Eric Zemmour e a corrupção cognitiva do debate público (ou arte do parler faux)
Atualizado: 8 de out. de 2021
Há poucos meses da eleição presidencial francesa, um nome emergiu à direita de Marine Le Pen embaralhando o tabuleiro político: Eric Zemmour. Fenômeno da “rentrée” – início de setembro, momento que marca o fim das longas férias de verão e o início do ano letivo –, tudo indica que o jornalista, escritor e polemista francês será candidato à eleição presidencial. Bastante conhecido para quem acompanha a “actualité” francesa, a fama de Zemmour deve em breve ultrapassar as fronteiras do “Hexágono”.
Formado pela prestigiosa Science Po – mas reprovado na também prestigiosa École Nationale d’Administration, a ENA –, Zemmour seguiu uma carreira de jornalista trabalhando inicialmente no Quotidien de Paris, de 1986 a 1994; integrou em seguida o Figaro de 1996 a 2009 e novamente a partir de 2013; finalmente, assinou uma crônica no Figaro Magazine de 2020 a 2021. Também é presença constantes em diversos programas de rádio. Entretanto, foi sua participação regular em programas de televisão que o transformou num dos jornalistas mais polêmicos dos últimos anos por defender abertamente posições xenófobas, racistas, misóginas, anti-imigração, além de incitar o ódio contra os muçulmanos. Foi o caso da sua participação em Ça se dispute e, sobretudo, em On n’est pas couché. Este último era comandado pelo popular e carismático apresentador Laurent Ruquier (assumidamente gay e com posições à esquerda, hoje arrependido de ter dado tanto espaço ao polemista), e no qual Zemmour, junto com outro comentador, Eric Naulleau, passava algumas horas da noite do sábado comentando e entrevistando políticos, escritores, atores e diretores de teatro e cinema. Os posicionamentos públicos de Zemmour lhe renderam vários processos por “incitação ao ódio religioso” e “injúria racial” (com uma condenação definitiva em 2011). Mais recentemente, era a vedete do canal CNews, com presença diária no programa “Face à l’info”.
Mas não é apenas em programas de televisão ou nas suas crônicas e editoriais que Zemmour expõe suas ideias. Ao longo dos anos, ele publicou vários livros que se tornaram fenômenos de venda: Le Premier sexe [O primeiro sexo], em 2006, em que deplora a “desvirilização” da sociedade e suas consequências econômicas e sociais; o romance Petit frère [Irmãozinho], em 2008, cuja intriga é o assassinato de um judeu por seu amigo árabe e a investigação desse crime por um jornalista de esquerda que descobre progressivamente o que o Zemmour considera o fracasso da integração francesa e a chamada “comunitarização” [communautarisation]; Mélancolie française [Melancolia francesa], em 2010, onde a França é colocada como herdeira do Império Romano, em particular em termos de assimilação. Ele faz então um paralelo entre o fracasso da “assimilação” na França contemporânea e a assimilação dos “Bárbaros” na Roma antiga que teria levado à queda do Império. Le Suicide Français [O suicídio francês], de 2014, uma denúncia do enfraquecimento do Estado-nação francês na esteira de Maio de 1968, quando, segundo ele, as elites políticas abriram mão do controle sobre a economia e a imigração; Destin français [Destino francês], de 2018, uma reflexão sobre a história francesa em que reabilita alguns personagens que haviam caído em desgraça na memória coletiva, entre eles o Marechal Pétain; enfim, livro-programa recém-publicado, La France n’a pas dit son dernier mot [A França não disse sua última palavra].
A visão de mundo de Zemmour pode ser sintetizada como segue. A França e sua civilização estão em declínio avançado e em risco de extinção. Como ele comentou numa entrevista recentemente, se nada for feito, em cinquenta anos os muçulmanos serão maioria na França e em cem anos o país será uma “república islâmica”. As causas desse declínio são diversas, mas duas delas são predominantes na retórica de Zemmour. Em primeiro lugar, o que ele chama de “feminização” da sociedade, que teria ocorrido na esteira da revolução cultural dos anos 1960. Maio de 1968 aparece assim como uma espécie de evento-fundador da decadência. Podemos ler, em Le Premier sexe, a lamentação com a perda de virilidade da sociedade: “A ‘feminização’ da nossa vida política atual, de seus políticos e sobretudo de seus valores, em nome de um progressismo democrático, é uma outra maneira de desmascarar o refluxo dos princípios que fundam a República há mais de dois séculos. A Revolução viril, austera, puritana, cai com Robespierre. Com o Diretório começa um novo período em que as mulheres retomam um lugar preponderante. Na sociedade das inacreditáveis e maravilhosas [referência à Europa do Norte], a liberdade das mulheres surpreende toda a Europa: elas passam facilmente de um amante a outro; elas se casam e se divorciam com a mesma velocidade; as taxas de divórcio (que acaba com um a cada três casamentos) são quase similares às nossa; as famílias estão separadas, a educação das crianças deixa a desejar (Le Premier sexe, p. 136-137). Ou então quando ele afirma que “o poder é o mal, a morte, o falo, o homem. Ninguém mais, nas jovens gerações dos nossos países, quer assumir essa responsabilidade. Vontade do homem branco de sair da história, como espectador aterrorizado da sua própria história, grandiosa e sangrenta. Vontade de escapar também à tirania da Razão que ilumina, para o melhor e para o pior, a história do Ocidente. A feminização dos homens e das sociedades é vivida como uma alternativa feliz, a busca de uma era de ouro, a parúsia universal. O sonho feminista substituiu o sonho comunista. Sabemos como esses sonhos acabam” (Le Premier sexe, p. 197-198).
