Como despedir-se de um site? O fim e o arquivamento do Yahoo! Respostas
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  • Foto do escritorPedro Terres

Como despedir-se de um site? O fim e o arquivamento do Yahoo! Respostas

No dia 4 de maio de 2021, uma edição chamou a atenção do Lucas, que navegava pelas mudanças recentes da Wikipédia. Com uma alteração significativa no conteúdo do verbete, o resumo da edição dizia “Ajustes (retirando excesso de negritos e colocando todos os verbos no passado, já que o site não existe mais)”. Não é novidade para os wikipedistas a mudança, por parte de algum editor com disposição, de todos os verbos de um artigo para o passado quando uma pessoa morre – caso relatado com muito bom humor neste vídeo. Nessa edição, no entanto, foi diferente: a morte anunciada era a do Yahoo! Respostas (YR).


Uma visualização mais detalhada desta mudança pôde ser feita ao acessar o histórico de edições do verbete Yahoo! Respostas. O software da plataforma, e alguns outros scripts utilizados por quem costuma revisar edições cotidianamente, permitiram a observação destas edições e seus respectivos impactos no texto. Com o auxílio da ferramenta WikiEdDiff, a alteração do presente do indicativo para os pretéritos perfeito e imperfeito no verbete pode ser observada, com o laranja indicando o que foi retirado, e o azul o que foi colocado no lugar:



É essa “transparência” do histórico de edições que levou o historiador e wikipedista australiano Liam Wyatt (2020) a observar a Wikipédia como um “palimpsesto infinito”. Wyatt parte da ideia de que a Wikipédia é como um pergaminho digital que pode ser infinitamente raspado, indo e voltando nas camadas de texto. Porém, a Wikipédia não apenas permite a constatação de diferentes versões e mudanças, mas também que elas sejam visualizadas com bastante clareza em relação ao que foi inserido ou adicionado em cada edição, com diferenciações que facilitam em muito a análise do histórico de edições. Como pode ser observado nas duas comparações ilustradas acima, onde as palavras grifadas em azul foram inseridas e as em laranja excluídas, o índice de verificação das edições da Wikipédia é bastante alto.


Wikipedistas, acostumados às dinâmicas da plataforma, poderíamos encarar a situação desinteressadamente, já que é comum e necessária a alteração dos verbos de um artigo para que ele corresponda ao seu próprio tempo. Da mesma forma, a comparação de mudanças potencialmente problemáticas é parte do cotidiano de usuários ativos em combater edições danosas à Wikipédia. Historiadores que somos, ao observarmos as mudanças em conjunto com outras ações de arquivamento e homenagens relacionadas ao fim do YR, podemos entender a edição daquele verbete como parte de um processo maior de mobilização – até de luto, quem sabe – pela “morte” de um site. Estamos diante, portanto, de um dos efeitos da morte de um site que, querido ou não, fez parte do cotidiano de quem até então utilizou a internet para buscar informações pontuais.


Relacionar estas mudanças a outras ações tomadas a partir do fim do YR, no entanto, implica lançar diferentes olhares a uma mesma questão: enquanto a Wikipédia permite análises e comparações nos históricos de edição, diversas outras páginas na internet sofrem alterações nada verificáveis por seus usuários. Em sites onde a navegação entre versões e registros são restritas aos operadores do sistema, a saída para o acesso às mudanças está no arquivamento manual e as posteriores comparações entre versões arquivadas.


Estes arquivamentos manuais também podem ser observados nas próprias práticas de edição na Wikipédia. Para que as fontes digitais consultadas na escrita de verbetes sejam visualizadas tal qual estavam no dia em que foram consultadas, os wikipedistas utilizam uma ferramenta de arquivamento chamada Wayback Machine, que permite o arquivamento e posterior acesso a uma versão de um site como ele estava no exato momento em que foi arquivado. Os sites arquivados podem ser facilmente acessados a partir do link gerado no momento do arquivamento.


