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Foto do escritorHistória da Ditadura

De Castelo a Teori: sobre a História, a morte e o arbítrio

Atualizado: 15 de out. de 2020

 

A morte prematura do ministro Teori Zavascki do Supremo Tribunal Federal provocou reações as mais diversas no público brasileiro. Raramente, o desaparecimento de Zavascki foi analisado por sua característica mais humana: a morte do ministro foi uma tragédia familiar. Ao longo dos últimos dias, as redes sociais foram inundadas com teorias e elucubrações sobre as verdadeiras causas do acidente – teria seria um acidente? – que vitimou Zavascki aos 68 anos de idade. Por um lado, o desempenho profissional do juiz, na relatoria do processo da Lava-Jato, associado ao envolvimento de líderes do atual governo com consabidos casos de corrupção, foram os ingredientes para o argumento de que a morte de Zavascki não fora obra do acaso. Por outro lado, o tratamento que a imprensa brasileira vem dispensando ao caso tem colaborado para dado pragmatismo insensível e superficial.

Imediatamente, surgiram análises que procuravam comparar a queda da aeronave, que transportava o ministro, com outro acidente aéreo, que causou certa comoção no país há 50 anos. Estamos nos referindo ao acidente que provocou a morte do general Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967), o primeiro militar a ocupar a presidência da República após o golpe de 1964. A aeronave que transportava Castelo, um Piper Aztec, que pertencia ao Governo do Estado do Ceará, chocou-se contra o solo no dia 18 de julho de 1967. Castelo Branco tinha 69 anos de idade.

Nos últimos 50 anos, parece haver certo predomínio no senso comum das teorias que procuram explicar a morte de Castelo Branco como uma conspiração dos agrupamentos de militares da chamada “linha dura”. Nessa leitura, o próprio Costa e Silva, companheiro de generalato de Castelo Branco e seu sucessor no comando da ditadura militar, estaria por trás da conspiração. Afinal: Castelo Branco morreu em um trágico acidente ou teria sido eliminado em uma manobra dos novos ocupantes do Palácio do Planalto?

De acordo com a versão oficial, no dia 18 de julho de 1967, o general Castelo Branco despediu-se da amiga e escritora, Rachel de Queiroz, para embarcar na aeronave, que o transportaria à cidade de Fortaleza, no estado do Ceará. A manhã lhe havia presenteado com um céu de brigadeiro. A bordo da aeronave, que havia sido cedida por um órgão público, o general, que viajava acompanhado por seu irmão, Cândido Castelo Branco, elevando a voz para tentar superar o motor da aeronave ainda em solo, se esforçaria por conversar com os companheiros de viagem: a escritora Alba Frota e o major Manuel Nepomuceno. Às 9 horas da manhã, o Aztec tocava o solo pela última vez para alcançar voo. O general acompanhou a aeronave se distanciar do solo e se manteve em silêncio por alguns minutos, com os olhos fixos no infinito que a visibilidade quase ilimitada lhe garantia.

A aeronave, sob o comando de Celso Tinoco Chagas, iniciou os procedimentos de descida aproximadamente 30 minutos depois de haver se despedido do sítio da autora de O Quinze. O copiloto, Emílio Celso Chagas, filho do comandante, iniciou os procedimentos de checagem dos instrumentos de pouso. Nesse instante, o pequeno Aztec seria atingido por um caça da FAB (TF-33- FAB 4325).

O piloto da Força Aérea, apesar dos danos físicos que a própria aeronave sofrera, restabeleceria o controle do voo e retornaria em segurança à base. A nave de Castelo Branco entraria em parafuso. Em poucos segundos, o avião voltaria ao solo; dessa vez, para provocar a morte de 5 passageiros. Apenas o jovem copiloto sobreviveria. Castelo Branco estaria morto no mesmo dia.

A queda da aeronave foi um acidente? Na conclusão do inquérito oficial: o choque fora mero acaso. Na interpretação dos peritos, as duas aeronaves dividiram o mesmo “corredor” em direção à capital cearense. Muitos anos depois, a versão oficial do acidente seria “confirmada” pela escritora Raquel de Queiroz, em entrevista concedida em 1991, para o programa Roda Viva, da TV Cultura. Nas palavras da escritora:

“Castelo Branco pediu ao piloto que passasse por cima da maior linha de distribuição de energia do São Francisco para ver os postes de alta tensão. O comandante ficou indeciso, mas atendeu ao pedido. No instante em que eles atravessaram a linha, vinha uma formação de três jatos, e a ponta de um dos jatos pegou. De forma que o atentado seria impossível, tinham que adivinhar que o Castelo ia pedir, que o comandante não iria, depois cedeu, e que o jato iria coincidir naquela hora…”

Todos esses argumentos têm sido manejados por aqueles que negam a possibilidade de que a queda da aeronave em 1967 não tenha sido um mero acidente. No caso em tela, torna-se evidente que a elaboração da narrativa oficial, que explica “o que foi que realmente aconteceu”, atende, inevitavelmente, a um propósito político. Ainda em 1967, a ditadura militar sob o comando de Costa e Silva exerceria forte pressão sobre as informações que eram divulgadas sobre o caso. As investigações, a cargo de órgãos oficiais comandados por aliados da ditadura, seriam consideradas, para muitos analistas, uma manobra pouco transparente para encobrir um assassinato político.

Estavam dados os elementos para a elaboração da teoria, que buscava explicar a morte de Castelo Branco: o general teria sido vítima de um complô, que fora orquestrado pelos militares da chamada “linha dura”. Para além das investigações oficiais, que ficaram a cargo de um inquérito militar, seria iniciado um estudo sigiloso pelo Serviço de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. De acordo com reportagem publicada pela revista IstoÉ no ano de 2006, os resultados desse trabalho teriam sido apresentados para o general Costa e Silva em novembro de 1967. Ao público, restaria a versão de que o piloto do avião, no qual Castelo Branco viajava, teria invadido o espaço aéreo reservado para treinamento militar do grupo de aviação com o qual se chocaria.

