Artista em trânsito e literatura do exílio: o “Murro em Ponta de Faca” de Augusto Boal.
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  • Foto do escritorHistória da Ditadura

Artista em trânsito e literatura do exílio: o “Murro em Ponta de Faca” de Augusto Boal.

Atualizado: 15 de out. de 2020

O impedimento de continuar como diretor do Teatro de Arena de São Paulo, a convivência com outros perseguidos políticos exilados, as criações teatrais formuladas coletivamente em diversos grupos no exterior, o desejo do retorno ao seu país, a necessidade de se manter no exílio, a remontagem de peças escritas e encenadas nos anos 1960, o desenvolvimento de técnicas para o teatro com repercussão internacional, a militância na resistência à ditadura brasileira e contra as diversas formas de opressão são marcantes no exílio do dramaturgo Augusto Pinto Boal.

Nos termos de Hannah Arendt, “diminuir a carga de indésirables do país”[i], era o que a Doutrina de Segurança Nacional promovia, ao afastar do país, figuras como Augusto Boal. A saída dos “indesejáveis” era resultante de um longo caminho de perseguições, ameaças, interrogatórios e prisões, por vezes, marcadas pela tortura, inviabilizando a permanência em solo brasileiro.

Entre os muitos pousos e decolagens, nascia em 1978, dentre outras obras do dramaturgo em exílio, a peça “Murro em ponta de faca”, que viria a ser montada no Brasil, sob a direção de Paulo José, no ano de sua criação. O “Murro” de Boal também ganharia montagem dirigida pelo autor nos países em que viveu exilado. Trata-se de um texto de exílio em que Boal falou de si, do que viveu e do que presenciou. Escreveu seus medos, suas dificuldades, as notícias que lia, que ouvia, histórias de amigos próximos e também daqueles que, por qualquer motivo, cruzaram seu caminho ao longo desses anos. Todos na mesma situação, todos exilados.

Capa do livro “Murro em ponta de faca”, de Augusto Boal.


Boal afirmou que a ideia de escrever essa peça surgiu a partir de um pedido/convite do amigo Fernando Peixoto: “Conta as suas andanças!” Boal completa:

E eu queria contar mesmo. Não só as minhas, mas as andanças de muita gente muito maravilhosa (cada qual no seu feitio) que eu andei encontrando, em tantos aeroportos, gares, no sol ou na neve, correndo ou coçando o saco. Sentei, chorei um bocadinho – ninguém é de ferro! E fui juntando lembranças. E raiva também, podem crer, boa raiva de bom tamanho. [ii]

Assim, resolveu contar experiências individuais e coletivas: as vivências no exílio. “Murro” é uma peça em que o autor sugere que seja dividida em dois atos. O texto narra a história de três casais de exilados que vivem juntos: Paulo e Maria, Barra e Foguinho, Seu Doutor e Margarida (Marga). Os motivos das partidas e os posicionamentos políticos dos seis personagens não possuem as mesmas raízes. Por esse motivo há conflitos entre eles. Todos são brasileiros. Todos são “mais ou menos jovens”[iii] e, apesar de Boal ressaltar que os atores representam exilados de várias épocas, de muitos países e afetos a diversas circunstâncias, as ações foram elaboradas tendo como contexto os exílios decorrentes das ditaduras latino-americanas da segunda metade do século XX.

“Murro” de Boal nos possibilita analisar a relação entre literatura[iv] e exílio, a condição do escritor em trânsito. A literatura de exílio é uma literatura produzida pelo homem arrancado de seu meio, deslocado, que precisa afirmar sua identidade e colocar seu posicionamento, sua opinião diante de novas realidades, de novos lugares. Augusto Boal teve de conviver com essas situações. Como artista e escritor exilado, suas criações tinham como enfoque não somente a denúncia e as reflexões sobre o governo autoritário que o obrigou a sair de seu país, mas também buscava provocar discussões e ser compreendido nos locais que passou a viver, por meio de suas produções.

A relação entre literatura e exílio faz parte de inúmeros estudos, como o realizado pela escritora e pesquisadora Maria José de Queiroz. No livro Os Males da Ausência ou a Literatura do Exílio, a autora se propõe a analisar “a nostalgia e as privações em terra alheia que dá notícia a palavra escrita”, por intermédio de uma seleção de autores, que contemplam formas de comportamento diversas ao viverem exilados. Para ela, estudar literatura do exílio é ouvir a voz do homem acuado, perseguido, torturado, mas que não morreu de todo.

Dina Sfat e Marta Overbeck na peça “Murro em Ponta de Faca”, de Augusto Boal em montagem de 1979 (Imagem: Reprodução da internet).


