A tradição anticomunista no Brasil, as eleições de 2018 e o início da era Bolsonaro
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A tradição anticomunista no Brasil, as eleições de 2018 e o início da era Bolsonaro

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

O historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da UFMG, conversou com Marco Antônio Machado Lima Pereira[*], colaborador do História da Ditadura. Motta é um dos mais importantes especialistas brasileiros em ditaduras militares latino-americanas. É autor de vários artigos e livros sobre o tema, entre os quais Partido e sociedade, a trajetória do MDB (UFOP, 1997), Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (Perspectiva, 2002), Jango e o golpe de 1964 na caricatura (Zahar, 2006) e As universidades e o regime militar (Zahar, 2014), finalista do Prêmio Jabuti em 2015 na categoria Ciências Humanas.

Foto: acervo pessoal do autor

HD – No final do artigo “O vermelho e o medo”, publicado em novembro de 2015, você afirmou que a atual mobilização anticomunista não parece ter a mesma força das grandes ondas históricas (1935-1937; 1946-1948; 1961-1964) e que é improvável uma reedição de 1964 pela via do anticomunismo. No entanto, como você explicaria o fenômeno Bolsonaro que se ampara justamente nesse discurso de salvar o Brasil do “fantasma do comunismo”?

Aquele texto foi escrito em meados de 2015, sob o impacto da polarizada campanha eleitoral de 2014. O ponto central da análise era mostrar o retorno da temática anticomunista ao centro do debate político, que se evidenciou na campanha eleitoral quando, por exemplo, a consigna “vai para Cuba” se generalizou, assim como os ataques ao PT como representante de uma nova ameaça comunista. Embora tenha havido mobilização muito forte em 2014, ela não foi suficiente para derrotar a candidatura de Dilma Rousseff. Logo em seguida à posse da eleita, nos primeiros meses de 2015, começou a campanha pelo impeachment, mas com base principalmente no argumento da corrupção e sob o impulso das atividades da Lava-Jato, o que momentaneamente colocava o tema anticomunista em segundo plano. Por isso fiz aquela afirmação, de que uma reedição de 1964 pela via do anticomunismo era improvável, o mais provável parecia ser a exploração do tema da corrupção, tal como de fato se passou. Porém, isso não significava reduzir a importância da temática antipetista-anticomunista, que afinal era o tema central do artigo que você mencionou na pergunta. Naquela altura era evidente o retorno do anticomunismo ao cenário principal, mas não tão claros os seus possíveis efeitos políticos, já que a direita perdeu as eleições e para fundamentar o impeachment era necessário algo mais sólido, pois seria absurdo demais condenar Dilma por supostas ações de caráter comunista durante seu governo. Para ser franco, naquela altura achava improvável a aprovação de um impeachment – aliás, creio que era a opinião da maioria dos analistas políticos –, pois o governo tinha ainda alguns trunfos e meios para reduzir a força da oposição.

De qualquer modo, após a derrubada de Dilma e a ascensão de Temer, a que se seguiram a progressão da crise política e econômica e o começo da campanha eleitoral de 2018, surgiram condições propícias para o retomada em tom mais agudo da mobilização antipetista-anticomunista entre a opinião de direita. O ponto chave para entender isso foi um fenômeno que surpreendeu a muitos observadores: a rápida recuperação do prestígio do PT e sobretudo de Lula. O governo Temer logo se revelou um fiasco, envolvido em escândalos e denúncias que o paralisaram. Além disso, suas medidas econômicas neoliberais (como a reforma trabalhista) não trouxeram alívio à situação do país, ao contrário do prometido. Tudo somado, em poucos meses se fortaleceu a candidatura de Lula para 2018, o que aguçou o sentimento antipetista, bem como as estratégias para insufla-lo. A guinada à direita que vinha ocorrendo desde 2013 ganhou novo impulso diante do medo do retorno do PT ao poder, com notável fortalecimento dos discursos mais radicais e conservadores na medida em que candidaturas da direita moderada não decolaram, em grande medida um fruto da destruição do sistema político provocado pela Lava-Jato. Bolsonaro, então, navegou nessas águas, capturando inicialmente o sentimento direitista radical e conservador, e mais adiante atraindo também os votos da direita moderada, que ficou sem candidato viável. Hoje sabemos que os planos para uma candidatura Bolsonaro são anteriores, mas a sua aparição pública ocorreu nos primeiros meses de 2015, quando o então deputado federal pelo Rio de Janeiro compareceu – e se fez mostrar – nas manifestações pró-impeachment realizadas em São Paulo, adotando claramente a postura de candidato a presidente.

