Ditadura, um conceito presente
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  • Foto do escritorDaniel Sartori Borges

Ditadura, um conceito presente

Antes de iniciar minhas reflexões, acredito ser importante explicar o propósito da coluna “Educação Política”. Este será um espaço para educar politicamente os leitores. O objetivo pode soar um pouco arrogante e pretensioso, mas essa não é a intenção. A “educação” proposta aqui não é a “educação bancária”, em que “o ‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber”. Pelo contrário, concordando com Paulo Freire, acredito em uma educação libertadora, pautada na comunicação dialógica, que rompe com a ideia de que o conhecimento ocorre de forma depositária, em que um é sujeito e o outro é objeto.

Por isso, o que desejo fazer neste espaço é dialogar com autores e leitores sobre as principais ferramentas conceituais que marcam o campo político. Em tempos de enorme despolitização, embora muito se fale de política, me parece imprescindível trabalhar em conjunto para compreender com mais clareza as construções humanas de poder, de que forma elas interferem em nossas vidas e como podemos interferir nelas. Portanto, peço que deixem, no final do texto, sugestões, críticas e correções. Educação política é feita em conjunto.

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Neste primeiro texto, irei trabalhar o conceito de ditadura, afinal, de certa forma, essa noção permeia todo o conteúdo do site História da Ditadura. Além disso, concordando com Raúl Zaffaroni em O inimigo no Direito Penal, entendo que o Estado de Direito e a Ditadura (ou Estado de Polícia) apresentam uma relação dialética. O primeiro, por meio de seus mecanismos e ferramentas institucionais, existe para conter o segundo, que, com maior ou menor intensidade, busca se perpetuar. Nesse sentido, parece-me necessário compreender as características que marcam a instauração e o funcionamento de ditaduras – principalmente quando esse processo está em evidência. Ampliando um pouco mais nossa compreensão sobre o fenômeno, talvez possamos contribuir para sua contenção.

Quando pensamos sobre ditaduras, é comum que venham à nossa mente imagens de grandes líderes que dominam toda uma sociedade, usando, principalmente, da violência para impedir toda e qualquer manifestação de oposição. O Nazismo alemão e o Stalinismo soviético talvez sejam os principais retratos desses sistemas. No Brasil, podemos pensar na Ditadura Militar e no Estado Novo, de Vargas. Esses sistemas antidemocráticos modernos são os que mais interessam aqui. Porém, vale a pena passar pelo primeiro significado do termo “ditadura” para que possamos perceber como uma mesma palavra pode ter sentidos práticos diferentes e, até mesmo, contrastantes ao longo da história.

Como aponta Mario Stoppino, ao analisar o termo no Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio “a palavra ditadura tem sua origem na dictatura romana. [Ela] era um órgão extraordinário, ativado conforme processos e dentro de limites constitucionalmente definidos para fazer frente a uma situação de emergência”. Durante momentos de tensão na República Romana, caso o Senado entendesse necessário, um ou ambos os cônsules deveriam nomear um ditador para que pudesse conter o motivo da instabilidade – conduzindo uma guerra ou buscando meios para conter uma crise interna, por exemplo. Mesmo que os poderes do ditador eleito fossem amplos – comando militar, poder de fazer decretos com força de lei e até mesmo ser isento de sentenças penais –, ele não poderia revogar ou alterar a Constituição, nem impor ônus fiscais aos cidadãos ou declarar guerra. Além disso, a Ditadura Romana tinha limites temporais muito bem estabelecidos, não podendo durar mais de seis meses. Ou seja, esse era um mecanismo sistematizado e organizado pela própria República Romana para resolver problemas momentâneos. A ideia central dessa ferramenta era garantir a manutenção da ordem até então vigente.

A Ditadura Moderna, por outro lado, apresenta um caráter oposto ao da Romana. Os regimes antidemocráticos mais recentes não são estabelecidos a partir de mecanismos legítimos. Pelo contrário, chegam ao poder por meio da subversão da ordem política estabelecida. Nesse sentido, enquanto a Ditadura Romana era uma ferramenta com teor positivo, cuja função era a manutenção da ordem anterior, a Ditadura Moderna é um sistema político com teor negativo, pois rompe com a organização estabelecida, ou seja, as democracias liberais. Além de romper com as regras institucionais, essa última não tem prazo de vigência preestabelecido. Para que deixe de existir, depende de uma série de correlações de forças e pressões sociais.


