Historiadores da diversidade: entrevista com Marcelo Robson Téo
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Historiadores da diversidade: entrevista com Marcelo Robson Téo

Atualizado: 9 de mar. de 2022

Texto por: Bruno Laitano e João Camilo Portal


Não poderíamos deixar de começar este texto sem demarcar o lugar que ocupamos hoje. Historiadores de formação, trabalhamos com produção de conteúdo na UOL EdTech, uma empresa de educação e tecnologia. Recém formados pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), caminhamos agora em solo corporativo, realidade que nos permitiu conhecer um universo tradicionalmente não habitado por historiadores profissionais. Com cortes cada vez mais agudos em bolsas de pesquisa, com um mercado de trabalho limitado à pesquisa e à docência, vemos nossos colegas trocando de área – alguns, inclusive, arrependidos a despeito de sua genialidade –, o que torna urgente o debate sobre os nossos espaços de atuação.


Como ampliar o leque de atuação dos historiadores? Essa pergunta encontrou eco nas provocações de Marcelo Robson Téo, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), que foi pesquisador colaborador junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e é sócio fundador da DivA Inclusive Solutions, que aceitou gentilmente o nosso convite para transmitir suas atuais experiências de consultoria e pesquisa.

Marcelo Robson Téo – historiador (Reprodução)

O historiador nos apresentou a sua inovadora iniciativa no campo das humanidades: a DivA, que cria soluções para problemas ancorados na diversidade. Os fatores ESG (Governança Ambiental, Social e Corporativa), uma tendência no setor corporativo de inovação e sustentabilidade, são vistos por Téo como uma abertura para que profissionais das humanidades explorem a descentralização do sujeito universal, a compreensão social dos fenômenos e a sensibilidade na produção de soluções para problemas narrativos. Em suas palavras, “as formações em Ciências Humanas nos oferecem uma diversidade de habilidades de percepção, análise e diagnóstico social que são fundamentais quando se deseja causar algum tipo de impacto social. Muitas das soluções tecnológicas e inovativas que carecem de profissionais competentes do campo das humanidades e de pessoas diversas na equipe acabam fortalecendo vieses, limitando o alcance ou simplesmente não explorando parte de suas potencialidades”. Em outras palavras, enxerga-se a necessidade da criação de uma autonarrativa profissional que consolide o desenvolvimento de habilidades sensíveis às demandas sociais de hoje, tais como o algoritmo nas redes sociais e as demandas por maior pluralidade de histórias e sujeitos.



Profissionais das humanidades, na medida em que carregam consigo um discurso em favor das diversidades, podem conduzir, nas organizações, processos de transformação sustentáveis. Tendo um compromisso com as demandas de justiça social, a História Pública é pensada atualmente como meio para colocar um conhecimento à disposição de soluções que lhe circunscrevem. O processo recente de regulamentação da profissão de historiador nos convida a atualizar o nosso ofício em relação ao trabalho contemporâneo, extrapolando necessidades internas da academia e propondo modelos de formação que possibilitem aos mais novos profissionais atuarem em sintonia com oportunidades emergentes. A existência de um lugar deve ser preenchida por meio de práticas que nos capacitem e nos deem perspectivas de manejo de nossas habilidades adquiridas. Assim, sob o olhar foucaultiano, a conquista de um saber consubstancia-se à produção de discursos de poder que mobilizam discursivamente esse saber, sempre a partir de dispositivos de construção da realidade. Como podemos mobilizar aquilo que sabemos para criarmos lógicas de circulação do discurso histórico que não visem à autorreprodução acadêmica e tornem a História Pública igualmente desafiadora em nichos diversos?


Por meio dessa preocupação existencial com maior equidade narrativa e com mudanças a respeito das desigualdades de reconhecimento historicamente construídas, as humanidades ocupam posição singular na proposição de algoritmos baseados na diversidade de sujeitos, além de oferecerem projetos baseados em pertencimento, bem-estar, sustentabilidade e inovação. Explorar brechas no mundo contemporâneo é uma forma de pensar soluções responsáveis e de construir espaços de atuação em prol de um futuro baseado na empatia. Explorar as potencialidades de nossa profissão pode revelar trajetórias futuras para toda a nossa comunidade – uma espécie de design thinking associado às humanidades.


