Dizer o que é justo, dar voz às vítimas, publicizar a memória
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  • Foto do escritorCarlos Artur Gallo

Dizer o que é justo, dar voz às vítimas, publicizar a memória

Atualizado: 9 de mar. de 2022

Para encerrar meu primeiro ano como colunista do História da Ditadura, proponho uma reflexão sobre uma questão que, há muitos anos, me interpela: por qual razão devemos insistir no julgamento dos crimes que foram cometidos por regimes de exceção? Abordar este tema torna esta coluna mais pessoal do que as anteriores. Explico: pensar na questão que proponho é algo que está diretamente associado ao que considero, hoje, um ponto de inflexão na minha trajetória acadêmica.


Antes de me tornar cientista político, realizei parte de minha formação na área do Direito. Questionar acadêmicos do campo jurídico sobre os motivos pelos quais as pessoas se dirigem e/ou devem se dirigir ao Poder Judiciário, via de regra, não avança para além de respostas retóricas ou simplistas, tais como: “vamos ao Judiciário em busca de justiça”, “o processo serve para que o sujeito ofendido tenha seus direitos restabelecidos” ou “o Judiciário garante que as ofensas cometidas sejam punidas”.

Em 2008, quando estava me preparando para concorrer a um processo seletivo de mestrado, cursei, como ouvinte, uma disciplina de Sociologia Jurídica ministrada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Naquela oportunidade, fui aluno do professor Raúl Enrique Rojo, um docente argentino cujos estudos haviam focado, justamente, na luta por justiça empreendida na Argentina pós-ditadura. As leituras realizadas para alguns encontros, somadas ao contexto que vivíamos no Brasil – lembre-se que em outubro de 2008 ganhou grande repercussão na mídia a proposição da ADPF nº 153 no Supremo Tribunal Federal –, foram o ponto de partida para o estabelecimento de uma agenda de pesquisas na qual venho trabalhando desde então.

Com base na leitura de uma obra do sociólogo francês Antoine Garapon, entendi que sempre existem crimes que não poderemos punir adequadamente. Essa afirmação remete à derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que foi seguida pela tentativa de punição dos crimes cometidos pelos regimes totalitários alemão e italiano. Os julgamentos de Nuremberg (1945-1946), nesse sentido, podem ser compreendidos como um divisor de águas na forma como se lidava com a questão do julgamento e da punição de determinados crimes na contemporaneidade.

A ausência de tipos penais para julgar parte dos crimes cometidos pelos nazistas foi um dos diversos problemas enfrentados em Nuremberg. Como punir aquilo que, do ponto de vista técnico-jurídico, não era previsto nos códigos? A normativa internacional que atualmente embasa violações aos Direitos Humanos – como o crime de genocídio – não existia. Não se utilizava, ainda, nem mesmo o termo “Direitos Humanos”. A Organização das Nações Unidas (ONU) era uma criação recente, e diversas instâncias e mecanismos internacionais que fazem parte de nosso cotidiano estavam dando seus primeiros passos ou seriam criadas apenas nas décadas posteriores.

Julgar e punir, no entanto, configuram situações bastante distintas, que nem sempre se realizam conjuntamente. Isto é: ainda que julgamentos ocorram, isso não garante que ocorrerá a atribuição de penas àquelas pessoas que foram acusadas. São notórios os casos de pessoas que em alguma medida colaboraram com o regime nazista e que foram absolvidas, seja nos julgamentos realizados em Nuremberg, seja em processos posteriores, realizados por tribunais nacionais.

Para dar um exemplo mais próximo do contexto brasileiro, nem mesmo na Argentina – que costuma ser identificada como um paradigma no tema da punição dos crimes da ditadura – há atribuição necessária de penalidades aos acusados. O Juicio a las Juntas (Julgamento das Juntas), realizado em 1985, condenou à prisão perpétua antigos dirigentes do regime autoritário argentino, mas, ao mesmo tempo, absolveu parte dos acusados.

