Até quando a morte dos inocentes e o silêncio de um país?
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  • Foto do escritorAlberto Rafael Ribeiro Mendes

Até quando a morte dos inocentes e o silêncio de um país?

Necrogovernamentalidade e enquadramentos da vida passível de luto

Sou desses mortos a quem não cortaram o cordão desumbilical. Faço parte daqueles que não são lembrados. [...] Os mortos não sonham, isso vos digo. Os defuntos só sonham em noites de chuva. No resto, eles são sonhados. Eu que nunca tive quem me deitasse lembrança, eu sou sonhado por quem?

Mia Couto. A varanda do Frangipani.

No final dos anos 1980, Luiz Fernando Emediato (1992, p. 26) dirigia-nos uma pergunta fundamental para os dias atuais: “Será que estamos em guerra?” E completava dizendo – “Não, não estamos – mas estamos matando e morrendo. Vivemos em um país selvagem. Estamos matando nossa juventude, e nem ao menos nos indignamos mais”.

Talvez fosse necessário pensar quando a sociedade brasileira se indignou com a morte da juventude e, o que é mais importante, com qual juventude. É bem verdade que os protestos contra os assassinatos de jovens estudantes pela ditadura militar foram fundamentais no processo de reencontro do país com as ruas. O luto público pelas mortes de Edson Luís de Lima Souto, Luiz Eduardo da Rocha Merlino e Alexandre Vannucchi Leme representou a negação de um estado assassino e cruel.

Também é verdade que a busca pelos mortos e desaparecidos políticos da ditadura, a partir de 1970, reuniu as vozes de alguns setores sociais para exigir a elucidação de seus paradeiros e o respeito aos Direitos Humanos no país. O movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos é representativo dessa busca, um ator coletivo (AZEVEDO, 2016, p. 24) que também é expressão das primeiras organizações da sociedade contra o arbítrio da ditadura. Os familiares cobravam justiça e reivindicavam, fosse o caso de pessoas assassinadas, corpos aos quais se pudesse dar devidas sepulturas. Clamava-se pelos corpos e pelas vidas que importavam como tal. Vidas passíveis de luto.

Acontece que outras centenas de vidas foram igualmente vilipendiadas longe dos centros urbanos, como os camponeses e os indígenas, sufocados pela militarização da questão agrária e expropriados pela política econômica de expansão capitalista da ditadura no campo. Segundo levantamento feito pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que resultou no dossiê Assassinatos no campo, 1.123 trabalhadores rurais foram assassinados entre 1964 e 1985 – dos quais, poucos constam no Dossiê dos mortos e desaparecidos desde 1964.

A maior parte dessas vidas continuam anônimas, sem direito ao túmulo, sem luto. Talvez porque a elas também continue faltando o enquadramento social que estabelece qual vida merece ser vivida. O propósito deste texto é lançar o questionamento sobre o silêncio individual e coletivo diante do assassinato da juventude brasileira. O que tem paralisado nossa reação? O medo, a covardia, a insensibilidade, a descrença política, a falta de conhecimento?

Que tipo de vida merece, hoje, a nossa indignação e o nosso luto? Tudo isso para questionar o silêncio vergonhoso de um imenso país que não ainda não foi capaz de levantar-se para chorar publicamente e exigir justiça para os jovens inocentes que continuam sendo assassinados cotidianamente. Temos assistido diariamente o assassinato de jovens brasileiros, em geral, pertencentes aos grupos mais vulneráveis e desassistidos politicamente, como podemos observar nos casos a seguir.

25 de abril de 2022. Júnior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Ianomâmi e Yek’wana, divulgou um vídeo em que denuncia o estupro e o assassinato de uma menina ianomâmi de doze anos, na região de Waikás, em Roraima. Hekurari conta que a menina foi vítima de um estupro coletivo por garimpeiros que atuam na região. Segundo o informante, outra criança desapareceu dentro do rio Uraricoera.

Lideranças do povo Yanomami acusam garimpeiros de estupro e assassinato de uma menina de 12 anos. Jornal da Cultura. Fonte: Canal do Youtube da TV Cultura.