Agradecemos a Marcelo Téo pela riqueza das respostas, com as quais ficamos muito felizes, gratos e esperançosos em relação ao ofício contemporâneo do historiador.


1. Você é sócio-fundador da DivA Inclusive Solutions, startup dedicada à criação de soluções escaláveis para o problema das chamadas “bolhas digitais”. Que importância tem a sua experiência acadêmica na atuação que você desempenha no mercado privado? Quais são os principais desafios com os quais você já se deparou?

Marcelo Téo: Vou começar explicando um pouco melhor o que a DivA faz. Na verdade, a questão das bolhas digitais é mais abordada através do Menu DivA, no nosso Instagram. Lá a gente explica algumas questões, coleta depoimentos e elabora uma curadoria bem completa a fim de incentivar a audiência a conhecer novas referências narrativas e a alimentar os algoritmos das plataformas com mais diversidade, criando um ciclo de renovação nas práticas de consumo de conteúdo e informação. Eu usei meu próprio perfil como cobaia e realmente funciona. Hoje meu feed é um laboratório de diversidade, no qual consigo ouvir de pessoas negras opiniões sobre alguma questão do dia que diz respeito ao racismo, por exemplo, ou de pessoas indígenas sobre o marco temporal, e assim por diante. Mas o alcance ainda é muito pequeno e estamos trabalhando para ampliá-lo a cada temporada. O crescimento é lento, mas totalmente orgânico.


A DivA, como um todo, trabalha para desenvolver soluções e projetos com foco em diversidade, equidade e inclusão (DE&I), seja junto a marcas e organizações, seja junto a grupos minoritários que apresentam demandas com as quais nos identificamos e nos sentimos aptos a acolher. A partir daí, construímos um projeto e buscamos financiamento para desenvolvê-lo via editais ou parcerias com o setor privado.


No caso das organizações, criamos e registramos uma metodologia – a P.L.U.RA.L.® – para auxiliar e gerir processos de inclusão, mas também atendemos demandas mais pontuais, como projetos, campanhas, eventos, ciclos de treinamentos, estratégia editorial e branding, sempre com foco em DE&I.


Comecei a responder falando sobre a nossa atuação para vocês entenderem um pouco as habilidades necessárias. Nós hoje somos apenas três pessoas: uma designer, um consultor e um pesquisador. Mas todes nós temos formação em humanidades. Esse é um detalhe muito importante. As formações em Ciências Humanas nos oferecem uma diversidade de habilidades de percepção, análise e diagnóstico social que são fundamentais quando se deseja causar algum tipo de impacto social. Muitas das soluções tecnológicas e inovativas que carecem de profissionais competentes do campo das humanidades e de pessoas diversas na equipe acabam fortalecendo vieses, limitando o alcance ou simplesmente não explorando parte de suas potencialidades.



Essas habilidades, às vezes, são difíceis de nomear, mas fáceis de perceber. A formação em humanidades constrói mecanismos de percepção social que aguçam nosso senso crítico, desenvolvem nosso senso de justiça, amplificam nossa visão das estruturas e das instituições, estimulam uma postura investigativa, tornando a pesquisa uma espécie de ferramenta cotidiana, usada para resolver todo tipo de problema. Minhas filhas de quatro e sete anos, que convivem comigo e minha esposa, também historiadora, já apresentam indícios desse modo de pensar tão entranhado na cabeça dos pais: "Papai, eu tenho uma hipótese para resolver esse mistério!", "Mamãe, se você também não sabe, o que você acha de fazermos uma pesquisa juntas?", "Papai, eu fiz um projeto aqui no quadro pra gente resolver esse problema. Quer pensar comigo?". Nós, cientistas do social, aprendemos a pensar assim, por meio de ferramentas dos nossos campos, que são diversos, mas que possuem muitos pontos de convergência: a pesquisa, a habilidade de identificação de problemas sociais, a elaboração de projetos, o pensamento estrutural, o senso histórico, a capacidade de relativizar modelos normativos e identificar variações culturais etc.