Na Wikipédia em inglês, no artigo sobre o próprio Yahoo! Respostas (Yahoo Answers!) a principal fonte sobre o anúncio do seu fim, no dia 5 de abril, é um link para uma página do próprio Yahoo!, hoje já inexistente, e que sobrevive apenas através do Wayback Machine. A necessidade de arquivamento manual do Yahoo! não é uma novidade: se a Wikipédia é um palimpsesto infinito onde é possível navegar livremente pelos históricos de suas páginas, o Yahoo! é uma biblioteca construída junto a um depósito de materiais inflamáveis.


Não é à toa, nesse caso, que a imagem de uma pessoa correndo pela porta de um prédio em chamas enquanto segura uma caixa cheia de arquivos seja uma das logos escolhidas pelo projeto Archive Team (AT). O AT é composto por uma equipe voluntária de arquivistas, historiadores e programadores que se dedica a salvar o máximo de dados possíveis de sites moribundos, como o YR. Quando, no dia 5 de abril de 2021, foi anunciado que o site seria encerrado no dia 4 de maio, o grupo de voluntários iniciou uma corrida contra o tempo para salvar o máximo de dados possível.


Foi justamente o anúncio do fim do serviço de hospedagem de sites Yahoo! Geocities, em abril de 2009, o evento que catalisou a criação do AT. Após terem conseguido salvar quase 650 gigabytes de conteúdo do Geocities, os voluntários do AT disponibilizaram tudo o que salvaram no formato de um torrent, carregado inicialmente na plataforma ThePirateBay, e posteriormente salvo em Wayback Machine. O torrent vinha acompanhado de um texto introdutório, que, em meio a alguns palavrões direcionados ao Yahoo!, afirmava: “[O] Yahoo! conseguiu destruir a maior quantidade de história no menor espaço de tempo (ao menos propositadamente) na memória humana. Milhões de arquivos, contas de usuários, tudo desaparecido”.


A afirmação não era descabida: o Geocities, criado em 1994, havia sido um dos primeiros serviços a permitir que qualquer pessoa com acesso à internet pudesse criar sites e uma página própria. Além disso, para uma geração de usuários que acabava de chegar à internet, ainda não familiarizada com as possibilidades da web 2.0, o Geocities oferecia uma analogia simples e potente: as páginas pessoais eram como prédios e quadras dentro de uma ampla cidade, organizada por temas.


Matéria sobre páginas pessoais na Folha de São Paulo em 19 de junho de 1996. Fonte: Folha de S. Paulo.

Assim, os usuários deixavam de ser meros navegantes da internet e passavam a ser habitantes, com seu próprio pedaço de terra dentro de uma cidade localizada no “ciberespaço”. Estas páginas pessoais, que inicialmente tinham um limite de tamanho de 2 megabytes – impressionantes, aos olhos dos usuários de 2001 –, têm uma aparência tão datada quanto o próprio termo “ciberespaço”: GIF’s coloridos e cheios de brilho, ícones pixelados e uma onipresença da fonte Comic Sans. Em suma, um aglomerado de escolhas hoje esteticamente duvidosas ao ponto de fazer qualquer designer gráfico perder o sono.


Frente a isso, algumas pessoas podem perguntar: por que gastar tanto esforço no arquivamento de sites desse tipo? Aliás, o mesmo pode ser dito sobre o YR, um site que ficou conhecido sobretudo pelos memes gerados a partir de suas perguntas, como “Quem é esse cantor Lyrics?”, “O que é essa tal de lei de gaga?”, entre tantas outras.


A resposta talvez se encontre naquilo que saiu de melhor dos dados salvos do Geocities, em 2009: o projeto “One Terabyte for the Kilobyte Age”. A partir dos dados extraídos do Geocities, arquivados pelo AT, os artistas Olia Lialina e Dragan Espenschied se dedicam a analisar não apenas a iconografia das páginas do falecido site, mas também como mudaram as maneiras de se expressar na internet e a estranha forma como se constitui a memória nas ruínas de uma cidade digital. Afinal, o resultado do trabalho de arquivamento de sites pelo Wayback Machine nem sempre é completo. Em vários sites, as imagens, links e ícones se encontram quebrados, desaparecidos ou mantém-se apenas suas legendas e textos.


