Sobre mortes, quantificações e subnotificações
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  • Foto do escritorLucas Pedretti

Sobre mortes, quantificações e subnotificações

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

Em 1990, foi localizada uma vala comum clandestina no cemitério de Perus, na zona leste da cidade de São Paulo. Naquele momento, teve início um périplo – que segue até os dias de hoje – para a identificação das ossadas encontradas. Sabe-se, atualmente, que a vala foi o destino de mais de 1.300 corpos, dentre os quais cerca de quarenta militantes políticos assassinados pelo Estado durante a ditadura (1964-1985). Os outros mais de mil mortos foram vítimas de grupos de extermínio e pessoas atingidas pelo surto de meningite que acometeu o Brasil na década de 1970.

Em 2020, em meio à pandemia da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, a cidade de Manaus começou a abrir covas coletivas para enterrar os mortos. Entre os dias 12 e 19 de abril, segundo o portal UOL, a prefeitura registrou 82 enterros diários, em contraste com a média de 28 sepultamentos por dia em 2019. Ainda segundo o portal, no dia 19 daquele mês, houve 122 enterros, dentre os quais apenas três foram identificados oficialmente como sendo de pessoas mortas em decorrência da covid-19. O caso de Manaus foi o primeiro a se notabilizar no Brasil. No entanto, a partir de meados de maio, a situação descrita pela matéria se generalizou por vários estados do país.

Números e quantidades costumam ser muito utilizados em nossas tentativas de descrever a realidade. Aparentemente, eles apenas ajudam a ilustrar um determinado cenário, não sendo, eles mesmos, objeto de discussão. “Os números não mentem” é a frase que sintetiza essa ideia. E se os números não mentem, frente a eventos históricos traumáticos, parece lógico analisá-los a partir da quantificação dos danos causados. Aqui, as listagens de vítimas ocupam um lugar central. Com isso, abre-se caminho também para a comparação entre esses eventos: afinal, qual tragédia é mais relevante e merece mais atenção?

Homenagem aos presos políticos no cemitério de Perus, São Paulo, 2007 (Bruno Pedrozo/ Wikimedia Commons)

Esse tipo de raciocínio ocupa um lugar importante no repertório discursivo dos grupos de direita. Uma das formas que tal raciocínio assume com grande frequência no Brasil é: “a ditadura brasileira deixou só algumas centenas de mortos, foi uma ‘ditabranda’. Violento foi o comunismo, que matou milhões de pessoas”. Mais recentemente surgiu uma nova formulação: “a covid-19 é apenas uma ‘gripezinha’. Por ano, morre muito mais gente de outras doenças e ninguém fala nada”. Ao se empurrar a discussão para o terreno da contabilidade de cadáveres, torna-se possível rebaixar a importância de determinados eventos, já que outro acontecimento qualquer teria deixado mais vítimas. Seguindo essa lógica, como os números não mentem, o argumento torna-se inquestionável.

Mas será que os números realmente não mentem? Para pensar sobre isso, voltemos ao caso da Vala de Perus. As limitadas políticas públicas criadas no país para reconhecer e reparar as violações de direitos humanos do regime autoritário se restringiram aos danos causados a militantes políticos. Desse modo, os esforços institucionais de identificação de pessoas enterradas na vala ficaram restritos àquelas pouco mais de quarenta ossadas. Assim, nos números oficiais sobre a ditadura no Brasil, a Vala de Perus – que continha mais de mil ossadas de pessoas assassinadas por ação ou omissão do Estado entre os anos de 1960 e 1980 – foi o destino dos corpos de “apenas” algumas dezenas de vítimas da ditadura.

O que esse caso nos mostra é que a definição de quem são as vítimas de um evento traumático é mais do que mera operação aritmética. Antes de contar corpos, é preciso decidir quais corpos devem ser contados. Em outras palavras, a quantificação não é uma apreensão da realidade tal como ela é, mas é produto de uma seleção sobre quais aspectos da realidade serão considerados naquela forma numérica e quais ficarão de fora. Por isso, nas listagens de vítimas, aquilo que se esconde é tão importante quanto o que se revela.

A classificação que construímos historicamente para dar conta dos indivíduos mortos pelo Estado brasileiro durante a ditadura é um reflexo das desigualdades e do racismo que estruturam nossa sociedade. Para os militantes, majoritariamente brancos e advindos das classes médias, ainda foi possível, a partir da luta incansável de seus familiares, a construção de algum grau de reconhecimento público e estatal. Mas seguem ocultos os nomes, os números e as memórias daqueles que, no final das contas, sempre foram vistos como descartáveis: jovens negros; moradores de áreas periféricas da cidade, vistos como “marginais”; e cidadãos pobres mortos por uma doença sobre a qual pouco se soube, em razão da forte atuação da censura.

