Sobre encontros, descompassos e memórias radicais
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  • Foto do escritorNashla Dahás

Sobre encontros, descompassos e memórias radicais

Atualizado: 9 de mar. de 2022

 

“O socialismo parecia estar logo ali, na esquina”. A frase que vem sendo repetida a proposito do filme El Pepe, Uma vida suprema (2018), do diretor e músico sérvio Emir Kusturica, é o registro oral de uma história ainda pouco contada das expectativas revolucionárias na América Latina. Ao que nos parece, revolução foi o nome utilizado nos anos de 1960 e 70 para amparar os desejos mais radicais de transformação social pela via política, incluindo termos característicos da época como, por exemplo, “formação de um partido de vanguarda”, “tomada do poder do Estado”, “guerra de guerrilhas” e “luta de classes”, entre outras expressões formadoras de extenso vocabulário e sensibilidade que talvez se possa chamar de uma “estrutura de sentimentos compartilhada” (Williams, 2011).

Cada tempo e cada grupo dão ao seu desejo inconformista o nome ou o aspecto que lhes é possível dentro de circunstâncias sempre consideradas violentas, violadoras. Categorias de interpretação da realidade como gênero (Butler, 2003) e colonialidade (Quijano, 2005) nasceram dessa longa luta histórica pelo direito à insubordinação. Temporais em suas especificidades, agonísticos em suas diferenças e comuns em algumas de suas bandeiras, os fenômenos radicais são aqueles que perdem inúmeras batalhas antes de se tornarem algo vitoriosos. Deixam um rastro de memórias camaleônicas, testemunhos da plasticidade da violência vivida em sociedade e da revolta que constitui os sentidos da liberdade.

No espaço desta coluna, pretendo contemplar, compartilhar, analisar, difundir, entender, e/ou sentir as lembranças de quem já viveu a iminência revolucionária em diferentes países da América Latina. Compreender ou ouvir as experiências de quem tem uma memória radical para nos contar. Pequenos ensaios, resenhas, entrevistas, imagens, documentos arquivísticos, museográficos e/ou audiovisuais comporão os vestígios de passados recentes mais ou menos delimitados entre os anos de 1950 e 80, quando as “Repúblicas Unidas Socialistas da América Latina” foram imaginadas por sujeitos(as) como Pepe Mujica, à época, integrante do Movimiento de Liberacion Nacional – TUPAMAROS (MLN-T) do Uruguai, cuja citação abre este texto.

No Brasil, são conhecidas as pesquisas que discutem a construção de uma memória militar da ditadura, assim como diversos(as) historiadores(as) vêm se dedicando a memórias militantes e parte de suas lutas pelo direito à verdade e à justiça. As versões militares para o período histórico podem ser encontradas em trabalhos como os realizados por Maria Celina D’Araújo em A volta aos quartéis. A memória militar sobre a abertura (1995), entre outros organizados pela autora em parceria com Celso Castro e Glaucio Ary Soares. Carla Luciana Souza da Silva também vem mostrando o privilégio da narrativa militar na grande imprensa configurando, assim, uma memória promotora de suaves rupturas com o passado (Silva, 2013).

De outra parte, são também acessíveis obras históricas e/ou memorialísticas a respeito dos movimentos sociais, incluindo militantes de diversas organizações e familiares de presos e desaparecidos políticos, como A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares (2003), de João Roberto Martins Filho, e Memórias dos cárceres da ditadura: testemunhos e lutas dos presos políticos no Brasil (2011), de Janaína Teles, entre outros trabalhos importantes.

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, DOPS-GB D.789 (Foto 17). O que vou divulgar neste espaço não parece contemplado nessa literatura; são as ambiguidades e as tensões, pluralidade e diversidade das memórias revolucionárias no Brasil e na América Latina, por um viés não polarizado, que tenha nas experiências dos(as) próprios(as) sujeitos(as) dos anos de 1960 e 1970 o tecido de suas narrativas em constante elaboração.