Essas habilidades valem ouro. São muito necessárias, sobretudo porque profissionais da comunicação, da área de administração e negócios – das hard sciences – apresentam, salvo raras exceções singulares, um déficit imenso nesse sentido. E isso não tem a ver com falta de cultura geral, mas com falta de noções básicas de percepção social advindas das humanidades, algo que deveria permear toda e qualquer formação universitária, assim como o design e a programação, atualmente.


O problema, respondendo à segunda parte da pergunta, é que saímos das graduações e pós-graduações sem aprender algumas habilidades básicas. Volto a citar o design e a programação, mas poderíamos elencar outras, como produção de conteúdo, comunicação digital, estratégias de distribuição, noções de empreendedorismo e metodologias ágeis, gestão de equipes etc. Mesmo os cursos que tateiam alguns passos em termos de linguagem fazem-no de forma amadora, sem integração institucional ou concursos multidisciplinares, e com uma visão estreita, voltada exclusivamente para a docência, a pesquisa e a elaboração de materiais didáticos. Faltam-nos habilidades básicas para atuar no mercado de trabalho fora do âmbito educacional, o que dificulta bastante a criação de uma autonarrativa que se torne sedutora para as organizações em busca de contratar profissionais com o nosso perfil.


No caso do empreendedorismo, é preciso somar as dificuldades financeiras. É um processo lento e custoso. Com algum suporte acadêmico, talvez pudéssemos sair para o mercado profissional com projetos mais sólidos. Entretanto, a estrutura das humanidades está desenhada numa direção bem diferente. Qualquer mudança teria que ser feita com muita cautela. Afinal, pelo menos como eu imagino, essas possibilidades não devem ser percebidas como uma sujeição das Ciências Humanas ao mercado, mas, ao contrário, como um investimento estratégico em busca de tornar menos desleal as disputas narrativas entre ambos – academia/humanidades e mercado/mídias/publicidade.


2. Tradicionalmente, o mercado da prática historiográfica é restrito à docência e à pesquisa. Na sua visão, há uma relação entre essa limitação de atuação e a percepção pública sobre o ofício dos historiadores no Brasil? Como você acredita que os cursos de graduação em História têm lidado com as mídias digitais, o audiovisual e a iniciativa privada? A noção de “mercado privado” é bem aceita na comunidade acadêmica? Se sim, quais são os seus impactos?

Marcelo Téo: Certamente existe uma relação entre as opções da academia e a percepção pública do nosso ofício. No entanto, o peso dessa relação é menor do que as tradições e estruturas da produção de conhecimento no nosso campo. Embora exista uma demanda social latente por conhecimento histórico, a academia ainda concentra a maior parte dos seus esforços para alimentar um ciclo de necessidades internas, que incluem a pesquisa e o ensino na universidade e nas escolas. Faltam iniciativas no meio acadêmico que contemplem uma diversidade maior de demandas sociais.

Muitos acadêmicos têm atuado na produção de conteúdo para plataformas digitais – como o YouTube e o Instagram – mas, em geral, sem grandes estímulos ao longo do processo de formação. E quando falo em estímulos, refiro-me a disciplinas técnicas, práticas e teóricas destinadas a identificar e explorar as demandas sociais por História. O que a disciplina histórica pode oferecer à sociedade? O que falta na nossa formação para que possamos oferecer narrativas, serviços e produtos relevantes à sociedade, tanto para a formação cidadã quanto em termos de experiência de uso visando o engajamento e a relevância para públicos mais amplos ou nichos específicos?

É vital para o campo das Ciências Humanas a autonomia da pesquisa e a formação docente. Isso não pode ser negociado ou substituído por um cenário exclusivo de ações práticas. Mas é fundamental que esse caráter prático das humanidades seja também explorado. Identificar problemas, estressar possibilidades de solução, criar protótipos, validá-los com a sociedade e transformá-los em ferramentas ao seu serviço. Vale lembrar que, ao oferecermos serviços a empresas e recebermos por isso, não podemos excluir jamais o compromisso com a justiça social.