É forçoso constatar, contudo, que a denúncia da “feminização” e do divórcio perdeu gradativamente o lugar que ocupava no discurso de Zemmour, que passou a ressaltar ao longo dos últimos anos o que ele considera os problemas ligados ao islã e à imigração. Os exemplos de suas falas, muitas delas chocantes, abundam diariamente. A título de exemplo, podemos reportar seu discurso na Convention de la Droite em 2019, evento organizado por pessoas próximas à extremista Marion Maréchal Le Pen, neta de Jean-Marie Le Pen e sobrinha de Marine Le Pen. Convidado como orador, Zemmour declarou: “Na França, como em toda a Europa, todos os nossos problemas são agravados pela imigração, escola, habitação, desemprego, déficits sociais, ordem pública, prisões [...] e todos os nossos problemas agravados pela imigração são agravados pelo Islã. É um duplo castigo”. Citando Renaud Camus, teórico da “grande substituição” [grand remplacement], ideia esdrúxula segundo a qual a população branca cristã estaria sendo substituída por uma população de imigrantes muçulmanos, ele afirmou: “A questão que nos é colocada é a seguinte: os jovens franceses vão aceitar viver como uma minoria na terra dos seus ancestrais? [...] Nossos progressistas tão brilhantes [...] nos levaram à guerra das raças e das religiões”. A França estaria, ainda segundo ele, vivendo uma “guerra de exterminação do homem branco heterossexual”. Essas temáticas permeiam também os ensaios de maior fôlego do polemista.
Durante algum tempo trocou-se acusações nos meios políticos, midiáticos e intelectuais a respeito de quem seria a “culpa” da aceitação crescente de ideias e valores ultrarreacionários na sociedade francesa que teria beneficiado tanto o Front National – atual Rassemblement National (RN) – quanto, agora, Zemmour – que conta com 10% das intenções de voto segundo as últimas pesquisas de opinião. Jean-Luc Mélénchon, candidato da France Insoumise, foi um dos que bateu particularmente nessa tecla: “Eu sou contra a lógica do choque de civilizações e me preocupo em ver [...] cotidianamente, todos os dias, por horas e horas, informações dramáticas, que fazem medo, parece até que a França é um país antissemita entupido de islamistas radicais, prontos a degolar todo mundo num canto de um bosque”.
A busca de um culpado, contudo, é de pouca utilidade. Importa mais refletir sobre os efeitos de curto e longo prazo da ascensão de um personagem como Zemmour na política partidária e no debate político. No curto prazo, é possível que o polemista ocupe o vácuo deixado à direita da direita pelo processo de “desdiabolização” do RN. Num contexto em que os dois principais campos políticos da Va República – o PS à esquerda e Les Républicains à direita – ainda se encontram enfraquecidos desde o fim dos governos Sarkozy (2012) e François Hollande (2017), não seria ilógico prever que Zemmour dividiria o eleitorado de Marine Le Pen – numa reprise, do lado da extrema-direita, do que aconteceu com a esquerda em 2002 quando três candidaturas tiraram o socialista e favorito Lionel Jospin do segundo turno. No longo prazo, a banalização da retórica, dos valores e da linguagem da extrema-direita no debate público francês é alarmante. Um ponto me parece relevante para entender o sucesso do polemista francês: a sua capacidade de perverter – e no limite falsificar – a história e particularmente o gaullismo do qual ele reivindica ser um autêntico representante.
