Entrevista com a historiadora Cassie Osei
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Entrevista com a historiadora Cassie Osei


A coluna Brasil por Brazil, editada por Lucas Koutsoukos-Chalhoub e Luiz Paulo Ferraz, busca aumentar as oportunidades para o público brasileiro conhecer pesquisas e obras sobre o Brasil produzidas fora do país entrevistando pesquisadores brasileiros e estrangeiros atuantes no exterior.


Cassie Osei é professora assistente de história na Bucknell University. Nesta entrevista, conversamos sobre sua tese Another Urban Grammar: Black Perspectives on Social Mobility in Twentieth Century São Paulo (Outra Gramática Urbana: Perspectivas Negras sobre Mobilidade Social em São Paulo no Século XX, em tradução livre), defendida na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign em 2022.


“É duro ser doméstica!” Brasil Urgente: Um jornal do povo a serviço da justiça social, 17 mar 1963, p. 21.

Qual o tema da tese e como surgiu a ideia de escrevê-la?


Minha tese, chamada Another Urban Grammar: Black Perspectives on Social Mobility in Twentieth Century São Paulo, foi defendida em abril de 2022 na Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign. Trata-se de uma história social da mobilidade social negra principalmente durante os anos da República Populista (1946-1964) e na primeira década da ditadura militar. Na tese, argumento que ao estudarmos os paulistanos negros através das linhas de classe, gênero e raça, vemos que eles conceberam a mobilidade social de formas que iam além do mero desejo de ascensão social. Em vez disso, seus esforços para melhorar suas posições socioeconômicas criaram contraconhecimentos e discursos que rejeitaram ou transformaram práticas e símbolos de mobilidade social comuns às classes médias e altas de São Paulo, ou forjaram novas estratégias. Os paulistanos negros – particularmente as mulheres – inovaram em críticas e intervenções nas áreas doméstica, do trabalho, da educação e do consumo de mídia. Eu proponho que essas áreas eram meios para que eles participassem de debates sobre desenvolvimento urbano, migração e coesão social durante a era da República Populista. Por meio disso, temos “outra gramática” a partir da qual ler a história urbana de São Paulo.


Sempre fui fascinada pelas estratégias criativas que os negros brasileiros adotaram para se definir além das hostilidades silenciosas e violentas do racismo cotidiano. Esses impulsos inicialmente me levaram aos Estudos Brasileiros (nos Estados Unidos), pois vi paralelos em minha experiência vivida no Kansas. Quanto à própria tese, houve duas fases de pesquisa de campo antes da escrita. Inicialmente, eu imaginei um estudo comparativo de clubes sociais negros para entender a vida urbana em Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Num segundo momento, fui influenciada por meu orientador Jerry Dávila e por outros mentores a considerar fortemente a questão metodológica das ausências das mulheres negras após 1930 e antes de 1985. Ruben Oliven e Nadya Araujo Guimarães também informaram momentos críticos do desenvolvimento inicial do projeto. Eles eram professores visitantes do Instituto Lemann de Estudos Brasileiros da Universidade de Illinois e me encorajaram a aprofundar nos temas das relações comunitárias e do trabalho doméstico, respectivamente. Eu conectei essas considerações à minha familiaridade com escritoras feministas da diáspora negra, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Todos esses relacionamentos e perguntas facilitaram o trabalho que fiz ao longo dos anos de pesquisa no Brasil.


Como você enxerga a contribuição da sua pesquisa para a historiografia?


A minha tese apresenta três contribuições centrais. Em primeiro lugar, as perspectivas de figuras cotidianas de diferentes posições de classe são tornadas visíveis e legíveis. A classe não reflete apenas o modo de produção econômico ou a divisão entre trabalhadores e proprietários: ela também é reproduzida social e culturalmente. A mobilidade social, como a concebo, foi um local de luta de classes para os negros paulistanos. Eu reconceitualizei a violência simbólica da discriminação racial no local de trabalho, as lutas por reconhecimento legal para engraxates e trabalhadores domésticos, ou a vinculação do trabalho de sobrevivência e empreendedorismo juntos como críticos para a história urbana e trabalhista brasileira do século XX. Capturar as experiências distintas de trabalhadores pobres, da classe trabalhadora e de trabalhadores negros profissionalizados amplia o foco das histórias e lutas trabalhistas, que tradicionalmente se concentraram em trabalhadores industriais.