Não há dúvida que a candidatura Bolsonaro se amparou na tradição anticomunista, que foi reapropriada e adaptada aos novos tempos, o que contribuiu de maneira central para a construção do antipetismo. Há semelhanças e singularidades entre antipetismo e anticomunismo, que alguns propagandistas de direita procuram sintetizar (de maneira simplória) com a fórmula comuno-petismo. Tenho analisado essa questão em textos recentes, especialmente em um capítulo a ser publicado no livro Pensar as direitas na América Latina (Alameda) que vai sair nas próximas semanas. Apesar das muitas novidades que encontramos nos discursos antiesquerdistas atuais, claramente existe forte conexão com as tradições passadas, de que eles se nutrem e de que extraem parte da sua força. A base argumentativa das denúncias atuais sobre o perigo vermelho é essencialmente a mesma dos anos 1920-30, que, por sua, vez foi reapropriada e reciclada nos anos 1960 e no golpe de 1964. Penso que o quadro atual confirma o acerto da tese central de Em guarda contra o perigo vermelho, qual seja, o anticomunismo havia se enraizado na sociedade brasileira e se constituído em tradição política reapropriada e reconstruída em diferentes momentos históricos.

HD – Quais fatores poderiam ser apontados para explicar a expansão da influência dos valores das chamadas novas direitas brasileiras, especialmente da extrema-direita?

Primeiro gostaria de fazer uma defesa do uso da metáfora da onda. A rapidez como a influência direitista cresceu entre 2013 e 2016 é compatível com a imagem de onda, de maneira semelhante ao que tivemos em 1935-37 e 1961-64. Mas isso não significa imaginar que essa onda surgiu do nada. Na verdade, a metáfora sugere a ideia de uma situação em que há marolas relativamente calmas (os militantes dos grupos de direita que estão sempre presentes, embora invariavelmente minoritários), ou seja, o mar está sempre em movimento, porém, a certa altura surge uma confluência de fatores a provocarem crises e tempestades.

São muitos os elementos que ajudam a entender essa onda ou guinada direitista, reiterando que o fenômeno tem tanto de novidade como de reapropriação de tradições anteriores. Um dos pontos é a reação natural contra governos de centro-esquerda que comandaram o país durante aproximadamente 13 anos, durante esse período colecionando inimigos e detratores. Os grupos que partilham a sensibilidade conservadora jamais aceitaram inteiramente os governos petistas, alguns deles apenas os toleraram nos momentos favoráveis, especialmente quando a economia crescia a elevadas taxas. Quando a crise econômica se instalou em 2014 as razões para tolerância desapareceram, aumentando o mal humor de muitas pessoas em relação ao governo. Há que mencionar também o impacto das acusações de corrupção contra os governos petistas, sobretudo os casos produzidos pela Lava-Jato, que tiveram notável incidência entre a opinião mais à direita do espectro político.

Necessário perceber, portanto, que o crescimento da direita foi uma resposta aos governos petistas. Eles não foram radicais e tampouco seguiram uma pauta socialista, porém, algumas de suas políticas afrontaram valores da direita conservadora e da liberal, como o aumento do intervencionismo estatal, a implantação de bolsas e cotas sociais, os programas visando a igualdade de gênero e racial, bem como as políticas em defesa das minorias sexuais. Um aspecto importante aqui é a reação dos setores religiosos contra a pauta de mudanças no campo dos valores e da moral, que afetou setores integristas católicos[1], mas, principalmente os grupos evangélicos, que são bem representados no sistema político. Daí o discurso de defesa da família tradicional e da religião contra o “comunismo”.

Outro tema fundamental: as ações governamentais no campo da justiça de transição referida à ditadura, por moderadas que fossem, provocaram o descontentamento de segmentos militares que igualmente se embandeiraram em torno das palavras de ordem antiesquerdista. Alie-se a isso o incômodo provocado à direita pela orientação diplomática dos governos petistas, moderadamente distantes dos EUA e tendendo à busca de novos parceiros e ao fortalecimento do multilateralismo, ao lado do temor que a simpatia pelo regime chavista poderia trazer implicações internas ao Brasil. Mais um aspecto importante, que afetou a largos setores sociais foi o impacto da criminalidade comum, ou seja, o medo em relação à insegurança pública. Discursos direitistas acusaram os governos de esquerda de conivência com os criminosos comuns e convenceram alguns grupos sociais de que somente o aumento do autoritarismo estatal traria resposta à insegurança do dia a dia.

