Cinema, História e Memória: a permanência do passado no filme Nostalgia da luz, de Patricio Guzmán
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  • Foto do escritorPedro Russo

Cinema, História e Memória: a permanência do passado no filme Nostalgia da luz, de Patricio Guzmán

Atualizado: 20 de jan. de 2022

As Mulheres de Calama têm o seu presente atormentado por um “passado que não passa”. Esse grupo de mulheres chilenas se dirige periodicamente ao deserto do Atacama em busca dos corpos de seus familiares, vítimas do desaparecimento forçado empreendido pela ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990). A busca dessas mulheres é retratada no documentário Nostalgia da luz (2010), do cineasta chileno Patricio Guzmán, que tem como cenário o próprio deserto. Durante o regime de Pinochet, existiu no Atacama um campo de concentração denominado Chacabuco, onde opositores da ditadura eram encarcerados, sendo que muitos deles foram assassinados e enterrados em valas comuns. Essas valas foram reabertas posteriormente pelo próprio regime, com o objetivo de eliminar definitivamente os corpos sepultados. No entanto, ainda restaram no local vestígios, como fragmentos de ossos.

Para historiadores e historiadoras, o cinema pode ser um recurso importante para interpretar o passado. Da mesma forma, documentários nos auxiliam a pensar sobre como se trabalhar com a memória. Esta é a principal fonte utilizada por Patricio Guzmán para refletir sobre o passado recente do Chile e sobre as violências cometidas pela ditadura. O regime autoritário é sintetizado por um dos personagens de Nostalgia da luz, o arqueólogo Láutaro Nuñez, como “um passado que não passa”, tendo em vista que ele se faz presente no cotidiano das Mulheres de Calama, mesmo 20 anos após a saída de Pinochet da presidência.

A busca por desaparecidos políticos do campo de concentração de Chacabuco é o fator que une as Mulheres de Calama. Guzmán, no entanto, consegue explorar a complexidade e as contradições das memórias dessas mulheres. Se, por um lado, Vicky Saavedra, irmã do desaparecido José Saavedra Gonzalez, parece viver certo tipo de redenção após encontrar vestígios de seu irmão, conseguindo, segundo ela, aceitar a sua morte; por outro, Violeta Berríos, cujo esposo Mario Arguêllos Toro também é desaparecido, não se contenta com a localização de partes do corpo de seu marido. Em um momento carregado de forte emoção, ela diz: “Eu o quero inteiro. Eles o levaram inteiro, eu não quero um pedaço. E eu não estou dizendo isso apenas em relação a ele, eu quero todos os desaparecidos. Todos!”


As Mulheres de Calama procurando pelos vestígios dos desaparecidos. Fonte: Nostalgia da luz (2010) – Patricio Guzmán.

Aqui cabe a reflexão sobre o trânsito entre os âmbitos individual e coletivo apresentado no filme, e também a complexidade que é o trabalho de compreender o passado a partir da memória. Se em situações semelhantes, como a descoberta de partes dos corpos de familiares desaparecidos, as reações são diferentes entre si , o compartilhamento de um passado e, por esta razão, também de um presente corresponde a uma ação coletiva de continuidade na busca pelos desaparecidos, tanto por Vicky quanto por Violeta.

No filme, a história das Mulheres de Calama é entrelaçada com a dos astrônomos que trabalham no deserto do Atacama. Ali existe um complexo de telescópios, visto que o local oferece condições privilegiadas para a observação do universo, tais como a baixíssima taxa de umidade e a pureza do ar. Para Gaspar Galaz, um dos astrônomos entrevistados por Guzmán, o presente “acontece numa milionésima fração de segundo” e seria como uma linha muito tênue, sendo que “um pequeno sopro a destruiria”. A conclusão de Galaz é a de que o presente, em termos físicos, quase não existe e, consequentemente, tudo o que a consciência humana pode captar já está no passado.


Telescópio no deserto do Atacama, no Chile. Fonte: Nostalgia da luz (2010) – Patricio Guzmán.