Assim, no caso da ditadura brasileira, os números mentem. Nossas listagens de vítimas são incompletas, limitadas e cheias de brechas. É essa memória limitada sobre a ditadura no Brasil que está na base do surgimento de narrativas falseadas sobre o passado como, por exemplo, a afirmação de que tivemos uma “ditabranda”. A quantidade de vítimas da ditadura é menor que a de outros regimes autoritários porque aqui seguimos mantendo em silêncio as histórias de muitos dos mortos por agentes do Estado. Essa operação política é perversa: o não-reconhecimento de milhares de indivíduos como vítimas da ditadura acaba por conferir legitimidade às narrativas que desqualificam o regime como um período de violência. Por sua vez, a proliferação desses discursos torna mais difícil a construção de um consenso acerca da necessidade de se tratar o legado da ditadura como um problema público central. Portanto, medidas mais aprofundadas de acerto de contas com esse passado não são levadas adiante.

O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta manifestantes que foram a ato pró-governo neste domingo (15), na frente do Palácio do Planalto – Sérgio Lima/AFP (Divulgação)

O olhar crítico para as formas de se classificar e de quantificar as vítimas de eventos traumáticos parece útil para observarmos as novas valas comuns ou individuais abertas no país. Nelas, milhares de corpos vêm sendo enterrados diariamente, mas “apenas” alguns deles são identificados como vítimas do coronavírus. Desde o início da pandemia do novo coronavírus no Brasil, as discussões sobre a subnotificação dos dados têm sido crescentes.[1] A despeito das inúmeras pesquisas que apontam para a possibilidade de o número de mortes causadas pela covid-19 ser significativamente maior que as cifras oficiais, seguimos lidando com os dados do Ministério da Saúde, que atualmente apontam para 13.149 mortes e 188.974 casos confirmados.

À primeira vista, a subnotificação parece ser um problema relacionado apenas ao preenchimento de uma linha em um atestado de óbito ou de uma célula em uma planilha. Para enfrentar uma questão “técnica”, soluções “técnicas”: ampliar o número de testes e melhorar os sistemas eletrônicos de registro de óbito. No entanto, a subnotificação é reveladora não apenas do limite da capacidade de um sistema de saúde sufocado pelo congelamento de verbas e pela ânsia privatista na área. Como no caso das listagens de vítimas da ditadura, ela diz muito também sobre a forma pela qual historicamente o Brasil lida com seus mortos.

Quem são aqueles que, mesmo mortos, não são testados? Quem são aqueles que morrem em suas casas e, por isso, não têm a causa de sua morte identificada? Quais corpos o conjunto da sociedade aceita ver em contêineres transformados em geladeiras de necrotérios ou em valas coletivas? Quem são aqueles que, nas masmorras do esquecimento que são nossas prisões, morrem e não são identificados? Qual a cor de suas peles, seu endereço?

Hoje, quando nos números oficiais já passamos os dez mil mortos e caminhamos a passos largos para as próximas dezenas de milhar, o debate sobre a subnotificação parece perder força. Afinal, os números efetivamente notificados já são grandes e assustadores o suficiente. Mas o não-reconhecimento de determinadas mortes como vítimas da covid-19 impede que os familiares e amigos daquelas pessoas consigam inscrever suas histórias na narrativa de um drama que é coletivo. No futuro, quando houver – e se houver – formas de se falar e rememorar os mortos da pandemia, encontraremos, mais uma vez, incalculáveis corpos que não parecem dignos de pertencer à memória comum. Os mesmos corpos de sempre. E assim, adicionaremos mais uma camada na vala coletiva do apagamento de nossa história de violência. Começamos nos cemitérios de indígenas e africanos escravizados, passamos pelos cemitérios da ditadura e chegamos até aqui: construindo ativamente um esquecimento coletivo que está na base da eterna repetição da barbárie que parece nos perseguir.

 

Nota

[1] A título de exemplo: em 03 de abril, a revista Piaui publicou o artigo “Resultado de teste de covid-19, só um mês depois do enterro”. Quase um mês depois, o jornalista Hélio Gurovitz publicou, em seu blog no portal G1, a coluna “O impacto real da Covid-19”. No dia de ontem, nova matéria da Folha abordou a questão.

 

Crédito da imagem destacada: Agence France Presse

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