Na linha argumentativa dos que apontam a existência de um crime político, para além dos dados técnicos, que são as questões periciais relacionadas às práticas aeronáuticas, há um forte componente de interpretação histórica sobre o embate entre Castelo Branco e os membros da linha dura. De acordo com essa visão, Castelo Branco seria um militar moderado, que se opunha à radicalização dos instrumentos ditatoriais e que desejava o retorno dos civis ao comando do país. Esses argumentos se associam às imagens que foram difundidas pelos biógrafos de Castelo Branco em obras que se tornaram referência para o estudo do governo desse militar. Em resumo, Castelo seria um militar ponderado, um homem de letras, ligado à Escola Superior de Guerra (ESG), que havia assumido o comando do país e desejava reestabelecer a democracia.

Dessa forma, com a chegada dos militares radicais ao comando do Palácio do Planalto, seria desejável livrar-se de Castelo Branco, que representava uma voz dissonante com forte poder de mobilização no seio das Forças Armadas. Cabe destacar, entretanto, que se os propósitos de Castelo Branco, enquanto comandava o país, eram, de fato, o controle da chamada “linha dura” e o reestabelecimento do estado de direito, sua administração seria um grande fracasso.

É válido destacar que Castelo Branco seria o responsável pela adoção, ainda no ano de 1964, de um sem número de instrumentos autoritários que, aos poucos, aproximavam seu governo do estado autoritário, que ele dizia repudiar. Em novembro de 1964, por exemplo, o general patrocinaria o surgimento da tristemente famosa Lei Suplicy, que afetou profundamente a organização política estudantil e facilitou a perseguição de jovens lideranças.

No ano seguinte, após a derrota da ditadura nas eleições de estaduais de 1965, Castelo Branco adotaria o Ato Institucional n. 2. Esse instrumento, dentre outros recursos arbitrários de poder, reestabelecia a possibilidade de que o presidente da República suspendesse os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassasse mandatos legislativos em todos os níveis da federação. Nos meses seguintes, Castelo Branco seria responsável pela adoção da base jurídica, que permitiria o surgimento das comunidades de segurança e informações: a base jurídica do terrorismo de Estado, que ganharia reforço definitivo com o Ato Institucional de 13 de dezembro de 1968.

De todo modo, neste breve texto, não é nosso interesse e, está além de nosso alcance, definir se a morte de Castelo Branco foi mero acidente ou crime político. Nosso propósito foi, principalmente, propor reflexão sobre alguns dos aspectos relacionados ao uso político das narrativas históricas. A morte de Castelo Branco em 1967 foi “transformada” em um mistério.

A história do acidente aéreo assumiria o mesmo perfil de acontecimentos como, para citar apenas alguns exemplos, a morte de Ulysses Guimarães, em um acidente de helicóptero no ano de 1992 na região de Angra dos Reis (teria sido um acidente?), a trágica morte de Tancredo Neves em 1985 pouco depois de assumir a presidência da República (Tancredo teria sido assassinado?), a morte de Juscelino Kubitschek em 1976 (seria um atentado ou um acidente de carro?), a morte de João Goulart em dezembro de 1976 (o presidente deposto teria sido envenenado?), o atentado contra Carlos Lacerda no dia 5 de outubro de 1954 (Lacerda teria atirado no próprio pé?), o assassinato de João Pessoa em 1930 (seria um caso passional ou o político foi vítima de complô?) e outras tantas.

A História, certamente, pode ajudar a esclarecer alguns desses episódios. Entretanto, de modo geral, essas investigações demandam um aparato técnico de outra natureza. A ausência de transparência na condução dos negócios públicos e a presença de governos ilegítimos e autoritários dificultam sobremaneira as investigações sobre os casos. Além disso, a própria condução arbitrária dos negócios políticos, produz desconfiança do público com relação aos interesses dos órgãos oficiais.

Recentemente, as disputas políticas pela narrativa “oficial” acerca da morte do presidente Juscelino Kubitschek chegaram à Justiça. As conclusões da Comissão Nacional da Verdade (CNV) foram contestadas pela Comissão da Verdade da Câmara de Vereadores de São Paulo. O então presidente da Comissão Vladimir Herzog, o vereador Gilberto Natalini, impetrou mandado de segurança sob o argumento de que a “CNV não poderia emitir seu relatório final sem analisar o relatório da comissão paulistana”. As duas Comissões chegariam a conclusões distintas. De um lado, Juscelino foi vítima de acidente; de outro, foi assassinado.

Dentre outras questões, esse episódio ilustra as dificuldades de construção do conhecimento histórico sobre o passado; dificuldade que tende a aumentar, quando lidamos com um passado ditatorial ou autoritário. A recente morte do ministro Teori Zavascki poderia sinalizar um outro caminho. A tragédia pessoal e familiar poderia ser transformada em uma vitória coletiva: símbolo da justiça e do direito à verdade. As investigações sobre o caso deveriam ser conduzidas por órgãos independentes, com observadores internacionais. Isso ajudaria, ao contrário do que se sugere, a afastar a ideia de que há uma “teoria conspiratória” a pedir inquérito sobre o caso. Em face da desconfiança do público frente à imprensa e ao governo, o esclarecimento do caso ajudaria a pavimentar um novo caminho de entendimento entre as diferentes forças políticas. O caminho que escolhemos até, entretanto, parece indicar outros rumos. Sem legitimidade e expressão popular, resta o arbítrio e as manchetes oportunistas.

 

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