4 de abril de 2022. Cauã da Silva dos Santos, jovem de dezessete anos, negro, morador da comunidade de Dourado, na zona norte do Rio de Janeiro, foi baleado e jogado em uma vala por policiais militares. O adolescente chegou a ser socorrido por moradores da comunidade, mas chegou morto ao Hospital Getúlio Vargas, na Penha. Cauã era lutador de jiu-jitsu e luta livre.

10 de fevereiro de 2022. Em Barreiros, a 110 km de distância do Recife, Jonathas Oliveira, de apenas 9 anos, foi brutalmente assassinado por homens encapuzados que invadiram sua residência no Engenho Roncadorzinho. Os criminosos atiraram em seu pai, Geovane da Silva Santos e, em seguida, mataram-no. O menino estava escondido debaixo da cama. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a comunidade onde ocorreu o crime existe há quarenta anos e abriga cerca de quatrocentos trabalhadores rurais. Nos últimos anos, esses posseiros vêm recebendo diversas ameaças e atentados promovidos por empresas que exploram economicamente a área. Tudo indica que o assassinato de Jonathas tem a ver com o fato de seu pai ser uma das principais lideranças da comunidade e presidente da associação dos agricultores familiares do local.


Uma indígena, um negro e um camponês. Não é irrelevante destacar a etnia, a cor e o lugar social de cada um dos jovens assassinados. O valor de suas vidas está diretamente relacionado a esses qualificativos, dos quais também depende o tipo de comoção pública que receberão por ocasião de suas mortes. O fato é que, no Brasil, as populações indígenas e negras, no campo, nas cidades, nas comunidades de periferia, nas favelas, nos assentamentos Sem Terra, vivem em um estado permanente de marginalização e exclusão social, somadas a uma insistente tentativa de invisibilização tanto de suas vidas, quanto de suas mortes.

Há tentativa de apagamento quando se nega aos indígenas o direito de demarcação de suas terras; no momento em que se abre a porteira da grilagem nos seus territórios; quando se incendeiam os lugares de cultos afro-brasileiros; em ocasiões em que a polícia, sob o argumento da luta contra o tráfico de drogas, abre fogo contra vidas inocentes em comunidades periféricas; quando se questiona e se tenta destruir as políticas afirmativas conquistadas nos últimos anos.

Negadas socialmente como vidas, são rejeitadas uma segunda vez no ato da morte por uma necrogovernamentalidade que tenta ocultar e proibir o lamento e o luto público. Conforme destaca Judith Butler (2019, p. 54), “elas não podem ser passíveis de luto porque sempre estiveram perdidas ou, melhor, nunca ‘foram’, e elas devem ser assassinadas, já que aparentemente continuam a viver, teimosamente, nesse estado de morte”.

Indígenas, negros e camponeses assassinados ficam poucos dias no noticiário nacional. Quando viram notícia – e isso não é habitual –, suas mortes não são capazes de mobilizar a nação. Não há choque, não há espanto, a não ser para os irmãos negros, índios e camponeses que ali enxergam a possibilidade de receberem o mesmo fim, inseridos que estão na melancolia resultante de nossa necrogovernamentalidade.

Vale um exercício rápido. Segundo dados da CPT, em 2021, houve 35 assassinatos no campo brasileiro. Desses, quantos foram noticiados pelos grandes veículos de imprensa do Brasil? De quais vítimas ouvimos falar? Para quais delas direcionamos nosso luto e nosso protesto? Quantas marchas e gritos de “todas as vidas importam” fomos capazes de realizar em nome dos camponeses que tombaram?

Sempre me questiono sobre a nossa incapacidade de nos levantarmos como nação para chorar e exigir reparações e justiça pelas vidas perdidas cotidianamente em nosso país. Falo das vidas precarizadas dos negros, dos indígenas e dos camponeses, mas isso não é uma tentativa de estabelecer hierarquias, tampouco de dizer que esses merecem, mais que outros, o luto público. É apenas uma forma de chamar a atenção para a seletividade da vida que, no Brasil, é tratada e apresentada como tal.

O que nos falta para, diante da barbárie de uma chacina policial que mata, de uma só vez, vinte e três pessoas no Rio de Janeiro, enchermos as ruas do país e gritar um categórico Basta!? A ação ocorreu na Vila Cruzeiro em 24 de maio de 2022. Uma operação empreendida pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE), pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) e pela Polícia Federal (PF), sob o argumento de busca por chefes do Comando Vermelho, matou 23 pessoas.

