A necessidade de dizer o indizível
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  • Foto do escritorCamila de Almeida

A necessidade de dizer o indizível

Jamais esquecerei o dia em que fui pela primeira vez ao escritório do advogado Dino Lopes. Embora sabendo que trataríamos ali dos anos de ditadura e da repressão em São Borja (RS), havia um sentimento de vergonha, um certo constrangimento inexplicável. Fui recebida em seu escritório como qualquer outra cliente. Aguardei minha vez e, ao ser recebida em sua sala, notei o tempo em seu rosto, assim como em seu escritório cheio de livros antigos, móveis de madeira nobre, enciclopédias Barsa e processos cujo conteúdo me explicou brevemente.


Dino Lopes em seu escritório. Reprodução.

Sem demora, Dino colocou sobre a mesa dois grandes maços de papéis que ficavam guardados em local diferente daqueles processos em que trabalhou como advogado. Com aproximadamente mil páginas, esses documentos ficavam em sua escrivaninha, a um esticar de braço de distância. Rapidamente, ele me disse: “aqui está tudo o que me aconteceu durante a ditadura em São Borja, quando fui preso três vezes, fui sequestrado, obrigado a me exilar por medo, evitei outro sequestro e, por fim, me entreguei aos militares”. Essas informações mais uma vez voltaram a me incomodar e passei a entender que o meu desconhecimento sobre tudo aquilo me envergonhava. Eu estava sob seu olhar, adentrando a sua vida – que de muitos modos já era pública –, mas meu conhecimento sobre sua história de vida mal riscava a superfície.


Em certo momento, Dino me perguntou: “qual o seu sobrenome?”, ao que respondi: “Almeida”. Ele começou a folhear aqueles documentos com os quais tinha tanta familiaridade e perguntou: “Alceu Almeida é seu parente?” Imediatamente, me inclinei para ver do que se tratava e lá estava o nome do meu bisavô como testemunha de um fato sobre uma reunião na proximidade da casa onde morava. Mais uma vez o constrangimento, recém reconhecido, se agravou. Muito atento ao que acontecia e possivelmente percebendo o que se passava em meus pensamentos, Dino tentou me tranquilizar, dizendo: “pouco havia a ser feito pelo seu bisavô. Os milicos iam atrás de todo mundo que pudesse assinar e corroborar com suas suspeitas”.


Em 1968, Dino era estudante de Direito da Universidade Regional Integrada (URI), em Santo Ângelo (RS), e professor de Língua Portuguesa no Colégio Estadual São Borja. Conduziu o programa “Marcha para o Progresso” na extinta rádio Fronteira do Sul – rádio que presidente João Goulart foi o principal acionista entre 1940-1964 –, mas este doou as ações que possuía para os funcionários da emissora. Era também suplente de vereador pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), embora integrasse o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) antes da instauração do bipartidarismo no país. Em suas palavras, há um esforço em registrar na história o preço dessa candidatura, quando sua vida e sua história foram alteradas e reviradas pelo arbítrio da ditadura civil-militar.


Naquele momento, em 2017, eu trabalhava como professora substituta no campus São Borja da Universidade Federal do Pampa, localizado às margens do Rio Uruguai. Das janelas da universidade, é possível ver sem dificuldade, no outro lado do rio, a cidade argentina de Santo Tomé. Dino me disse: “isso que vocês conhecem agora era completamente diferente, e foi nessas proximidades que vivi momentos de desespero. Onde hoje é a Polícia Federal era o Quartel dos Fuzileiros Navais. No dia 31 de janeiro de 1970, após quatro meses de prisão no 2º Regimento de Cavalaria Mecanizada, acusado de subversão, fui solto e imediatamente sequestrado. Fui levado às margens do rio Uruguai, onde encontrei outros dois companheiros de prisão”. Em sua cabeça, conforme me disse em depoimento, só passava a ideia que seria morto:


[...] ‘bom, eles vão me matar e no rio e vão me matar afogado’. Eu fazia a tentativa de abrir a maçaneta, pra ver se abria e eu me atirava: ‘se é pra morrer, eu morro de outra maneira ou pelo menos não desaparece meu corpo’. Mas eu não raciocinei assim: aquilo foi um ato instintivo, mas não pude... E ele com a pistola, o revólver, não sei, na minha cabeça, aqui encostado na minha cabeça, não disseram uma palavra, nada. Nem me perguntaram, nem eu perguntei: nada, nada. Entraram, e quando nós chegamos onde é a Polícia Federal – que era o Batalhão dos Fuzileiros Navais –, eles mandaram que eu baixasse. Eu desci e vi aquele horror de carro e tudo com luzes ligadas, uma pantomina ali, faroleira total e tinha um salão grande – até hoje eu acho que tem. Quando eu entrei ali naquele salão, me deparei com dois presos políticos – o Bê (Miguel Paiani Durão) e o Amândio Moraes do Amaral –, todos eles algemados. Isso fazia prova inconteste que eles chegaram primeiro que eu, que foram sequestrados de dentro do quartel primeiro que eu, porque eu fui o terceiro e depois não houve mais ninguém.