Além disso, eu contribuo para o campo de estudos de gênero no Brasil. Eu torno visíveis e proeminentes as paulistanas negras ao longo de todo o século XX e distingo as experiências de trabalho, sociais e afetivas de mulheres negras das dos homens negros. Por estar interessada na questão das relações intracomunidade em relação à classe, pude enfatizar mulheres negras de diferentes origens. Ao examinar a presença, as vozes e as vidas de mulheres negras pobres da classe trabalhadora e profissionalizadas em diferentes fontes, eu trabalho além das leituras de excepcionalismo das mulheres negras e não as reduzo a frases curtas ou notas de rodapé que apenas mencionam sua existência.


Minha terceira contribuição é para o campo da história afro-brasileira de forma mais ampla e para o estudo da desigualdade racial. Eu vejo as ideias negras de mobilidade social como dinâmicas e em constante mudança ao longo do século XX. Portanto, as compreensões diferenciadas de capital econômico, social e cultural que eu apresento são fundamentadas nos contextos da Segunda República e da primeira década da ditadura militar. Ao tratar da mobilidade social negra principalmente dentro da Segunda República e seus desdobramentos, eu enfatizo que as percepções que os paulistanos negros tinham durante esse período foram informadas pelos novos bens culturais, gostos e hábitos introduzidos por meio de instituições emergentes e reformadoras (e sua instabilidade) durante o período. Eu também estou desafiando a moldura da escravidão e do pós-abolição como causa para todas as experiências negras que se estendem século XX adentro.


Como sua tese dialoga com a historiografia brasileira? Que obras e autores do Brasil te ajudaram a pensar o tema?


Eu sou muito grata pelos trabalhos de Florestan Fernandes, Maria de Lourdes Monaco Janotti, Clóvis Moura e João Baptista Borges Pereira, cujas pesquisas sobre a mobilidade social ou o status socioeconômico dos paulistanos negros foram fundamentais para examinar, situar e criticar meu próprio projeto.


Meu trabalho foi enriquecido pela vasta literatura sobre o associativismo negro e sobre o associativismo durante a Segunda República. Ao escrever a tese, eu dialoguei principalmente com a obra de Petrônio Domingues. Ele é o pesquisador que mais escreveu sobre a história negra de São Paulo. Domingues enfatiza a ampla gama de comportamentos associativistas na cidade e no estado de São Paulo, como trupes de comédia e teatro, salões de dança e bares, equipes esportivas e grupos de estudo. Ele afirma que a variedade de formas de associativismo permitiu que uma ampla seção transversal de paulistanos negros se conectasse, atravessando marcadores de classe, gênero e outras identidades. Falando sobre o contexto dos anos 1970, Clóvis Moura observa que as entidades das associações negras criaram “pontos de encontro” para os negros participarem em várias identidades de classe, gênero ou região. Assim, a história da organização negra em São Paulo não pode ser reduzida a uma separação simplista entre “político” e “cultural”. Não faz sentido não esclarecer o perfil de gênero ou classe dos participantes quando uma variedade de membros da comunidade negra participou de várias formas de associativismo, independentemente de se eles próprios o articularam dessa maneira. A natureza do associativismo negro em São Paulo facilitou minha busca por fontes primárias e consideração dos atores históricos.


Este projeto se beneficia da interdisciplinaridade social e cultural dos estudos sobre movimentos populares em São Paulo durante a Segunda República. As obras de Adriano Luiz Duarte, Paulo Fontes, Maria Aparecida de Oliveira Lopes, Edilza Sotero e Oswaldo Truzzi informaram minha forma de pensar e minhas abordagens metodológicas. Estas pesquisas estão mais alinhadas com a virada narrativa, por meio da análise da produção cultural negra em música e literatura, para explorar as experiências negras de urbanização, industrialização e instabilidade econômica. Fui especialmente inspirada pelo trabalho de Mário Augusto Medeiros da Silva sobre literatura periférica e marginalizada em relação aos diários de Carolina Maria de Jesus e sua recepção e impacto em escritores envolvidos no associativismo negro. Marcos Virgílio da Silva, em sua pesquisa sobre urbanização e periferização, considera artistas de samba negros e não negros e suas percepções sobre a mudança urbana por meio de suas músicas. Moldando a Segunda República por meio da percepção cotidiana, ambos os estudiosos empreendem a produção de conhecimento negro por meio da classe trabalhadora e dos pobres trabalhadores.