De maneira geral, os regimes autoritários que rompem com as democracias liberais apresentam algumas características fundamentais. A primeira delas é a concentração e o caráter ilimitado do poder, isto é, a pessoa ou grupo se coloca acima da legislação, transformando sua própria vontade em norma. Sendo assim, as regras existentes não apresentam eficácia alguma, uma vez que a vontade autoritária é superior a elas. Um exemplo elucidativo são os Atos Institucionais (AI) utilizados pela ditadura militar brasileira. Esses instrumentos foram criados em meio à Assembleia Constituinte de 1945, para funcionar como norma enquanto ainda não havia nova Constituição. Contudo, durante o governo militar, os AI foram retomados para fornecer um verniz de legalidade às arbitrariedades do regime, compreendidos como superiores à própria Constituição e servindo aos interesses diretos do governo.

Uma segunda característica é o “fundo social e político da ditadura”. É comum que regimes autoritários sejam estabelecidos em meio a uma sociedade abalada por transformações econômicas e sociais. Esse contexto faz emergir o princípio da soberania popular, impulsionando um interesse e uma participação política de partes cada vez maiores da população. Em meio a um cenário de ebulição social, o grupo ou líder autoritário utiliza da insatisfação popular para chegar ao poder, afirmando agir em defesa da sociedade e para satisfazer os anseios do povo.

A terceira característica fundamental da ditadura é seu problema de legitimação e sucessão. Por um lado, o regime concentra poder e, por outro, afirma estar fundado no princípio da soberania popular. Dessa forma, existe uma contradição fundamental que fica evidente, sobretudo quando o poder precisa ser transferido a um sucessor. Como afirma Giovanni Sartori, citado por Mario Stoppino, “um absolutismo republicano não pode – enquanto absolutismo – ‘eleger’ o novo ditador, mas não pode tampouco ‘herdar’ por causa do princípio republicano”. Assim, é elaborado um fator de ligação contraditório entre a suposta legitimidade popular e a estrutura de poder ditatorial. Na maior parte das vezes, o elo acontece por meio do próprio ditador ou do grupo ditatorial que, afirmando sua superioridade ética e moral (a utopia autoritária), representaria diretamente as vontades do povo, ainda que o impedindo de expor essas vontades.

Um último ponto que merece atenção está relacionado à forma como o regime autoritário ascende ao poder. É comum que o rompimento da ordem democrática aconteça por meio de um golpe, quando o grupo autoritário – valendo-se da instabilidade social – articula com os demais poderes (elites econômica, civil e militar) e, por meio da força, toma o poder. Alguns exemplos como a deposição de João Goulart no Brasil, em 1964, e o ataque a Salvador Allende no Chile, em 1973, são bastante elucidativos. Contudo, o golpe violento e aberto não é a única forma de instauração de regimes antidemocráticos. Existe uma maneira mais “sutil” pela qual autoritários assumem o poder, e isso acontece, muitas vezes, utilizando regras da própria democracia liberal.

Como apontam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as Democracias Morrem, quando autocratas são eleitos, é possível que subvertam as regras democráticas por meio de instrumentos da própria democracia. Comprando veículos de informação, deslegitimando a oposição e, principalmente, aparelhando órgãos neutros (como tribunais e instituições fiscalizadoras do poder), o líder autoritário, aos poucos, estrutura uma blindagem ao seu redor e passa a governar de maneira arbitrária. Os autores advogam que para impedir a ascensão do ditador seria necessário perceber os sinais da personalidade autoritária e, então, formar alianças, principalmente entre os partidos, para barrar sua eleição. Quatro sinais seriam os principais: 1) a rejeição às regras do jogo democrático; 2) a negação da legitimidade dos oponentes; 3) a tolerância e o encorajamento à violência; 4) a disposição à restrição das liberdades civis de seus oponentes. Infelizmente, por mais que os sinais estejam expostos, isso não significa que haverá uma coligação de forças para impedir a eleição do líder autoritário. Pelo contrário, quando parece interessante a determinadas forças políticas, estas o abraçam. Talvez acreditem que, caso ele ultrapasse os limites, terão meios para contê-lo. Nem sempre isso é verdade.

Forças autoritárias, ainda que sofram as transformações ao longo da história, continuam presentes e buscando o poder. Se, por um lado, não é possível determinar quando uma ditadura surgirá, por outro, é possível investigar as dinâmicas sociais da história com o intuito de perceber possíveis padrões na ascensão desses regimes. Quando nos deparamos com lideranças políticas que, mesmo eleitas, fazem acusações de fraudes nas eleições, defendem o fuzilamento de adversários políticos e nomeiam aliados a cargos de investigação, ignorando as “boas práticas democráticas”, uma escalada autoritária aparenta estar em marcha. Como conter essa ascensão? Difícil dizer, mas talvez compreendê-la seja um primeiro passo.

Créditos da imagem destacada: Repressão policial a manifestação estudantil no Rio de Janeiro em junho de 1968. Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 00229 051.


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