Os questionamentos que o exilado responde em seus textos abarcam situações concretas perante as quais ele precisa deliberar.[v] São escritas ficcionais produzidas a partir da condição em que se encontra o autor e que, por vezes, podem estar relacionadas a acontecimentos reais. A expressão “literatura do exílio” abarca algumas possibilidades. De acordo com a escritora Paloma Vidal, que pesquisou a relação entre literatura e exílio no Cone Sul no contexto das ditaduras, pode-se, de maneira geral, enumerar três tipos de obras decorrentes do exílio: aquelas que têm o exílio como tema central; as que abordam a realidade da pátria do autor e, por fim, aquelas cujo tema não se relaciona ao exílio, nem mesmo à pátria do escritor de forma explícita.[vi]

A autora estudou a vivência e as obras de exílio das escritoras argentinas Luisa Valenzuela, Tunuma Mercado e Marta Traba, e da autora uruguaia Cristina Peri Rossi, apontando que os textos selecionados estariam entre as narrativas que abordam a experiência do exílio e as que retratam a realidade da pátria do escritor, já que viver no exílio está diretamente relacionado à violência que o originou.

Edward Said, em suas reflexões sobre o exílio, considera a guerra moderna, o imperialismo e os governos autoritários como fatores que consolidam o século XX como a “era do refugiado”, da imigração em massa, da pessoa deslocada. Segundo ele, a moderna cultura ocidental é, de maneira geral, obra de pessoas arrancadas e/ou afastadas do seu meio (refugiados, emigrantes e exilados). Para Said, apesar de ser vinculado a uma fratura incurável, o exílio foi transformado em tema vigoroso e enriquecedor da cultura moderna. Porém, alerta o intelectual palestino, afirmar que o exílio beneficia essa literatura é “banalizar suas mutilações, as perdas que inflige aos que as sofrem, a mudez com que responde a qualquer tentativa de compreendê-lo como ‘bom para nós’”.

Said apresenta o questionamento acerca das visões do exílio na literatura: elas acabam por obscurecer o que é realmente horrível, a saber, que o exílio é produzido por seres humanos contra outros seres humanos e que, como a morte, arrancou milhões de indivíduos do seio de uma família, de uma tradição e de uma geografia.[vii] A partir desse questionamento sobre a escrita e a vida no exílio, a escritora Paloma Vidal afirma que “a literatura concede dignidade a uma condição que foi criada para negá-la”.[viii] Por essa razão, a escrita pode ser considerada como a principal morada do intelectual desenraizado, possibilitando um vínculo no momento em que se está fora do lugar.

Augusto Boal (Imagem: Reprodução da internet).


Augusto Boal teve relevante criação literária quando exilado, incluindo, entre outros, livros teóricos e metodológicos sobre teatro, romance, crônicas e textos teatrais. Estes, por vezes, eram publicados em livros nos diferentes países que passou a viver e no Brasil – como ocorreu com o texto de “Murro em Ponta de Faca”. Em tempos de exílio, a publicação pelas editoras brasileiras era uma forma de fazer circular suas ideias no seu país de origem. A perseguição política, a vivência na prisão, as torturas pelas quais fora submetido nos cárceres da ditadura, as experiências de amigos que viviam em situação similar, a vida errante e as dificuldades de sobrevivência no exílio são algumas temáticas dessas produções de Boal.

As formas literárias eram encaradas como possibilidade de narrar situações-limite. Como observou Márcio Seligmann-Silva, apesar de ser utópico considerar que literatura e arte podem servir, por exemplo, “de dispositivo testemunhal para populações como as sobreviventes de genocídios ou de ditaduras violentas”, pode-se afirmar que “é na literatura e nas artes onde esta voz poderia ter melhor acolhida”[ix]. Acolher essa voz talvez seja uma nova dimensão do exílio.

Desiree dos Reis Santos é historiadora e gerente técnica do Museu do Samba no Rio de Janeiro.

[i] ARENDT, Hannah apud. GRECCO, Heloísa. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Tese de doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p.180.

[ii] BOAL, Augusto. Murro em Ponta de Faca. São Paulo: HUCITEC, 1978, p. XIII.

[iii] Idem, p. 3.

[iv] Em minha dissertação de mestrado, intitulada “Novos Horizontes: as criações teatrais de Augusto Boal nos anos de exílio”, o texto teatral é concebido como obra literária. Mas diferente, por exemplo, de um romance ou de um conto, o texto dramático pode ser utilizado com fins de leitura, mas tem por objetivo, contudo, a representação, a montagem da cena. Cf. SANTOS, Desirree. Novos Horizontes: as criações teatrais de Augusto Boal nos anos de exílio. Dissertação de Mestrado em História. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014.

[v] QUEIROZ, Maria José de. Os Males da Ausência ou a Literatura do Exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

[vi] VIDAL, Paloma. A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul. São Paulo: Annablume, 2004.

[vii] SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.47.

[viii] VIDAL, Paloma. Op. Cit., p. 66.

[ix] SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Narrar o Trauma: A questão de testemunhos de catástrofes históricas”. Psic. Clin. Rio de Janeiro, vol. 20, nº 1, 2008, p. 78.

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