Quais foram as principais fontes utilizadas em sua pesquisa e como você chegou até elas?


Eu utilizo três tipo de fontes primárias: periódicos e entrevistas digitalizadas; coleções de transcrições de História Oral arquivadas; e bases arquivísticas de entidades de associativismo negro ou adjacentes à população negra. Além das coleções microfilmadas e digitalizadas da imprensa negra, a pesquisa sobre associativismo negro depende de fontes visuais e textuais que documentam feriados, festivais, figuras históricas e eventos comemorativos, como o 28 de setembro e o 13 de maio, que marcam, respectivamente, Lei do Ventre Livre de 1871 e a abolição da escravidão em 1888. Eu baseio-me na prática de Maria Aparecida de Oliveira Lopes de utilizar a cobertura da imprensa de eventos comemorativos e símbolos culturais locais particulares do associativismo paulistano negro para dialogar com as representações de mobilidade ascendente e descendente dos negros em São Paulo. A priorização dessas datas ou feriados permitiu-me desenvolver minha estratégia central para identificar, acessar e interpretar uma série de clubes, personalidades e eventos negros específicos de São Paulo sob a Segunda República. Os eventos culturais, que foram mencionados ou tiveram cobertura de jornais e revistas, fornecem uma maneira para examinar as representações de mobilidade ascendente e descendente em seus contextos locais.


Meu foco em eventos racistas como “termos-chave” para pesquisa em arquivos de fontes primárias de paulistanos negros me permitiu localizar histórias orais e entrevistas. Tais fontes foram um meio de acessar as experiências negras nos setores de trabalho, educação, mídia e habitação. Elas foram especialmente importantes porque me permitiram centralizar mulheres negras na narrativa. Reutilizei entrevistas clássicas conduzidas por Florestan Fernandes e Roger Bastide, além daquelas dirigidas por Maria de Lourdes Monaco Janotti no projeto Memória da Escravidão em Famílias Negras em São Paulo e de entrevistas individuais do Museu da Pessoa. Também pude conduzir várias entrevistas por conta própria.


Por último, consultei as coleções de arquivos pertencentes a entidades de associativismo negro ou aquelas adjacentes a elas. Estas incluem as coleções arquivísticas da Associação Cultural do Negro (ACN) na Universidade Federal de São Carlos, os arquivos da polícia secreta sobre clubes negros e movimentos sociais no Arquivo Público do Estado de São Paulo e outros documentos publicados, como as memórias do escritor da imprensa negra José Correia Leite, intituladas ...E disse o velho militante, e A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes. Eu também trabalhei com a coleção de entrevistas Memória dos Paulistanos Negros no Museu da Cidade de São Paulo e com os materiais de Virgínia Leone Bicudo, da Sociedade de Psicanálise de São Paulo.


Qual a história mais interessante que você se deparou ao longo da pesquisa ou a que mais te surpreendeu?


Uma vez, pedi à arquivista de um jornal que procurasse recortes mostrando mulheres negras trabalhando: trabalho manual, trabalho de colarinho branco, qualquer coisa. Ela me disse que seria impossível encontrar isso a menos que eu voltasse ao período de escravidão e pós-emancipação (ou seja, antes de 1930) ou ao período contemporâneo (pós-1985). Fiquei chateada e determinada a provar que ela estava errada. Mais tarde, encontrei a tese de doutorado de Mariza Romero, onde ela discute a cobertura extensa feita pelo Diário da Noite de grupos estigmatizados em meio à crescente agitação urbana em São Paulo. Romero, assim como Janaína Damaceno Gomes em sua tese sobre Virgínia Leone Bicudo, demonstra que as empregadas domésticas negras eram personagens rotineiras de jornais e revistas. Eram frequentemente retratadas como mulheres desrespeitosas, ingratas ou desconfiadas com seus empregadores.