Outro ponto do debate se insere na discussão sobre os limites que, mesmo uma sentença condenatória, possui. Afinal de contas, diante de crimes irreparáveis, para que serve uma sentença? A condenação dos responsáveis ou a concessão de uma indenização jamais irá apagar a dor das vítimas. Os sobreviventes sempre carregarão consigo as marcas visíveis e invisíveis da tortura, da humilhação ou da perda de um ente querido. Nas aulas do professor Rojo discutimos que a falta de condições técnico-jurídicas para embasar a punição de alguns crimes e/ou para realizar determinados julgamentos, assim como os limites ou a ausência de sentenças condenatórias, contudo, não deveriam significar um desincentivo para que se leve a denúncia de alguns crimes ao Poder Judiciário. Por qual razão, então, insistir no uso das instituições judiciais? Qual o sentido de investir em processos que envolvem crimes que, a rigor, não poderão, jamais, apagar a tragédia ocorrida?

O ato de julgar, em si, representa a possibilidade de tornar público, em termos burocráticos e institucionais do campo jurídico, um debate, uma discussão. O ato de julgar, atrelado etimologicamente à própria ideia de jurisdição, está associado à declaração (publicização) daquilo que uma sociedade considera justo (e que está previsto em suas leis). O juiz julga. Tem o dever de dizer o que é justo. Analisa os fatos. Sentencia. Torna público, institucional e burocraticamente, um debate. Com ele, ganham voz as vítimas. Torna-se pública, igualmente, a memória. Eis aqui, talvez, o motivo pelo qual o julgamento de alguns crimes que não podemos punir adequadamente deve ser realizado. Independentemente do resultado (que esperamos) da sentença, mas diretamente associado à ideia de justiça que tentamos fixar como um horizonte coletivo.


Créditos da imagem destacada: Condenados: el juicio a las juntas, que derivó en castigos para los comandantes militares; 40 años después del golpe, aquel proceso judicial cobra renovado valor. Reprodução.

 

  1. A ADPF nº 153 foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em outubro de 2008 e julgada pelo STF em abril de 2010. A ação solicitava, à cúpula do Judiciário brasileiro, um esclarecimento sobre a interpretação dada à Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979). Detalhes sobre o julgamento da ADPF nº 153.

  2. Entre os casos emblemáticos de colaboradores do nazismo que foram inocentados encontramos: Leni Riefenstahl (1902-2003), atriz e cineasta alemã que realizou uma série de filmes que serviram de propaganda política do regime, e Carl Schmitt (1888-1985), jurista e apoiador do nazismo.

  3. O julgamento das Juntas Militares que governaram a Argentina durante a ditadura foi viabilizado mediante a criação de uma série de mecanismos jurídicos implementados a partir de dezembro de 1983, quando o presidente Raúl Alfonsín (1983-1989) foi empossado. O primeiro desafio enfrentado para a realização dos julgamentos foi conseguir realizá-lo no âmbito da justiça comum. Em 1985, todos os integrantes das Juntas foram colocados no banco dos réus e julgados por diferentes crimes cometidos Durante o regime autoritário argentino. Apesar disso, nem todos receberam penas semelhantes, devido às responsabilidades individuais que foram possíveis de serem atribuídas naquele momento, com base nas provas produzidas durante o julgamento. Assim, enquanto alguns dos acusados foram condenados à prisão perpétua, outros foram absolvidos. A absolvição de parte dos integrantes gerou polêmicas, sendo questionada por movimentos de defesa dos direitos humanos. Para mais detalhes sobre o Juicio a las Juntas, ver: ROJO, Raúl Enrique. Recordar o passado: Poder Judiciário e direitos humanos na Argentina. In: GALLO, Carlos Artur (Org.). No rastro das transições: perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no Sul da Europa. Pelotas: Editora da UFPel, 2019. p. 67-99.

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