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Foto do escritorHistória da Ditadura

As ditaduras como objeto de estudo: como se (trans)formam agendas de pesquisa?

Atualizado: 15 de out. de 2020

 

Na esteira dos golpes civil-militares ocorridos no Cone Sul no contexto da Guerra Fria e influenciados pela Doutrina de Segurança Nacional, surgiram os primeiros esforços intelectuais para responder a algumas questões específicas que dialogavam diretamente com as principais inquietações que, por razões mais do que justificadas, faziam parte daquela nova conjuntura: como os golpes de Estado foram possíveis? Que tipo de regime político foi iniciado? Seria possível prever se e por quanto tempo duraria o período de exceção? O que a intervenção militar nas estruturas de poder trazia de diferente, quando comparada com outros momentos da história política recente?

Este texto tem como objetivo inicial traçar um panorama sobre as diferentes formas como parte da Ciência Política analisou os regimes autoritários referidos, destacando as principais agendas de pesquisa que, nesta grande área de estudos, foram sendo constituídas, formuladas e reformuladas com o passar dos anos, conforme as antigas ditaduras começaram a ser transformadas em novas democracias.

Ciências Humanas e Sociais

Pensando-se especificamente nos estudos realizados por pesquisadores e pesquisadoras das Ciências Humanas e Sociais, identificamos, entre as décadas de 1960 e 1980, um conjunto bastante significativo de análises elaboradas com foco nas perguntas mencionadas. Nesse sentido, e para dar como exemplo somente a produção acadêmica sobre o caso brasileiro, estudos “clássicos” foram elaborados por historiadores, sociólogos e cientistas políticos, podendo ser destacadas as primeiras análises feitas por Wanderley Guilherme dos Santos, René Dreifuss, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Hélio Silva, Thomas Skidmore, Fernando Henrique Cardoso, Argelina Cheibub Figueiredo e Maria Helena Moreira Alves.

Feitas essas considerações introdutórias, um segundo objetivo da reflexão é pensar sobre aquela que poderia ser considerada uma etapa mais recente das análises surgidas com os processos de redemocratização, qual seja, a subárea de estudos sobre “qualidade da democracia” e sua conexão com o tema dos “legados autoritários”.

Estudos sobre a qualidade dos regimes democráticos vêm constituindo uma agenda de pesquisas em expansão na última década e meia. Centrada sobretudo no estabelecimento de outros critérios que permitam analisar, além da existência e do funcionamento de instituições básicas e de procedimentos considerados essenciais numa democracia (caso de eleições regulares, livres e com partidos políticos representando perspectivas ideológicas antagônicas, entre outros), a eficácia de novos arranjos políticos estabelecidos principalmente em países que tenham passado por períodos autoritários.

“Qualidade da democracia”

Fundamentalmente, e voltando o foco da exposição para o segundo objetivo da reflexão aqui proposta, poderia ser dito que parte dos acadêmicos começaram a deslocar o foco de suas análises a partir de um acontecimento específico: o 25 de abril de 1974, em Portugal. É recorrente a referência à Revolução dos Cravos como catalisadora de um movimento rumo à redemocratização no cenário internacional nas últimas décadas do século XX. Em sua conhecida obra intitulada A terceira onda[1] (publicada no início dos anos 1990), o cientista político norte-americano Samuel P. Huntington reforça a mobilização que simboliza o início do fim da longa ditadura salazarista portuguesa como o “ato fundante” de um conjunto de processos de transição à democracia (segundo o autor, a “terceira onda de democratização”) que se estenderia, nas duas décadas seguintes, do Sul da Europa ao Cone Sul, avançando para outros países da América Latina, África, Ásia e, finalmente, do Leste europeu (com o fim da URSS, a partir de 1991).

Nesse sentido, a grande quantidade de processos transicionais iniciados após a Revolução dos Cravos (no Brasil, Uruguai, Espanha, Grécia, Chile, Argentina, Bolívia, México, Peru, Venezuela, entre outros), serviu como base empírica para a realização de uma pesquisa em larga escala (o projeto “Transições do regime autoritário”) capitaneada, entre outras pessoas, pelo cientista político argentino Guillermo O`Donnell. Com uma equipe de pesquisadores e pesquisadoras dos mais diversos países que estavam “transitando” desde um regime autoritário, o projeto tentou identificar, nas conjunturas incertas das transições, alguns padrões para a comparação dos processos transicionais em andamento, compondo uma agenda de estudos chamada de “transitologia”.

Embora seja um critério questionável e, sob alguns aspectos, deva e possa ser problematizado por analistas da Ciência Política e áreas afins, ocorre que, pensando-se pontualmente em questões institucionais e formais, é possível identificar um momento no qual o regime autoritário finaliza a transição. Se as transições, como consta nos estudos capitaneados por Guillermo O`Donnell, são processos políticos marcados pela mobilização em torno da sucessão de um regime autoritário para um novo regime presumidamente democrático, não parece correto inferir que os mesmos possam continuar sendo interpretados como “não finalizados” mesmo passadas três ou quatro décadas desde o seu início.

Partindo, então, da tentativa de analisar a conjuntura iniciada pós-transições à democracia, um dilema analítico que vai mobilizar estudiosos e estudiosas ao longo da década de 1990 e no início dos anos 2000 se refere justamente à ideia de consolidação. Quando ocorre a consolidação da nova democracia? São elementos estritamente institucionais que respondem à pergunta? Um estudo interessante sobre as possibilidades de consolidação no caso brasileiro (“Os brasileiros e a democracia”) foi publicado em 1995 por José Álvaro Moisés, cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP). Na obra, Moisés instrumentalizava dados obtidos em pesquisas de opinião, ampliando as interpretações sobre consolidação para além dos arranjos institucionais pós-ditadura.