O tema da vez no mundo corporativo – o ESG (Environmental, Social and Corporate Governance) – tem apontado a necessidade de especialistas no âmbito das humanidades na condução de processos de transformação das organizações rumo a um futuro sustentável. Para ocuparmos essas posições, precisamos conhecer a realidade das organizações, suas demandas, expectativas e responsabilidades. Sem isso, essas funções continuarão a ser exercidas por profissionais subqualificados nos quesitos "compreensão e análise social".

Muitos cursos no campo das humanidades têm entendido de forma enviesada essas demandas. Disciplinas voltadas exclusivamente às linguagens e às mídias digitais suprem algumas demandas advindas da História Pública e da divulgação científica, mas não contemplam esse universo de possibilidades situado entre a iniciativa privada (que oferece vagas e possui demanda por serviços) e o consumo digital (com audiências em potencial à espera de soluções – aplicativos, plataformas etc. – para problemas da contemporaneidade).

Dado esse cenário, podemos presumir que essa aproximação entre academia e mercado ainda não constitui uma pauta para as cúpulas das áreas que compõem o campo das humanidades. Quando falo em aproximação, volto a dizer, não imagino uma relação de submissão às necessidades mercadológicas – como é comum em algumas áreas –, mas, por outro lado, uma atuação autônoma e ética em prol da transformação positiva da sociedade.

Sobre os impactos e contornos dessa relação, não tenho muito a dizer. Caso ela venha a acontecer, acho que deverão ser discutidos de forma mais ampla no meio acadêmico e registrados em obras e protocolos de atuação que ajudem a redefinir nosso ofício.

3. No artigo “Desequilíbrio de histórias parte I: um problema do campo das humanidades”, publicado em 2018 na revista Tempo e Argumento, você argumenta que os nossos núcleos de formação devem incentivar a participação de cientistas sociais em posições de decisão e de produção no âmbito do mercado de conteúdo. Nesse sentido, de que maneiras as universidades públicas podem colaborar com a iniciativa privada sem abrir mão de sua autonomia? Você acredita que há resistências por parte da comunidade acadêmica no que tange à formação dessas parcerias? Marcelo Téo: Não sei se é possível desenhar modelos de colaboração precisos, especialmente porque eles devem ser definidos, ao menos em parte, a partir da realidade específica de cada centro, das demandas sociais de cada lugar. As parcerias com a iniciativa privada são, em geral, secundárias no que diz respeito à abordagem. Podem ser primárias em termos de viabilidade, quando são financiadores das soluções, mas a abordagem tem como prioridade as comunidades ou grupos afetados pelo problema. Na DivA, por exemplo, nossos projetos partem da realidade social para depois buscar financiamento, com exceção dos serviços que são ofertados diretamente para o universo corporativo. Ainda assim, o desenho do nosso modelo de consultoria foi feito a partir de pesquisas que cruzaram dados obtidos em conversas com lideranças (expectativas corporativas), especialistas em DE&I (desafios da realidade organizacional) e pessoas pertencentes a grupos minorizados empregadas em corporações (demandas para o exercício profissional considerando a saúde mental e o sentimento de bem-estar e pertencimento). Ou seja, mesmo quando oferecemos serviços às corporações, nossa atuação precisa estar ancorada na realidade social e na busca por diminuir as desigualdades construídas historicamente, seja na sua dimensão narrativa, seja no âmbito das relações de poder.

Outra questão a se pensar é se essas parcerias com a iniciativa privada devem realmente acontecer através da universidade. Talvez o papel da universidade seja formar profissionais para atuar de forma mais ampla e preparada no mercado de trabalho. A aproximação real, no sentido de firmar parcerias ou prestações de serviços, talvez possa ser feita por organizações fundadas, dirigidas ou orientadas por profissionais advindos do nosso campo. Enfim, as possibilidades são inúmeras.

E, sim, acredito que há resistências. Inclusive, penso que elas sejam importantes e devam ser levadas em conta na hora de desenhar modelos e protocolos de atuação. Afinal, existem muitos perigos nessa aproximação. A História já serviu às demandas políticas e colonizadoras dos Estados-nação, construindo legados coloniais que ainda hoje afetam grande parte da população mundial, excluídas da bolha civilizatória ocidental. Não queremos que a nossa disciplina se perca nesse processo e passe a servir a um patrão ainda mais cruel: o capital.