Enfim, no período entre 2013-2015 surgiram condições propícias ao crescimento da opinião de direita, o que catapultou ao poder gurus, líderes e pequenos grupos de militantes que desde os anos 1990 vinham labutando por um (re)despertar conservador e/ou liberal no Brasil, o que àquela altura parecia improvável.

HD – No início de junho de 2016, um grupo de historiadores escreveu o manifesto “Historiadores pela democracia” chamando atenção para o fato de que o golpe de 2016, articulado entre os setores do legislativo, da mídia e do judiciário “representa a força do passado, com suas bandeiras de privilégio de classe, misoginia, racismo e corrupção” e que se o afastamento da presidente Dilma se concretizasse caminharíamos rumo ao Estado de exceção. Na sua opinião, qual é o nosso papel enquanto historiadores nessa conjuntura marcada pela retirada de direitos sociais/trabalhistas, pela generalização do ódio e de sua consolidação enquanto projeto político e pela criminalização dos movimentos sociais?

Penso que essa questão aponta para duas direções, nossa atuação como profissionais da história e/ou como cidadãos. É difícil separar as duas esferas, pois o trabalho do historiador é influenciado por suas convicções cívicas e, além disso, frequentemente tem repercussões políticas, mas, mesmo assim vou restringir a resposta ao aspecto profissional.

Em essência, acho que devemos continuar fazendo nosso trabalho, pois o conhecimento da história contribui para entender a situação que estamos vivendo. A história e as ferramentas profissionais do historiador podem ser colocadas a serviço da interpretação das origens da crise e oferecer contribuição útil ao seu conhecimento, ao lado, obviamente, do trabalho dos cientistas sociais. Segue válida uma das funções tradicionais da história, que é oferecer às pessoas conhecimento útil para buscarem orientação no mundo social e escolherem caminhos de ação. Um ponto importante é que o conhecimento histórico depende de liberdade e ambiente democrático, de maneira que somos naturalmente propensos a criticar o autoritarismo e a violência política e a defender o respeito aos direitos sociais (em sentido amplo), ainda que às vezes historiadores se coloquem a serviço de ditaduras. Assumindo que o nosso norte é garantir (ou construir) uma sociedade democrática valeria a pena enfatizar a pesquisa de alguns temas na história, por exemplo, a escravidão, as desigualdades sociais, os regimes e as culturas autoritárias, as tentativas de construir instituições democráticas.

Um outro aspecto importante é que estamos envolvidos em batalhas muito atuais pela construção de significados e interpretações da história brasileira. Alguns grupos de direita (e, ao que parece, logo o aparelho estatal vai seguir o mesmo rumo) têm investido na construção de narrativas históricas orientadas por seus valores e convicções, tanto por meios impressos como, e principalmente, utilizando recursos visuais e virtuais. Por aí eles têm minimizado os impactos sociais da escravidão no Brasil e da violência das ditaduras, especialmente da última que, aliás, negam ter sido uma ditadura. Os historiadores devem entrar nesse debate para ajudar a esclarecer a opinião pública e combater as manipulações do conhecimento histórico (que têm fins políticos). Não se trata é claro de negar a liberdade de opinião ou de cercear o livre debate sobre as interpretações dos eventos e processos históricos. No entanto, em alguns casos é possível estabelecer verdades factuais e, principalmente, apontar a existência de falsidade em certas versões. Pode-se dizer que existe uma versão local de negacionismo referida à ditadura militar, o que é preciso debater com a devida seriedade. Para além do fato de que se trata de um equívoco histórico, negar a existência de uma ditadura militar nos anos 1960-70 levaria a minimizar os riscos de eventual retorno do autoritarismo.

Outro grande desafio associado ao anterior é como alcançar o grande público, que tem se mostrado distante da produção acadêmica. Os propagandistas de direita montaram estratégias eficientes de comunicação de massa via internet, de que se utilizaram para colocar em larga circulação sua visão ideológica da história (ao passo que acusam seus adversários por fazerem a mesma coisa). É preciso encontrar meios para divulgar mais amplamente o conteúdo dos debates e pesquisas acadêmicas, indo além do público tradicionalmente atingido.


HD – Como você avalia a declaração do general da reserva Aléssio Ribeiro Souto – integrante da campanha de Jair Bolsonaro – que em entrevista ao portal UOL em setembro de 2018 disse que os livros de história que não trazem “a verdade sobre 1964” devem ser eliminados?