Nesse sentido, se “o presente não existe”, pois sua milionésima fração de segundo de durabilidade o torna volátil e sua sina é seu eterno devir em passado, a consciência de presente subsiste nos seres humanos. Para as Mulheres de Calama, por exemplo, o passado se faz presente no cotidiano, em suas buscas e em suas esperanças. Assim, podemos falar de um presente a despeito das teorias físicas. Um presente que existe em repetição, na tentativa de compreensão e elaboração do passado a partir da memória.

Para Peter Burke, o “presente é o locus de todas as representações do passado”. Poderíamos dizer o mesmo da memória, pois ela traz consigo lembranças que estão diretamente relacionadas ao contexto em que é ativada. É a partir do presente que damos sentido às nossas memórias. Portanto, as memórias são como substratos para a nossa elaboração do presente. O desaparecimento forçado se constitui, para os familiares, numa eterna interrogação sobre o que aconteceu com seu ente querido. Isso faz com que os familiares de desaparecidos se sintam em suspensão, eternamente presos a um passado que não pode ser superado.1

Ao analisar Nostalgia da luz, Enzo Traverso diz que “Guzmán realizou seu filme mais bonito ao retratar a memória como uma impossível elaboração do luto”. Impossível pois, mesmo que os familiares saibam que seus entes queridos estão mortos, mesmo que tenham encontrado vestígios de seus corpos, ainda não possuem respostas para suas perguntas. Por que e como eles foram mortos? Quem foram os responsáveis? Para onde foram levados os corpos após a abertura das valas? Questões que assombram os familiares dos desaparecidos de todas as ditaduras latino-americanas, não apenas a chilena.2


Campo de concentração de Chacabuco visto de dentro. Fonte: Nostalgia da luz (2010) – Patricio Guzmán.

Se falei até aqui de passado e de presente, Guzmán, em sua obra, trata também sobre perspectivas de futuro. Ele entrevistou Valentina Rodríguez, uma astrônoma que teve os pais desaparecidos pelos agentes da ditadura, quando tinha apenas um ano de idade. Valentina foi criada pelos avós e mantém, graças a eles, uma memória ativa sobre os pais. Ela relata que sempre teve na figura de seus pais um referencial muito forte de ideais e coragem. Guzmán apresenta Valentina com um presente distinto daquele vivido pelas Mulheres de Calama, mas também marcado pelo passado em comum de um país que viveu sob um regime ditatorial por 17 anos.

Ao nos apresentar uma mulher jovem que tenta ressignificar a dor que sente pela ausência dos pais, o diretor adiciona à sua narrativa, de forma mais clara, uma perspectiva de futuro. Valentina se considera uma pessoa com “um defeito de fabricação que não se nota”. No entanto, se alegra ao dizer que seus filhos não têm, e, possivelmente, não terão esse “defeito” e que gosta de vê-los crescendo com pai e mãe presentes.

A perspectiva de futuro é exposta de diferentes formas pelos entrevistados, seja por Valentina, ao reivindicar para si o otimismo, ou pelas Mulheres de Calama, ao buscarem seus familiares. A esperança que acompanha essa perspectiva de futuro, a partir de um olhar do presente sobre o passado, parece fazer com que todos esses personagens, a seu modo, deem sentido à sua própria existência, mas também àquilo que eles querem ser, manter, construir e repassar para as próximas gerações. Esse sentimento está inclusive em Violeta Berríos que, apesar de se apresentar como uma personagem cética, nos diz: “Se eu o encontrar hoje e me disserem que amanhã eu morro, eu partirei feliz. Mas eu não quero morrer sem encontrá-lo”.

A forma como Patricio Guzmán lida com a memória e a apresenta aos espectadores em sua narrativa merece um olhar mais atento dos historiadores. Sem abrir mão de uma perspectiva claramente política, o cineasta busca explorar a complexidade da memória, que muitas vezes se manifesta de forma contraditória. Além disso, Guzmán nos apresenta também diferentes dimensões do passado, do presente e do futuro, ao debater um tema tão sensível quanto o desaparecimento forçado de pessoas.



  1. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004. (Coleção História). p.197-203. [1ª. ed. inglesa: 2001].

  2. TRAVERSO, Enzo. Melancolia de Esquerda: Marxismo, História e Memória. Belo Horizonte-Veneza: Âyné, 2018.


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