Judith Butler considera que o valor de uma vida se reconhece também no momento da morte e que o tratamento dedicado ao morto depende do enquadramento que lhe damos, ressaltando ou ocultando sua importância social:


"Existem maneiras de enquadrar que mostram o humano em sua fragilidade e precariedade, que nos permitem defender o valor e a dignidade da vida humana, reagir com indignação quando vidas são degradadas ou dilaceradas sem que se leve em conta o seu valor enquanto vidas. E há enquadramentos que impedem a capacidade de resposta, nos quais essa atividade de impedimento é realizada pelo próprio enquadramento efetiva e repetidamente – sua própria ação negativa, por assim dizer, sobre o que não será explicitamente representado (BUTLER, 2018, p. 118-119). "

Será o enquadramento capaz de mostrar a precariedade da vida, o que nos falta? Creio que isso seja apenas uma razão de nossa paralisia. Há outras, enraizadas em nossa formação como povo, como o racismo, a homofobia, o machismo, que travam a nossa reação. Seja como for, cabe encontrarmos meios de enquadramento que possam dar conta da fragilidade das vidas dos pretos, dos pobres, das mulheres, dos indígenas e dos camponeses.

Também termino com Mia Couto, ao refletir sobre as formas silenciosas e ocultas de violência, aumentadas por nossa incapacidade de resposta e pela perda de nossa solidariedade. Diz-nos:


A verdade é que muitos dos problemas que nós vivemos resultam da falta de resposta nossa como cidadãos activos. Resulta de apenas reagirmos no limite quando não há outra resposta senão a violência cega. Grande parte dos problemas resulta de ficarmos calados quando podemos pensar e falar (COUTO, 2011, p. 146).

Mia Couto agradeceu ao público moçambicano que o assistia pela recusa do silenciamento diante do problema da violência em seu país. A nós, brasileiros, cabe encontrar nossos próprios meios de romper com o silêncio. Que possamos reagir e gritar decididamente: até quando?

A maior parte deste texto foi escrito antes do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips na região do Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas. Destes, ao contrário do que tratei até aqui, viu-se exaustivamente as notícias, as imagens dos corpos e a repercussão nacional e internacional. Deles se ocuparam os pequenos e os grandes veículos de imprensa, o que é muito bom, sobretudo porque, junto com o lamento das vidas perdidas, vem à tona a problemática da invasão das terras indígenas, do garimpo ilegal, do desmonte das políticas de proteção ambiental e indigenista, da insegurança dos ativistas e profissionais ligados ao serviço de proteção ao índio e ao meio ambiente. Agora todo o país fala de uma tragédia anunciada, posto que tanto Bruno Pereira quanto Dom Phillips tentavam, sem sucesso, denunciar a violência silenciosa que se abate sobre os indígenas da região, com a omissão e a interferência do poder público federal no sentido de atrapalhar os órgãos de fiscalização do território. Bruno e Dom Phillips tombaram e desnudaram uma estrutura de morte ali estabelecida. Sacudiram o país, é verdade, só não sabemos até quando. Por mais quantas semanas? Daqui a pouco retornaremos ao nosso costumeiro silêncio e acomodação, para o desespero das vidas anônimas que não poderão virar notícia. Até que tenhamos coragem de dizer, basta!


Créditos da imagem destacada: Reprodução site do Partido dos Trabalhadores.


 

REFERÊNCIAS


AZEVEDO, Desirée de Lemos. A única luta que se perde é aquela que se abandona: etnografia entres familiares de mortos e desparecidos políticos no Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.

BRASIL. Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1995.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

EMEDIATO, Luiz Fernando. A grande ilusão: crônicas. São Paulo: Geração Editorial, 1992.

FRANCO, Fábio Luís. Governar os mortos: necropolíticas, desaparecimento e subjetividade. São Paulo: Ubu Editora, 2021.

MST. Assassinatos no campo: crime e impunidade – 1964 – 1985. 2ª edição. São Paulo: Global, 1987.

Como citar este artigo:

MENDES, Alberto Rafael Ribeiro. Até quando a morte dos inocentes e o silêncio de um país? Necrogovernamentalidade e enquadramentos da vida passível de luto. História da Ditadura, 13 jul. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/atequandoamortedosinocenteseosilenciodeumpais. Acesso em: [inserir data].


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