Zemmour é um mestre do que Pierre Rosanvallon chamou de parler faux, noção que se contrapõe ao parler vrai, este último uma atribuição essencial do bom governante. O parler faux é destruidor da vida democrática. Vale a citação do teórico político francês: “A linguagem não tem apenas uma função de sedução ou de dissimulação, ela cria um mundo fictício e caricatural que coloca fora da lei e bane toda a possibilidade de uma interrogação sobre a condução das coisas públicas (Le Bon Gouvernement, 2015, p. 334). É inegável o talento de Zemmour nos debates televisivos e nas aproximações semânticas, o que o permite disseminar no debate público o discurso xenófobo, racista e misógino como sendo um discurso autenticamente gaullista. Nesse sentido, há uma inversão com relação ao deslocamento operado por Marine Le Pen: se a presidente do RN saiu da extrema-direita e se engajou na via da “desdiabolização”, chegando a citar Charles de Gaulle e Jean Jaurès em seus discursos recentes, Zemmour não hesita em defender posições próximas de Jean-Marie Le Pen, colocando-se como verdadeiro herdeiro de Charles de Gaulle. Isso faz com que ele possa dar declarações racistas e xenófobas – especialmente sobre o Islã e os muçulmanos – que nem Marine Le Pen poderia dar por causa do passado fascista e antissemita do seu partido.
Sabemos que uma das principais ameaças para as democracias é o processo de corrupção cognitiva em curso que destrói qualquer possibilidade de deliberação. Assim, o combate contra o parler faux deve ser travado em múltiplas frentes: luta contra a mentira pura e simples, contra as manipulações e falsificações históricas, contra as aproximações semânticas, contra o monólogo dos detentores do poder. A questão que deve nos interpelar diz respeito à dificuldade de se contrapor à Zemmour – ou aos seus congêneres mundo afora. Políticos, intelectuais e jornalistas desmontam permanentemente as fabulações zemmouristas, sem encontrar, entretanto, o mesmo sucesso do polemista.
O esforço mais significativo até agora foi feito pelo excelente historiador Gérard Noiriel, especialista da imigração e da história social do século XX, que em 2019 consagrou um livro inteiro a Zemmour: Le venin dans la plume. Édouard Drumont, Eric Zemmour et la part sombre de la République (Paris, La Découverte, 2019). Nesse livro, Noiriel compara as trajetórias, temas, retórica e estratégia midiática de Zemmour e Édouard Drumont, célebre antissemita e autor de um famoso libelo publicado no final do século XIX intitulado La France juive. Eles legitimam, para Noiriel, uma “delinquência do pensamento”. Pouco importa se seus livros são repletos de erros e deformações, eles são recebidos como verdadeiros e vendidos a dezenas de milhares de exemplares. Assim, se por um lado não responder a Zemmour permite que ele difunda suas mentiras e deformações sem contradição, por outro lado, responder-lhe é visto como uma tentativa da “classe” dos historiadores de tentar calá-lo, censurá-lo, o que prova que ele teria razão. Como escreve Noiriel, “a questão de saber se Zemmour fala a verdade ou mente desaparece em proveito de um argumento moral que visa, uma vez mais, a fazer acreditar que Zemmour seria a vítima do ‘desprezo de classe’. Esse tipo de anti-intelectualismo tem, claro, todas as chances de satisfazer as pessoas que odeiam aqueles que detém um saber que elas não têm [...] Diante do historiador que respeita as regras do seu métier, o polemista tem sempre a última palavra. Se ele [o historiador profissional] se recusa a debater com Zemmour, os jornalistas lhe reprovam o fato de não responder aos seus argumentos. Se o historiador aceita o debate, ele é acusado de se conduzir como um “professor” e de inferiorizar o seu interlocutor” (Gérard Noiriel, Le Venin dans la plume, p. 363-364).
Em que pese o frenesi em torno de Zemmour, muita coisa pode acontecer até as eleições presidenciais de abril de 2022, inclusive ele não se candidatar. Outros nomes, no passado, fizeram uma boa largada antes que suas candidaturas esmorecessem no meio do caminho. Foi o caso de Jean-Pierre Chevènement em 2002 – que chegou a 14% das intenções de votos e acabou com pouco mais de 5% dos votos válidos – ou de François Bayrou em 2007 – que obteve mais de 18% dos votos. Independentemente do desfecho, o que deve continuar a nos interpelar é a atração que personagens como Zemmour exercem. Nesse sentido, explicação talvez se encontre mais na explosão das desigualdades e no crescente sentimento de invisibilidade e de insegurança de grande parte da sociedade com relação ao futuro do que na suposta adesão generalizada a uma retórica reacionária.
Créditos da imagem destacada: Éric Zemmour sur une plage de Dunkerque (Nord), à la rencontre d'opposants à un projet d’éoliennes. 18 jun. 2021. Wikimedia Commons.
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