Entrevista com o historiador Lucas Porto
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Entrevista com o historiador Lucas Porto

Atualizado: 15 de out. de 2020

 

Entrevista com o historiador Lucas Porto, autor do livro Estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980  , publicação resultante de sua dissertação de mestrado defendida em 2013, na Universidade Federal da Bahia.

Lucas Porto

O historiador Lucas Porto (Imagem: acervo do autor)


HD – Como você chegou a esse tema e por que estudar a fundo o assalto a banco praticado pelo PCBR em meados da década de 1980?

Lucas Porto: Eu tive contato com o tema antes de entrar na faculdade, e levou um tempo até se tornar um objeto de pesquisa. Eu fui aluno de um dos envolvidos no assalto e ouvi dele algo sobre isso, aí, já cursando a graduação em História, voltei para entrevistá-lo. Minha vontade era estudar a ditadura e a luta armada em Salvador, mas ainda de maneira muito intuitiva. Eu tinha lido memórias como as de Sirkis, Flávio Tavares, Carlos Eugenio Paz e gostava do tema. Também me inspirava pelas Galerias F de Emiliano José, que associam memórias com pesquisa.[1] Por isso eu não dei bola para o assalto de 1986. Ele estava, digamos assim, fora do recorte que me interessava.

Lendo a dissertação Ousar lutar, ousar vencer eu descobri que alguém já tinha feito, de maneira melhor, o que eu queria.[2] As trajetórias acadêmicas sempre têm pequenas ou grandes desilusões, não é verdade? E para seguir adiante foi preciso superar isso e encontrar aquilo que abastece nosso ofício: novas fontes. Eu não teria uma pesquisa significativa se insistisse numa pesquisa pautada basicamente na imprensa e em memórias de militantes, sabe? Nisso fui muito bem orientado desde o começo por Antônio Luigi Negro. E na Bahia as fontes da polícia política do período da ditadura são poucas se comparadas com outros estados, por isso fui em busca do processo de 1986, ele me pareceu mais acessível. Acabei encontrando ele ainda no fórum de Salvador, era um processo enorme, uma fonte riquíssima, que se tornou um excelente diferencial da pesquisa. Portanto, foram as fontes que permitiram meu mergulho no assalto de 1986.

HD – Existem traços de continuidade entre o PCBR fundado em 1968 por Mário Alves, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho e o partido que continuava atuante na década de 1980?

Lucas Porto: Isso! O PCBR foi fundado em 1968 e logo em 1970, quando essa primeira direção a que você se refere foi assassinada ou presa, houve quem questionasse o quanto seu novo comando representava alguma continuidade em relação ao anterior, acredita? Tenho a impressão que Gorender, descontente com o militarismo defendido pelos novos dirigentes, foi um desses críticos imediatos. Adiante, Apolônio, se não me engano dono da ficha número um do PT, também não se reaproximou do PCBR tendência. Então repare que é sempre controverso definir continuidades e rupturas quando tratamos de partidos e organizações de esquerda, porque isso sempre envolve disputas por legitimação de posições nas querelas político-partidárias e também nas memórias: quem sai, nega a continuidade; quem fica, pode afirmá-la ou negá-la também, em nome de alguma pretextada renovação.

Por isso, muitas vezes as fontes plantam cascas de banana para o pesquisador. Em minha pesquisa, eu encontrei várias referências à uma alegada continuidade do PCBR. Ocorre que no mais das vezes isso era uma forma de condenar veementemente o assalto, de mostrar como a organização estava fora de sintonia com uma linha majoritária que ia se definindo no PT. Um argumento mais condenatório que explicativo. Isso respingou um pouco na historiografia, que costuma colocar o assalto de 1986 como continuidade da experiência armada anterior. O que eu relativizo.