A História, como as outras Ciências Humanas, deve permanecer senhora de si e, ao mesmo tempo, ter a humildade de se colocar à disposição da sociedade para ajudar a resolver os problemas que, em alguma medida, lhe cabem. Na DivA, temos como problema suleador o "desequilíbrio de histórias", que é a dimensão narrativa da desigualdade. Todas as nossas ações são guiadas por ele. Mesmo quando falamos em representatividade no contexto de uma corporação, pensamos nessas ações do ponto de vista narrativo: as escolhas que cada instituição, organização ou indivíduo fazem contam uma história. Ao atender às dores do setor privado, devemos levar em conta as demandas sociais, estabelecendo um casamento entre oportunidade e responsabilidade.

Ainda não posso oferecer um olhar maduro sobre o nosso próprio modelo porque, além de recente, foi pouco explorado. À medida que nossas experiências com clientes do setor privado se tornem mais numerosas, poderei compartilhar impressões mais consistentes sobre a atuação da DivA.

4. Como pesquisador colaborador junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), você desenvolveu pesquisas sobre a relação do “desequilíbrio de histórias” com o campo das humanidades, explorando pontos de tensão e contato entre a produção acadêmica e o mercado de produção de conteúdo. De que forma você observa a inserção dos historiadores no mercado de conteúdo, tendo em vista a proliferação de iniciativas de divulgação científica nas redes sociais? Esse novo modelo de atuação está em sintonia com a regulamentação da profissão de historiador? Marcelo Téo: Acho que boa parte das demandas profissionais das organizações contemplam "profissionais das Ciências Humanas" mais do que historiadories ou antropólogues, por exemplo. As atribuições do ofício não serão limitadoras porque na maioria das vezes não ocuparemos cargos de historiadories. O antropólogo Grant McCracken (2009) fala no CCO – ou Chief Culture Officer – como uma necessidade para as organizações interessadas em acompanhar as mudanças sociais com agilidade. O seu trabalho é excessivamente corporativo, mas dá uma boa ideia de como esse processo pode acontecer.

No que diz respeito à produção de conteúdo por parte de historiadores, eu acho que toda investida em busca de audiências mais amplas é válida, desde que comprometidas com a ciência histórica. A questão é que uma estrutura acadêmica que contempla essa dimensão vai tornar esses profissionais, que hoje são exceções, uma regra. Ou pelo menos aumentará vertiginosamente a sua recorrência.

A importância dessa expansão é fundamental, uma vez que, como coloco no artigo que vocês mencionam, sinto que nós, especialmente historiadores, somos responsáveis em alguma medida pela desigualdade narrativa que afeta grandes parcelas da população. Responsáveis não apenas no sentido de herdarmos as consequências e muitas das práticas excludentes da historiografia colonial, mas sobretudo porque o campo das narrativas é também o campo da História. Se em algum momento a História foi entendida como representação do passado, hoje podemos dizer que a História também encampa o problema da representatividade e da equidade narrativa. Como lidar com o silêncio que afeta a história de comunidades e grupos minorizados? Como reparar essas ausências? Como evitar que sigam acontecendo? Como garantir que no futuro existam fontes mais diversas e acessíveis para lermos o presente que então será passado? Soluções para essas questões devem ser elaboradas, acredito, a partir do protagonismo do historiador. Esse, para mim, é o ponto de partida para pensarmos a produção de conteúdo. Não basta transferir o texto para outras linguagens ou adaptar os mesmos objetos às novas linguagens. É necessário que a própria produção narrativa também seja objeto de reflexão, para além dos temas históricos, incluindo a produção e o consumo de conteúdos.