Casos como as “mortes” do Geocities e do Yahoo! Respostas demonstram que os lugares da internet em que habitamos, onde armazenamos nossas fotos, mensagens, trabalhos e memórias são efêmeros. Os moradores da cidade de Geocities até podiam se sentir donos de suas próprias páginas, mas na verdade não passavam de inquilinos do Yahoo!, que se reservava o direito de incendiar a cidade inteira no momento em que deixasse de ser lucrativo mantê-la, independente dos bens mantidos por quem a habitava. A depender do humor, o proprietário – geralmente uma empresa do chamado Vale do Silício, na Califórnia – pode dar um aviso prévio razoável, como foi o caso do Google +, em 2019, que ao longo de seis meses permitiu que o Archive Team salvasse um total de 1,56 petabytes em arquivos, o equivalente a 1,5 milhões de gigabytes.


No caso do Yahoo! Respostas, foram trinta dias de aviso prévio. Ao longo da semana que antecedeu a morte do site, na madrugada do dia 4 de maio, o Pedro ajudou o projeto através do Archive Team Warrior, um programa que possibilita aos voluntários o empréstimo de parte de sua internet e do processamento do seu computador para apoiar o arquivamento. Junto dos demais participantes do projeto, foi possível salvar 299,73 milhões de respostas, divididas em onze línguas, somando um total de 4,75 terabytes de dados.


Não é possível saber qual era o total de respostas que existiam no site, mas imagina-se que milhões de respostas tenham sido perdidas. Na madrugada do dia 3 para o dia 4 de maio, o número de respostas arquivadas foi caindo conforme os servidores do Yahoo! eram desligados. Às 02h05 da manhã, o número de arquivamentos chegou a zero e os voluntários lamentaram a morte do site com o meme “press F to pay respects” – um fenômeno cultural da internet que provavelmente envelhecerá tão bem quanto os GIF’s de gatinho do Geocities.


Usuários prestando suas condolências à morte do Yahoo! Respostas

Por mais que pudesse parecer a solução para a incansável busca humana pelo registro e pela organização do conhecimento, o mundo digital impõe diversos desafios ao acesso à informação. Em uma velocidade incomensurável, mares de fontes e mais fontes digitais vão sendo criados, e outros desaparecendo, diariamente. Casos como o do Yahoo! Respostas são emblemáticos para que observemos a fragilidade da vida no mundo digital. Frente à necessidade de acesso, o arquivamento dos sites é uma tentativa de responder à efemeridade de suas versões e até mesmo de suas durações.


Ferramentas como o Wayback Machine e os históricos de edição da Wikipédia, além de boas ferramentas de acesso à informação, são fontes ricas em materiais para a análise empírica da busca pela sobrevivência na internet, um espaço onde quanto mais se cria, mais se perde. Nesse sentido, é imperativo que pensemos nas formas como nossa vida, nossos dados e nossas memórias digitais estão sob tutela das gigantes empresas de tecnologia do Vale do Silício e que, a partir disso, possamos lutar por gerenciamentos mais responsáveis de nossos dados e de nossas memórias.


A promessa que emergia na internet dos anos 1990 e início dos anos 2000 era a de um espaço público global, análoga a uma cidade habitada por usuários-cidadãos. Vinte anos depois, é difícil olhar para essa promessa sem enxergar muito mais que um cheque em branco. Ainda assim, torna-se mais que necessário que continuemos a cobrar e a construir espaços que prezem a construção de uma internet aberta, livre e em que não seja possível que uma empresa anuncie de uma hora pra outra a aniquilação total dos dados de seus usuários.


 

Lucas Piantá e Pedro Terres são mestrandos em História e colunistas do site História da Ditadura.


 

Bibliografia:


CHUN, Wendy. The Enduring Ephemeral, or the Future Is a Memory. Critical Inquiry. V. 35, n. 1, 2020, p. 148-171

CRAWFORD, James. Fallen Glory: The Lives and Deaths of History’s Greatest Buildings. Pan Mcmillan: Londres, 2017.

FISCHER, Gustavo D. Vida, morte e pós-morte do GeoCities: memória em degeneração/regeneração e nostalgia como crítica no projeto One Terabyte of Kilobyte Age. Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo, 2016.

WYATT, Liam. Endless palimpsest: Wikipedia and the future’s historian. Studies in Higher Education. Vol. 45, Num. 5, p. 963-971, 2020.


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