Quando o PCBR se reagrupou como tendência no PT, ele com certeza experimentava um novo momento de sua história. Mas também é verdade que o BR não conseguia aceitar a ideia de um partido de massas funcionando sem um partido de quadros, cuja existência seria simultânea até a superação do primeiro pelo segundo. Esse é decerto o traço mais consistente de continuidade na sua história. Mas, me pautando no contato que eu tive com as fontes de minha pesquisa, eu te diria que não havia a continuidade de um projeto de luta armada revolucionária ou de derrubada do regime pela força. Quando as organizações da esquerda armada davam seu último suspiro no começo dos 1970, as expropriações tinham mesmo uma função material e objetiva. Mas a intenção desses grupos ainda era, pelo menos no campo das ideias, derrubar a ditatura com projeções de uma revolução socialista. Nos anos 1980, os assaltos do PCBR não serviam como propaganda armada nem como via de derrubada do regime. O que estava em jogo para o PCBR era sua subsistência no PT e nos movimentos sociais. Os militantes envolvidos nos assaltos da Bahia se inspiravam por um militarismo bem pragmático, que destoa da luta armada das décadas anteriores. Esse é meu argumento central no livro. A diferença é tênue e, claro, desperta controvérsias. O militante que me apresentou ao tema diverge de mim, por exemplo. E eu fiz questão que no livro constasse uma semente dessa divergência. Tá lá nas primeiras páginas, junto com outras opiniões de quem tomou parte no assalto. Por isso o debate também continua.

Partido dos Trabalhadores

Folha da Tarde, 2/5/1986


HD – Quais as principais fontes que você utilizou para realizar a pesquisa?

Lucas Porto: Como disse, a principal delas foi o processo crime que correu nas Justiças Militar e Estadual. Ele possui umas três mil páginas, com relatórios de diligências policiais em pelo menos quatro estados brasileiros, correspondências e manuscritos dos presos, arguição de setenta testemunhas, acareações entre os militantes, depoimentos deles para policiais civis e federais, juízes diversos, enfim… Muita coisa! Além disso, eu pude entrevistar quatro dos envolvidos diretamente nos assaltos do PCBR e dois familiares de um outro que já faleceu, Antônio Prestes de Paula – um personagem que considero interessantíssimo e que merece uma pesquisa à parte. Jornais da grande imprensa e periódicos do PT também foram acessados. Basicamente isso.

HD – Você analisa um período da história brasileira em que já se vivia o processo de transição democrática. Um contexto bastante distinto daquele em que os grupos armados atuaram entre os últimos anos da década de 1960 e o início da década de 1970. No seu livro, fica bastante claro que tanto para o Estado brasileiro quanto para os militantes do PCBR não é muito simples atribuir uma finalidade política às ações armadas praticadas nos anos 1980. Após essa pesquisa, na sua percepção, como os atores da época avaliavam o equacionamento entre propósitos financeiros e propósitos políticos?

Lucas Porto: Sim, sem dúvida nos anos 1980 vemos inúmeros avanços democratizantes em relação às décadas anteriores. Mas também vemos contradições dessa redemocratização, cujos efeitos talvez cheguem aos dias de hoje. Por isso, refletir sobre o caráter do assalto é mais do que tentar responder se ele foi político ou não. É sobretudo tentar entender como essa classificação, feita pelos próprios militantes, pelos relatórios de polícia, por petistas ou mesmo leitores de jornais, revela os valores de diversos segmentos sociais no período.

Os militantes que eu entrevistei nunca demonstraram dúvidas quanto ao caráter ideológico de sua iniciativa e, como mostra a pesquisa, eles não pareciam arrependidos até a prisão em 1986. Era algo ideologicamente presunçoso por desconsiderar o que a maior parte dos setores sociais que eles pretendiam representar – as classes trabalhadoras – pensavam sobre isso, mas era uma medida extrema, adotada por uma organização sem muita inserção social. Os recursos dos assaltos deveriam suplementar o PCBR para suas disputas dentro do PT a fim de ampliar o alcance de sua pregação. Tanto o PT quanto o PCBR reconheciam que recursos financeiros eram imprescindíveis para sua política, seja em microescala, nos bairros e fábricas, seja no plano ampliado das grandes disputas eleitorais, mas o PT estava se distanciando diametralmente daquilo que o PCBR pregava. Além disso, as possibilidades de obtenção de recursos financeiros são reflexo da capilaridade social dessas organizações e o PCBR quedava sem muitas entradas. É o que te falei sobre um militarismo bastante pragmático do PCBR.

HD – Você mostra que havia ligações entre o PCBR e o PT, partido que acabara de ser fundado. O envolvimento de membros do PCBR com ações armadas chegou a causar riscos efetivos para a estabilidade do PT, além do constrangimento público?