A título de apresentação, Vera Sílvia Magalhães (1948-2007), jovem nascida em meio à classe média-alta intelectualizada do Rio de Janeiro, tornou-se integrante e dirigente da organização Dissidência Comunista da Guanabara e participou das mais conhecidas ações urbanas armadas em fins dos anos de 1960, teve sua imagem e história investigadas e representadas em filmes, artigos (Wolff, 2007; Figueiredo, 2017) e diversas reportagens, entre os quais, O que é isso companheiro (1997), de Bruno Barreto, e A Memória que me contam (2013), de Lúcia Murat. Designada em diferentes ocasiões como “guerrilheira”, “terrorista”, “sequestradora”, ou “integrante da oposição armada à ditadura”, a socióloga deixou registros fundamentais sobre a brutalidade da repressão que sofreu, incluindo a tortura “inteiramente desproporcional” (Magalhães, 2003) que lhe legou sequelas físicas e psíquicas. Pouco se sabe, no entanto, sobre aquilo que ela mesma denominou como constituição de um ethos específico (Reis, 1997), revolucionário, produto da articulação entre uma conjuntura político-cultural e variadas trajetórias pessoais. Vera Magalhães deixou testemunhos e entrevistas biográficas pouquíssimo incorporadas pela historiografia da ditadura, especialmente quando se trata de sua própria memória da violência política e da revolução socialista.

No caso chileno, um dos historiadores mais citados nos estudos históricos sobre ditadura é Gabriel Salazar Vergara, ex-militante do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR-Chile) criado em 1965, anterior à ditadura, durante o governo de Eduardo Nicanor Frei Montalva, do Partido Democrata Cristão. Acusado de reformista pelo MIR, o PDC cumpriu papel fundamental nos capítulos seguintes da história recente do Chile que culminaram com o violento golpe de 1973. Vergara produziu um volume historiográfico bastante complexo – e pouco abordado no Brasil – em que teoria da história, memória social, e trajetória política se fundem em uma Nova História Social bastante propositiva e que ajuda a repensar o período que decorre entre os anos de 1960 e 80 como tempos simbólicos de luta e de uma identidade de esquerda profundamente enraizada:

Allende, Victor Jara, Violeta Parra, Miguel Enriquez, Raul Pellegrin, são ícones que ajudam a construir um mínimo de identidade de esquerda. Isso não significa que devamos reproduzir o que eles disseram, isso não significa que vamos reproduzir o modelo de Allende, Miguel Enriquez, ou Guevara. […] Nesse sentido, nem a esquerda reformista, nem a revolucionária, com suas derrotas, tem desaparecido da história, seguem vivas no campo simbólico, mítico, e identitário, que é uma base mínima para construir novas coisas. Todos eles estão consolidados como uma memória histórica viva. (VERGARA, 2000)

Torturado pelo tenente Miguel Krassnoff – membro da Policia Secreta Direção de Inteligência Nacional (DINA) durante a ditadura – Gabriel Salazar Vergara investiga o tema da violência política popular (VPP) e chama nossa atenção para a radicalidade de movimentos e manifestações políticas das classes populares. A natureza destas reflexões pressupõe uma atitude epistemológica que não pode ser desvinculada da realidade histórica e social de combate à normatividade da qual emergiu.

Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 00229 051.

Trata-se, portanto, de fazer deste um espaço para narrativas e trajetórias de vidas vividas no limiar entre o real, a história e a memória. Revividas em seu aspecto marginal, político-moral, ou honroso e acrítico conforme as oscilações da política e da cultura de cada presente pós-ditaduras no continente. Experiências-limite que, em geral, traduzem um percurso internacional de produção acadêmica diaspórica, e/ou de militância irrevogável, além de experiências pessoais de repressão, entre as quais, o exílio, mas também a prisão política, o desemprego, o expurgo, a censura, a clandestinidade e a tortura. Reconheça-se nessas histórias, documentos e sujeitos(as), vivos(as) ou mortos(as), vestígios da história recente, mas também, e principalmente, problematizadores dela.