É a volta da censura que paira no ar, sem dúvida. A dúvida é se a intenção é restringir tal intervenção aos livros didáticos ou se pretendem atingir também a produção acadêmica. Uma medida que se pode imaginar provável é realização de prática de censura interna ao MEC no momento de seleção dos livros didáticos a serem adotados nas escolas públicas, de maneira a privilegiar os que “falam a verdade” sobre o período de 1964-84, uma ação que seria mais fácil de empreender pelo governo e, talvez, mais difícil de comprovar para efeito de protesto e devidas ações de denúncia. Pelo que dizem os porta-vozes do governo, sua maior preocupação é com a formação dos valores políticos e morais dos jovens, por isso a expectativa de maior intervenção no campo do ensino básico. Veremos se existem planos também para cercear as publicações acadêmicas, que demandariam ações de censura mais explícitas. A ver se o governo terá a força e o apoio político necessários para ter sucesso em tais empreitadas, uma vez que haverá resistência. =

HD – E a posição do atual Ministro da Educação, o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, que chamou a atenção em seu blog para a necessidade de celebrar o golpe civil-militar de 31 de março de 1964 e defendeu o retorno da disciplina de educação moral e cívica na educação básica?

As comemorações de 1964 em sentido positivo já vinham ocorrendo antes e tendem a se incrementar. Grupos dentro e fora do governo vêm investindo nisso, inclusive com estratégias para alcançar público mais amplo por meio de recursos audiovisuais. Anuncia-se para o próximo 31 de março a estreia de um filme documentário construído a partir do ponto de vista dos defensores da ditadura, pode-se imaginar que mobilizará bastante a tecla anticomunista. Isso significa que as batalhas de memória e historiográficas em torno do golpe e da ditadura vão se intensificar, com uma ofensiva dos grupos de direita para tentar prevalecer sua “boa memória” sobre 1964, o que representa não apenas a defesa de um ponto de vista sobre o passado, mas a afirmação de uma imagem positiva com propósito de atribuir legitimidade a um governo comandado por militares no presente.

A proposta de retorno da educação moral e cívica vai em mesmo sentido, mais uma medida nostálgica em relação à ditadura militar para os que se sentem inseguros em relação à manutenção da ordem nos dias de hoje. Parece adequada com a célebre afirmação de que o candidato eleito pretendia voltar ao Brasil de meio século atrás…

HD – No dia 25/11/2018, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, escreveu em seu perfil no Twitter a necessidade de recuperar “a intentona comunista ocorrida há 83 anos”. O objetivo, segundo ele, era evitar “para que não tenhamos nunca mais, irmãos contra irmãos vertendo sangue verde e amarelo em nome de uma ideologia diversionista”. Levando em conta que a postagem ocorreu quase um mês após a vitória de Bolsonaro, que leitura você faz da postura do general e por que para o Exército brasileiro seria necessário relembrar o episódio?

Trata-se de mais um indício de que se pretende reativar a tradição anticomunista, pois a celebração de 27 de novembro constituía momento chave nas mobilizações contra o perigo vermelho, especialmente com a cerimônia ao pé do monumento aos mortos pela “Intentona” (na praia vermelha) e a edição de ordens do dia pelos comandantes militares. Essas comemorações atraíam civis também e ganhavam publicidade midiática – com maior ou menor ênfase a depender do contexto político –, mas os principais envolvidos eram os próprios militares, que investiram fundo na construção da mitologia da “Intentona”. Essa celebração foi usada não apenas para construir uma versão repulsiva sobre o significado do comunismo, mas, também, para unir os militares em torno de inimigo comum. Essa análise não implica reduzir a seriedade da insurreição liderada por comunistas e aliancistas em 1935, que tentaram derrubar o governo de Getúlio Vargas. O ponto é que as versões construídas sobre o episódio geraram uma caricatura grotesca, que apagava as semelhanças do movimento com as anteriores revoltas tenentistas e investia no tema do comunismo intrinsecamente malvado e sanguinário, como na versão – sem comprovação empírica – de que os comunistas mataram soldados legalistas enquanto dormiam. Veremos qual será a repercussão efetiva do chamado do general Villas Boas. A questão é saber se os militares ainda necessitam de tal recurso para promover sua unidade interna, e se a tentativa de requentar a tradição do 27 de novembro será factível nos dias atuais.

HD – Como você vê a forte presença militar no governo de Jair Bolsonaro (com quase um terço dos ministérios), algo que não aconteceu nem durante os governos da ditadura?