Lucas Porto – Hoje, com olhos retrospectivos da pesquisa histórica, eu te respondo facilmente que não. Os efeitos do assalto ficaram circunscritos à dinâmica interna do PT e à relação com suas tendências. Acredito que o assalto sequer tenha afetado o desempenho do partido nas eleições próximas, porque o PT ainda não tinha todo esse potencial eleitoral. Mas na época o medo de efeitos devastadores sobre o partido foi uma preocupação bastante plausível entre petistas. Um parlamentar do PTB anunciou que pediria a cassação de seu registro no TSE, por exemplo. Além disso, já no governo Sarney, Vicentinho, que presidia a CUT, havia sido condenado com base na Lei de Segurança Nacional por falar mal do general-presidente Figueiredo. Vicentinho tinha dito que Figueiredo roubava os trabalhadores, ou algo assim, e foi processado e condenado, imagina!? Quer dizer, o risco de o PT ser submetido aos rigores de uma legislação ainda com ranços da ditadura era grande, afinal o assalto mobilizou a LSN contra os militantes envolvidos. Mas no fim das contas o susto foi maior que os prejuízos. O que eu atribuiria a envergadura social do PT à época, que não era o PT de 1989 nem dos anos 2000.

PCBR

Antes de uma audiência, os cinco dos presos posaram para fotografia junto com familiares e o advogado do grupo em frente ao prédio da Justiça Militar. Da direita para esquerda aparecem: Jari José, de perfil; José Wellington ao lado de sua esposa à época; mais ao fundo, o professor Renato Affonso, de camisa azul; Marcos Reale, com barba e atrás do advogado Fernando Santana, que veste terno; por último, à esquerda, Cícero Araújo. (Foto do acervo pessoal de Teresa Notari, viúva de Antonio Prestes de Paula, s/d)


HD – Você agora está estudando o comunismo e os movimentos sociais no Brasil entre 1945 e 1964. Levando em consideração as conclusões a que você chegou na pesquisa que resultou no seu livro, como você avalia a ação do Estado com relação a esses movimentos no período de 1945 a 1964 e no período da transição democrática após a ditadura militar?

Lucas Porto: É insustentável caracterizar o período que vai do pós-Estado Novo até o Golpe de 1964 como “intervalo democrático”, como já foi feito e hoje está superado pela historiografia mais atual. Por isso, analisar a redemocratização do pós-1945 e do pós-1985 em perspectiva comparada é desafiador: porque nos alerta para os limites democráticos de hoje. Nos dois períodos a democracia caminhou a trancos e barrancos: assistiu a golpes diversos, como a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek, o que derrubou João Goulart e o mais recente, contra presidenta Dilma Rousseff; experimentou malabarismos constitucionais, como o que impôs o parlamentarismo a Jango e a emenda para reeleição de FHC; esteve à mercê de autoproclamados salvadores da pátria, como Jânio Quadros, Collor e agora o medíocre Bolsonaro. Ou seja, o intervalo de 1945 a 1964 lança para os dias de hoje muitos exemplos que alertam para riscos que ameaçam a democracia e alguns deles já começam a apresentar danos imediatos, como o ataque à legislação trabalhista. O trabalho dos historiadores tem uma função social, por isso precisamos refletir sobre o passado com vistas na ampliação das raias democráticas do país, sobretudo na conjuntura de hoje. Entre o golpismo nefasto e a revolução pescada em manuais, estão os trabalhadores, que a seu modo lutam por melhores condições de vida, almejando objetivos diversos e das maneiras mais variadas, coletivamente ou sozinhos, com mais ou menos respaldo do Estado. Nem sempre ganhando, muitas vezes perdendo, mas sempre tentando aprender a jogar num tabuleiro de regras instáveis.

 

Notas:

[1] Referência aos cinco volumes do livro Galeria F: lembranças de um mar cinzento, de Emiliano José, publicados pela Editora Casa Amarela.

[2] Mais adiante a dissertação foi publicada em livro: Sandra da Silva Souza. Ousar lutar, ousar vencer: histórias da luta armada em salvador (1969-1971). Salvador: EDUFBA, 2013.

 

Como citar esta entrevista:

TORRES, Lucas Porto Marchesini. Entrevista com o historiador Lucas Porto. In: História da Ditadura: novas perspectivas. Disponível em: https://historiadaditadura.com.br/destaque/entrevista-com-o-historiador-lucas-porto/. Publicado em: 13 Mar 2018. Acesso: [informar data].

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