Eu não acredito que a arquivista estava sendo maliciosa. Eu acredito que ela possa ter operado a partir do ponto de vista de que o trabalho das mulheres negras deveria refletir as ocupações então prevalentes entre as mulheres brancas da classe média nos anos 1950, 1960 e 1970: serviços de transcrição e secretariado, administração pública, cuidados de saúde ou educação. No entanto, as mulheres negras constituíam entre um terço e metade da força de trabalho do país em meados do século XX. Elas não eram uma parte significativa dos empregos cobiçados ocupados pelas mulheres brancas.


No entanto, houve fases de organização de trabalhadoras domésticas ao longo do século XX. Sua luta para se sindicalizar e reivindicar mudanças legais em seu status gerou uma reação consistente em jornais e revistas. Em minha pesquisa de mídia impressa, descobri que, sempre que as trabalhadoras domésticas tentavam reformar a legislação local ou estadual para mudar seu status de “não-trabalhadoras”, jornais e revistas apresentavam artigos de opinião ou reportagens sobre donas de casa brancas de classe alta ou chefes de polícia condenando as tentativas como inaceitáveis. Eles contestavam a afirmação das associações de trabalhadoras domésticas de que seu trabalho dentro de casas exigia jurisdição legal. Para mim, isso é claramente uma luta trabalhista entre empregador e empregado disputando o papel da lei em desempoderar ou empoderar as trabalhadoras domésticas, respectivamente. Mas se um arquivista dá por certo que as trabalhadoras domésticas eram “não-trabalhadoras”, as disputas na mídia contemporânea e a prevalência de trabalhadoras domésticas sendo retratadas como versões modernas do trabalho de mulheres escravizadas também facilitam a noção de que os negros estavam “fora do lugar” da maior trajetória da história brasileira, onde a luta trabalhista, hierarquias de classe e raça estão entrelaçadas e constantes. Meu trabalho leva a sério que uma ausência ou um silêncio histórico é construído e que, através de nossos melhores esforços e criatividade, às vezes pode ser representado em sua verdadeira vibração e complexidade.


Que perguntas o seu trabalho deixa em aberto? Que novos caminhos você espera que sejam explorados em pesquisas futuras sobre o tema


Enquanto eu faço a transição para transformar a minha tese em um projeto de livro, há várias subáreas que deixei em aberto. Eu pretendo historizar a questão da mobilidade social no século XXI através de perspectivas intergeracionais. Isso levará a me aventurar mais profundamente no campo das histórias orais e entrevistas.


Carolina Maria de Jesus está, em grande parte, ausente neste estudo. Porém, nas etapas posteriores da escrita, eu me interesse pela nova edição de seu segundo diário, Casa de alvenaria, originalmente publicado em 1961. Estou interessada em reavaliar os diários de Jesus como fontes primárias para entender a mobilidade social e os desenvolvimentos urbanos como sistemas de discurso, ideologia e estética. Também estou ansiosa para expandir meu envolvimento com mídias populares, como cinema, música e gravuras do final do século XX ao início do século XXI.


As questões da migração nordestina e da mobilidade social negra ficaram ambíguas e subestimadas em minha tese. Em minhas fontes arquivísticas – especialmente nas fontes das associações negras –, a presença e a discussão dos nordestinos era uma grande lacuna. Em um estudo de 1968 que encontrei enquanto pesquisava o perfil demográfico da Associação Cultural do Negro, a maioria dos membros era da cidade ou do estado de São Paulo. De mais de duzentos associados, apenas um nasceu fora de São Paulo, em Minas Gerais. Contudo, a migração nordestina é uma característica marcante da São Paulo nos anos 1950 e 1960: de 1950 a 1970, enquanto a população da cidade triplicava, a população nordestina multiplicava por dez. De 1950 a 1960, São Paulo recebeu um milhão de migrantes, a grande maioria proveniente da região Nordeste. Uma parte significativa dessas chegadas foi categorizada como “pardos ou pretos” e povoava áreas afetadas pela periferização. Espero desconstruir esse silêncio também.


 

Esta entrevista ocorreu por escrito e foi traduzida e editada antes da publicação.

Contate a coluna em brasilporbrazil@gmail.com

Lucas Koutsoukos-Chalhoub

Luiz Paulo Ferraz

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