Vale dizer que a afirmação da História do Tempo Presente como campo específico de estudos com clara ênfase na memória, metodologias ligadas à História Oral e fontes testemunhais adensará teoricamente nosso debate. Entre os pressupostos epistemológicos desta vertente da história, estão a politicidade de seus temas e a convivência entre os(as) sujeitos que escrevem e aqueles(as) sobre os(as) quais ou com os(as) quais se escreve. A memória, em sua tríplice afirmação – como representação do passado no presente, como prática e cultura social e como valor com vocação universal (DELACROIX, 2018) constitui uma das características mais importantes do tipo de pensamento e de sensibilidade que nos guiam, a memória tornou-se o “nó” entre história, historiadores(as) e espaço público. Consideramos, assim, que o tratamento dispensado à carga ético-moral dos temas ligados à violência política do passado recente implica, entre outras questões, a reavaliação das bases de compreensão moderno-ocidental e ocidentalizada do tempo histórico, e a construção de categorias sensíveis de análise para pensar questões históricas e os seus passados vivos.

Consideramos a urgência da potencialidade memorialística da produção historiográfica diante de sua tendência (ocidental) de desvalorização dos testemunhos, frequentemente associados à literatura ou à militância política de maneira desqualificadora. Ao que nos parece, as abordagens e estatutos da memória na historiografia dizem respeito a um caminho de aprofundamento da compreensão histórica, mas também, e, sobretudo, de refundação de uma memória coletiva capaz de rechaçar moralmente o autoritarismo.

Pensar e sentir as experiências radicais e as memórias revolucionárias do passado-presente obscurecido pelas ditaduras de Segurança Nacional significa lidar com fragmentos de uma memória radical latino-americana que surgiu na contracorrente dos projetos e expectativas socialmente hegemônicos na região e que, a despeito de suas seguidas derrotas políticas, continuam complexificando os horizontes políticos e sociais.

 

Referências:

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.

D’ARAÚJO, Maria Celina (Org.) A volta aos quarteis. A memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. 328p.

DELACROIX, Christian. “A história do tempo presente, uma história (realmente) como as outras?” Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 39 ‐ 79, jan./mar. 2018.

DELLAMORE, Carolina, AMATO, Amato, BATISTA, Natália (Orgs.) A ditadura aconteceu aqui: A história oral e as memórias do regime militar brasileiro. 1ed; Belo Horizonte: Letra e Voz, 2017.

FIGUEIREDO, Cesar Alessandro Sagrillo. “As Representações Fílmicas de Vera Silvia Magalhães: Gênero, Testemunho e Resistência”. Revista Porto das Letras, Vol. 03, Nº 02. 2017.

MARTINS FILHO, João Roberto. “A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares”. Paper apresentado no Congresso de I Associação de Estudos Latino Americanos (Lasa), Dallas, mar-2003, pp. 27-9.

QUIJANO, Anibal (Org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

REIS, Daniel, et al. Versões e Ficções. O sequestro da história. Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.

SILVA, Carla Luciana Souza da. “Veja e a ditadura. A memória dos militares refaz a história”. HAO, Núm. 31 (Primavera, 2013), 95-107.

TELES, Janaína de Almeida. “Memórias dos cárceres da ditadura: testemunhos e lutas dos presos políticos no Brasil”. Tese de doutorado. Programa de Pós Graduação em História Social. Universidade de São Paulo. São Paulo, abril de 2011.

VERGARA, Gabriel Salazar. Memoria social: historia oficial, conflictos en Chile. Universidad de Chile, Departamento de Pregrado, Cursos de Formación General, 2000. Disponível no site ARCHIVO CHILE, Web do Centro Estudios Miguel Enríquez, CEME: http://www.archivochile.com (Último acesso em novembro de 2012).

WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Unesp, 2011. WOLFF, Cristina Scheibe. Feminismo e configurações de gênero na guerrilha: perspectivas comparativas no Cone Sul, 1968-1985. Rev. Bras. Hist. vol.27 nº 54 São Paulo Dec. 2007.

 

Crédito da imagem destacada: Reprodução

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