Do quartel dos fuzileiros, Dino, Amândio e Miguel foram colocados no banco traseiro de uma caminhoneta. Com os braços entrecruzados e algemados uns aos outros, foram levados até o Regimento Coronel Pillar da Brigada Militar, localizado em Santa Maria (RS). Essa cruzada à qual Dino e seus companheiros foram submetidos não tem precedentes em São Borja. Ao chegarem em Santa Maria, conseguiram alguns esclarecimentos através da intervenção do advogado Adelmo Genro, que na época pressionou para que a prisão fosse efetivada e encaminhada ao juiz auditor de plantão. Contudo, mesmo com essa intervenção, a documentação que confirmava a prisão dos três são-borjenses foi expedida apenas no dia 2 de fevereiro de 1970. Nela, constava que os três, recém haviam chegado à cidade para dar curso a novas investigações associadas ao suposto envolvimento dos presos com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Ficaram presos em Santa Maria até o dia 18 de fevereiro.


Após sua soltura, Dino contou que só temia pela sua vida, além de que todos os ofícios que exercia – estudante, professor, radialista e suplente de vereador – foram interrompidos. Deixou de frequentar o curso de Direito, foi exonerado do cargo de professor, foi forçado a renunciar ao assumir a vereança e foi afastado do programa na rádio Fronteira do Sul.


Ao retornar a São Borja, um novo Inquérito Policial Militar foi instaurado, uma vez que outros dois já haviam sido concluídos e nada fora comprovado. Para Dino, não havia motivos para um novo inquérito:


eu achei que não tinham motivo para instaurar um processo, mas fizeram. O doutor Tarso Genro entrou em contato com meu advogado em São Borja, Ricardo Odonell, e disse: ‘tu avisa o Dino que a mala dele tá prontinha, a cama dele tá prontinha, que a ordem vai ser prender’. Eu pensei: ‘e agora? Se eu for a Santa Maria me apresentar, eu tô preso. Se eu estiver preso, podem me matar, podem fazer tudo: inventar novos fatos e fabricar provas’. 

Temendo pela vida, Dino parte para o exílio. Cogitou atravessar o rio Uruguai de barco, já que conhecia pessoas que trabalhavam nesse trânsito entre São Borja e Santo Tomé (ARG). Porém, teve medo de encontrar com os Fuzileiros Navais e ser alvejado. Assim, decidiu ir até o Uruguai: foi de carro com um amigo até Alegrete e depois encontrou um advogado que o ajudou a ir de lá até Rivera em um táxi. Atravessou a fronteira portando a identidade de seu primo, para caso fosse parado.


No Uruguai, viveu outras tantas experiências de solidariedade: esteve próximo do ex-presidente João Goulart, que buscava dar suporte aos exilados brasileiros e especialmente àqueles vindos de São Borja. Em Maldonado, ficou na casa de Jango por alguns dias e depois foi a Montevidéu. Porém, conforme suas palavras, sentia-se “um inútil” na capital uruguaia: “eu sou professor, o que que eu posso fazer aqui?” Decidiu, então, mudar-se para Rivera, pensando que talvez pudesse ensinar português onde a fluidez entre uruguaios e brasileiros era muito maior. Contudo, novas perseguições o rodearam: chegou em Rivera mais ou menos no período que havia sido condenado no último IPM e algumas vezes foi contatado por pessoas estranhas que tentavam levá-lo até o lado brasileiro.


Em um dos importantes episódios de contato com as forças policiais, Dino me contou o que mudou sua perspectiva e o levou a se entregar e cumprir o tempo de prisão:


Nisso, eu tô saindo lá do hotel, tinha uma peça grande como essa aqui: era o salão ali do hotelzinho. Estava uma senhora, a dona do hotel, conversando com dois uruguaios, e ela fez um sinal com a mão (sinal de negação) e eu parei. Um deles dizia assim: ‘somos da polícia secreta’ e não sei o que mais. Ali eu já vi que a coisa não tava boa: ‘queremos levar Jino’. Meu nome é Dino e eles pronunciaram Jino. A distância entre mim e eles dois era menor que a nossa distância aqui e a mulher do hotel estava no meio – tá aí outra que me salvou a vida. Ela pegou e disse... na hora, ela improvisou: ‘ele não está. Está em Taquarembó’.

Esses eventos foram cruciais para as decisões que Dino tomou a partir de então. Apesar de receber orientações de companheiros e advogados em Rivera, contou que não aguentava mais viver sob aquela pressão e se entregou em Santana do Livramento (BR), no 7º Regimento de Cavalaria Mecanizada. Foi encaminhado para Santa Maria e, por fim, cumpriu sua sentença de um ano e três meses de reclusão em São Borja, perto da família – o que amenizava um pouco o sentimento de solidão que sentiu durante o exílio.


Essas histórias dos tempos da ditadura, como se diria em São Borja, são praticamente desconhecidas na cidade, que é lembrada como berço do trabalhismo e como a terra dos presidentes Getúlio Vargas e João Goulart. Contudo, São Borja apagou de sua memória a presença da repressão e da resistência à ditadura civil-militar.


Dino Lopes faleceu em março de 2022, mas sua história não pode (e nem deve) ficar restrita àqueles que puderam conviver com ele. Seu nome não pode deixar de ser um símbolo que representa outros tantos homens e mulheres que ousaram se levantar contra a ditadura, em sua memória e em especial na esperança de vivermos dias de justiça.



Como citar este artigo:

SILVA, Camila de Almeida. A necessidade de dizer o indizível. História da Ditadura, 1 nov. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/anecessidadededizeroindiiível . Acesso em: [inserir data]



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