Passeata de jornalistas em abril de 1968 no Rio de Janeiro.

Passeata de jornalistas em abril de 1968 no Rio de Janeiro. Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 02007 133.


Consolidação democrática

Mas, e a consolidação? O fato, voltando-se à reflexão aqui proposta, é que assim como não parece acertado interpretar o processo de transição como algo eternamente inacabado, como volta e meia algumas análises costumam sustentar, acredito que não seja o caso de se fazer o mesmo no tocante à perspectiva da consolidação. Afinal, tão equivocado quanto entender consolidada uma democracia considerando apenas a existência de instituições representativas básicas em funcionamento (e desconsiderando outras variáveis para compor o estudo) seria pensar que um regime democrático não está consolidado porque o novo arranjo institucional produz resultados negativos no sistema político.

É, de algum modo, compartilhando um raciocínio semelhante ao que acaba de ser exposto, que vem sendo constituída (e ampliada) nos últimos anos a agenda de estudos sobre qualidade democrática (o cientista político italiano Leonardo Morlino é uma referência importante sobre o tema). A grande questão a ser enfrentada, portanto, não é necessariamente saber quando a democracia está consolidada (sobretudo se se admite que a democracia não é um processo com início, meio e fim, podendo ser construída e reconstruída cotidianamente), mas sim deslocar o foco para a compreensão da qualidade dos regimes que vieram, de fato, para ocupar as estruturas de poder com o fim das ditaduras e demais regimes autoritários.

A reflexão proposta por esses estudos, portanto, recai sobre os critérios que servirão de base para que se verifique, ao partir do pressuposto de que há elementos básicos da democracia em algum contexto específico (tais como a existência de eleições livres e regulares, liberdade de expressão, possibilidade de alternância no poder, direitos civis e políticos garantidos etc.), os resultados que por ela estão sendo produzidos na sociedade. Com isso, chegamos ao tema dos legados autoritários.

Afinal, o que podem ser considerados “legados autoritários”? Qual o sentido de observá-los vinculados ao debate sobre qualidade democrática? Em linhas gerais, Leonardo Morlino, em O passado que não passa, livro organizado por António Costa Pinto e Francisco Martinho e publicado em 2013, afirma que legados autoritários “[…] abarcam todos os padrões comportamentais, regras, relações, situações sociais e políticas e também normas, procedimentos e instituições, tanto introduzidos como vigorosa e visivelmente fortalecidos pelo regime autoritário imediatamente anterior”.

Tendo o conceito como base para a identificação de resquícios de uma ditadura convivendo com o novo cenário democrático, podemos, então, observar uma série de fragmentos do regime que foi encerrado se manifestando num amplo leque de instituições e comportamentos. Nesse sentido, não é difícil encontrar legados nas instituições representativas (muitas vezes refratárias à ampliação da participação direta dos cidadãos na tomada de decisões), no campo jurídico (tanto no que se refere à manutenção de normas editadas durante os períodos exceção, como no tocante à permanência de juízes e ministros que atuaram em nome destes regimes) e na cultura política de uma sociedade (sobretudo no que se refere às dificuldades de ruptura com um padrão de pensamento contrário aos direitos humanos e pró-intervenções militares na política), podendo ser referidos como exemplo de pesquisadores que trabalham nesta linha de análise, entre outros, Alain Rouquié, Alfred Stepan, Anthony W. Pereira, António Costa Pinto, Jorge Zaverucha e Paloma Aguilar Fernández.

Em linhas gerais, este não tão breve panorama buscou, como foi dito acima, destacar que as mudanças conjunturais que foram ocorrendo na vigência das ditaduras no Cone Sul e outros regimes autoritários repercutiram, com o passar do tempo, na própria forma como intelectuais das Ciências Humanas em geral e, especificamente, da Ciência Política, foram reorganizando suas agendas de pesquisa. Dialogando com problemas e dilemas decorrentes da ocupação das estruturas de poder por meios ilegítimos, o foco das análises políticas relacionadas às ditaduras em geral foi constituído de forma bastante diversa, abrangendo um conjunto relevante de possibilidades analíticas. Embora pareça uma agenda ultrapassada para alguns, segue em constante transformação, chamando a atenção para as zonas cinzas entre o passado e o presente na dinâmica política de países que, entre avanços e recuos, continuam tentando fortalecer o ideal democrático mesmo em condições adversas.

Carlos Artur Gallo é cientista político.

 

Nota:

[1] Em linhas gerais, Huntington desenvolve seu estudo a partir da ideia de que o modelo de democracia liberal-representativa vai sendo implementado historicamente em movimentos semelhantes às ondas do mar. Cada onda de democratização teria sido seguida por uma onda reversa, na qual países que estavam sendo alinhados ao modelo democrático passam a ser governados por regimes de exceção. A primeira onda de democratizações, seguindo a análise proposta pelo autor, teria sido iniciada na primeira metade do século XIX e se estenderia até o início do século XX, sendo interrompida no período compreendido entre as duas Guerras Mundiais. A segunda onda, por sua vez, teria ocorrido a partir da década de 1940, no cenário marcado pelo fim da 2ª Guerra Mundial, sendo interrompida na década de 1960, auge da Guerra Fria.

 

Como citar este artigo:

GALLO, Carlos Arthur. As ditaduras como objeto de estudo: como se (trans)formam agendas de pesquisa?. In: História da Ditadura – novas perspectivas. Disponível em: http://historiadaditadura.com.br/destaque/as-ditaduras-como-objeto-de-estudo. Publicado em: 10 Out. 2017. Acesso: [informar data].

 

Crédito da imagem destacada: Manifestação no Rio de Janeiro em 1968. Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 00229.461.

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