


Durante o primeiro governo Lula (2003-2011), as organizações ecológicas saudaram a participação de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente. Líder política engajada na luta pelos “povos da floresta”, celebrada por Chico Mendes, Marina Silva representou a chegada ao poder de alguém com um perfil intimamente ligado ao combate das desigualdades sociais na Amazônia. No entanto, os projetos de desenvolvimento de grande porte, representados na construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no Pará, se sobrepuseram aos desígnios de Silva, que, em protesto, largou o cargo em 2008. Carlos Minc, ecologista de forte atuação no Rio de Janeiro, a substituiu como ministro.


Entre 2010 e 2018, o confronto entre estudos técnicos e audiências públicas sobre os projetos de desenvolvimento amazônicos manteve-se tenso, embora raramente tenha conquistado a atenção nacional como nas décadas de 1980 e 1990. Certamente será difícil encontrarmos algum personagem análogo a Arthur Reis transitando nesse circuito, seja pelas suas credenciais burocráticas, seja pela sua relevância intelectual.


Na realidade, o afastamento de especialistas foi uma prática corriqueira nos últimos anos, como ficou evidente no caso do ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e atual presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), Ricardo Galvão, que foi exonerado por alertar para o aumento do nível de desmatamento na Amazônia.


Qualificação administrativa não foi exatamente um dos maiores critérios de promoção durante o governo Bolsonaro (2018-2022), mas é possível identificar uma cisão entre os formuladores de políticas de desenvolvimento para a Amazônia: de um lado, aqueles ligados ao governo federal e que enxergam na política de incentivo fiscal da Zona Franca um entrave arcaico à livre iniciativa do mercado; e, de outro, alguns nomes que ainda defendem o modelo desenvolvimentista, no qual o Estado tem maior protagonismo.


Nada mais emblemático nesse sentido do que as atas do Conselho Nacional da Amazônia Legal, órgão criado como um desdobramento do Ministério do Meio Ambiente, mas que depois de 2020 passou para a alçada da Presidência da República. Entre as muitas defesas da legalização do garimpo em terras indígenas, as atas demonstram o quanto os integrantes do Conselho, presidido então pelo vice-presidente Hamilton Mourão, estavam incomodados com a cobertura da imprensa sobre a região.


Em reunião de fevereiro de 2021, após Mourão criticar o “Partido da Suprema Imprensa”, o general Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), defendeu que o governo Bolsonaro perde “muito na narrativa” sobre a Amazônia, algo que atribui a “uma imprensa completamente contaminada” e despreparada.


O tema da reunião era o combate à pandemia de Covid-19 entre as comunidades indígenas, o que se tornou o gancho perfeito para justificar a demora do governo federal em adquirir as vacinas. Ficou evidente que as mazelas da Amazônia, para os membros do Conselho, eram tidas como parte de uma narrativa tecida pela imprensa. Ou seja, o conhecimento “real” do estado da região era propriedade do governo federal e somente dele. Tudo mais era “narrativa”.


É possível questionar como a facilitação da entrada de empresas estrangeiras como grandes mineradoras pode ajudar a defender a soberania nacional na Amazônia, mas a incoerência foi reinante em diversos outros setores do governo no período.


Muitos são os desafios que cercam a Amazônia, mas, se quisermos realmente encontrar uma alternativa viável, precisamos concebê-la não como uma questão técnica ou militar, como se todos os demais aspectos estivessem subordinados a esses interesses. A setorização do tema não condiz com a sua dinâmica real. Estrutura fundiária, ecologia, comunidades tradicionais e desenvolvimento: tudo está intimamente entrelaçado na Amazônia.


A ilusão da objetividade da técnica se torna evidente quando acompanhamos a trajetória de personagens como Arthur Reis, mas o tratamento recente do governo federal com relação à Amazônia revela desprezo com o discurso da competência. No entanto, essa constatação não implica dizer que houve um avanço em direção a políticas públicas mais democráticas. A negligência com os interesses dos povos da floresta e do ambiente continuou vigente, só que sem a carapaça que disfarçava o teor autoritário com um suposto saber neutro.


Dizia o jornalista Sebastião Nery que um governo tecnocrata é como um maestro: rege de costas para o público. O que vimos recentemente sobre a Amazônia foi um maestro que acena para os espectadores no camarote, enquanto finge reger uma orquestra. A grande questão continua sendo quando poderemos finalmente contar com a batuta em mãos.


 

Referências:

ANJOS, Anna Beatriz dos. Mourão admitiu necessidade de combater garimpo em terra Yanomami, mas não agiu. Agência Pública, 06 mar. 2023.

CHAUÍ, Marilena. A ideologia da competência. Belo Horizonte/ São Paulo: Editora Autêntica/ Fundação Perseu Abramo, 2014.

LEIRNER, Piero C. de. O Exército e a questão amazônica. Estudos Históricos, v. 8, n. 15, 1995.

MARQUES, Adriana Aparecida. Amazônia: pensamento e presença militar. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, 2007.

MIYAMOTO, Shiguendi. Geopolítica e poder no Brasil. Campinas: Papirus, 1995.

PAIVA, Carlos Henrique Assunção. A burocracia no Brasil: as bases da administração pública nacional em perspectiva histórica (1920-1945). História, São Paulo, vol. 28, n. 2, 2009.

PETIT, Pere. O golpe civil-militar e o partido dos militares (Arena) no estado do Pará. Historiae, Rio Grande do Sul, n. 5, v. 2, 2014, p. 179-226.

REIS, Arthur Cezar Ferreira. A Amazônia e a integridade nacional [1961]. Brasília: Senado Federal, 2001.

SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA. I Plano de Desenvolvimento da Amazônia: Nova República (1986-1989). Belém: SUDAM, 1985.


Como citar este artigo:

AMARAL, Vinicius Alves do. A política da técnica: um olhar sobre a “questão amazônica”. História da Ditadura, 10 jul. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-politica-da-tecnica-um-olhar-sobre-a-quest%C3%A3o-amaz%C3%B4nica. Acesso em: [inserir data].

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