Eu vejo com preocupação, naturalmente. É o retorno dos militares ao comando do Estado brasileiro, desta vez por vias eleitorais e sem necessidade de um golpe armado, ao menos até agora. Gostaria de ressaltar que não tenho preconceitos contra os militares e reconheço seu papel positivo em certos momentos da história brasileira. Reconheço também a importância das Forças Armadas na defesa da soberania do país e de nossas fronteiras. No entanto, o problema é que eles ainda não fizeram uma reflexão crítica sobre sua participação na ditadura de 1964, a qual seguem defendendo na perspectiva de que salvaram o Brasil do comunismo. Nesse sentido, há razões para temer uma nova deriva autoritária, embora os líderes neguem tal intenção. Mas, como crer que estamos realmente livres do risco de nova ditadura caso o atual governo não consiga estabilidade? Além disso, uma forte presença militar em qualquer governo seria preocupante, mesmo sem histórico de ditaduras como no caso do Brasil. Os militares são profissionais treinados para o comando vertical, para o respeito à hierarquia e a obediência sem questionamentos. Tal perfil não é adequado ao governo democrático, em que se deve respeitar opiniões diferentes (e críticas) e negociar com os adversários. Como eles têm o domínio das armas há sempre a possibilidade de recorrer à força caso seu poder seja questionado, tal como se passou em 1968. Creio que estamos andando no fio da navalha, tanto mais porque o novo presidente é frágil politicamente e o grupo militar tende a aumentar cada vez mais a sua influência.

HD – Em que medida a tradição anticomunista – cujo discurso foi utilizado como pretexto-chave para instaurar dois períodos de ruptura institucional: o Estado Novo, em 1937, e o golpe civil-militar, em 1964 – se associa a persistência de uma cultura política autoritária no país?

A tradição anticomunista tem servido para expressar o medo de alguns grupos sociais com relação a processos de transformação social e cultural, ou seja, ela serve para consolidar e expressar sentimentos conservadores em relação a valores morais e religiosos e às hierarquias sociais tradicionais. Em outras palavras, o perigo vermelho expressa sentimentos de temor que ultrapassam os objetivos e a força real dos comunistas, servindo para expressar o medo de que as classes populares e os setores excluídos (negros) ascendam socialmente e com isso questionem as hierarquias. Além disso, o “comunismo” é representado como foco originador de mudanças de comportamento moral e religioso, ou seja, a sua imagem é manipulada de modo a servir de fonte para “males” de todo tipo. É certo que os comunistas históricos defendiam a revolução para estabelecer igualdade social e questionavam os valores morais religiosos, no entanto, isso não significa que todo projeto de mudança social e comportamental possa ser tachado de comunista.

Portanto, existe uma estratégia discursiva de generalizar o rótulo comunista para aumentar a gravidade ou a sensação de perigo em relação a certas mudanças sociais que incomodam a opinião conservadora. O fato é que essa sensação de medo e insegurança quando levada ao grau máximo pode estimular muitas pessoas a aceitarem intervenções autoritárias em nome de suposta segurança. Por isso a importância histórica do anticomunismo nas estratégias de legitimação de golpes autoritários, como em 1937 e 1964. Os medos sociais em circulação atualmente, que incluem outros temas além da ameaça vermelha como a criminalidade comum e a corrupção, têm estimulado certos grupos a apostarem no incremento do autoritarismo e da violência estatal, como se trouxessem solução aos problemas e aumentassem a segurança. Paradoxalmente, e lamentavelmente, os mesmos grupos têm aceitado transgressões ao sistema legal em nome de suposta busca da justiça. Tais sentimentos e temores contribuíram para o resultado eleitoral de 2018, levando a extrema-direita a ganhar pela primeira vez o poder no Brasil por vias eleitorais. A questão é saber se os vitoriosos conseguirão (e se desejarão) governar respeitando as normas institucionais vigentes ou se vão apostar em algum tipo de intervenção mais grave, ou seja, um golpe autoritário de formato clássico. Pelo que vimos nas mobilizações políticas recentes e em algumas pesquisas de opinião, parte da população aceitaria uma intervenção autoritária mais explícita. Tomara que a situação não evolua (retroceda) em tal direção.

 

[*] Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor do livro Las armas y las letras dos voluntários brasileiros na guerra civil espanhola: identidades, memórias e trajetórias (Multifoco, 2017). Colaborador do site História da Ditadura.

[1] Intelectuais católicos que assumem uma posição política antiliberal e antissocialista, fazem forte oposição às tendências católicas progressistas e são simpatizantes dos governos militares.

 

Crédito da imagem destacada: Eleitora veste a camisa que remete a um eterno retorno da ditadura militar Autor: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

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