O Menu DivA, no nosso Instagram, é uma tentativa de lidar com essa questão. Ao produzirmos conteúdos e ampliarmos o debate sobre o consumo de narrativas no cotidiano, bem como seus impactos na performance social dos indivíduos, estamos, em alguma medida, cumprindo essa função. Todavia, existem muitas outras possibilidades de atacar o problema. Soluções tecnológicas para lidar com a primazia do princípio da similaridade que domina o funcionamento das ferramentas de IA responsáveis pela curadoria automatizada de conteúdos (das plataformas de streaming às redes sociais) são urgentes. Os algoritmos de recomendação de conteúdos precisam ampliar suas possibilidades de atuação a partir do princípio da diversidade, vitamina essencial na construção de um futuro marcado mais pela empatia do que pela polarização, pelo enquistamento ideológico e pelo ódio digital. Nós temos um projeto engavetado que vai nessa direção. Oportunamente queremos buscar financiamento para desenvolvê-lo.

5. A disciplina histórica foi idealizada a fim de produzir narrativas para os Estados-nação. Atualmente, as críticas epistemológicas feitas às origens do ofício do historiador estão presentes em diversas frentes, na medida em que a História agora reivindica um novo lugar social, uma diversidade de sujeitos e uma ruptura em relação à “História universal”. Acreditamos que a crítica à epistemologia originária da disciplina também deve incidir sobre o nosso lugar de atuação, uma vez que o ofício histórico ainda é majoritariamente relacionado à esfera estatal. Nesse sentido, partindo do incentivo à complementaridade da História com as demais ocupações, que áreas profissionais poderiam vir a ser lugares de atuação dos historiadores num futuro próximo?

Marcelo Téo: É difícil prever para onde essa abertura pode nos levar. Um dos campos em franco desenvolvimento é o da diversidade. No Brasil, o número de vagas oferecidas no setor cresceu mais de 500% em 2020. Levando em conta que muitas das ações afirmativas respondem a consequências históricas de exclusão, o nosso ofício pode contribuir amplamente para respaldar essas medidas. O campo da comunicação e produção de conteúdo, que já vem sendo ocupado por historiadores, mesmo que timidamente, é outra possibilidade. A pesquisa social, cada vez mais requisitada na identificação de tendências e elaboração de diagnósticos complexos de grupos ou parcelas populacionais, é um campo que pode ganhar muito com a presença de historiadores. No campo tecnológico, na medida em que cresce uma consciência mais ampla sobre o papel negativo de ferramentas enviesadas, profissionais das humanidades poderão assumir funções importantes de pesquisa e aconselhamento nos processos de desenvolvimento. A curadoria de conhecimento também vem crescendo como um serviço ofertado a corporações e instituições. Essa habilidade é bastante desenvolvida em historiadores e pesquisadores de humanas em geral. Também entendo que o campo político carece de historiadores, seja em funções legislativas ou de consultoria. São espaços que precisam ser cavados. Ações de vigilância e combate à desinformação, hoje protagonizadas por jornalistas, também são uma possibilidade. Certamente existem outras, e ainda surgirão outras tantas. O mais comum será vermos profissionais criando funções e oportunidades a partir de suas próprias experiências e da capacidade de "captar no ar" as dores existentes no mercado de trabalho. A universidade, nesse sentido, deve oferecer uma estrutura comum nessa direção, diluindo as diferenças de oportunidade entre os indivíduos.


A respeito da crítica epistemológica, ela é, sem dúvida, fundamental, e tem causado muita resistência. Além disso, mesmo entre seus adeptos, ela provavelmente dividirá opiniões sobre os rumos da nossa atuação profissional. Porém, é inegável que exista uma relação tensa entre o pensamento decolonial e a estrutura acadêmica que recompensa determinadas atribuições do nosso trabalho em detrimento de outras – pesquisa versus extensão, por exemplo. A extensão precisa assumir um novo posto nessa hierarquia, pois é através de ações de extensão que a expansão do nosso ofício deve ser experimentada, guiando, em certa medida, os horizontes da pesquisa a partir de situações práticas. Este debate pode tomar várias formas e direções. Confesso que não me sinto confortável em explorá-las porque o assunto extrapola as minhas competências, tendo em vista que não tenho acompanhado de perto os debates dentro do nosso campo sobre o assunto.


É importante termos em mente, enfim, que a urgência desse debate sobre o nosso ofício não deve ser guiada apenas por questões teóricas e metodológicas, mas também como resposta a um cenário bastante preocupante, no qual muitos de nós não encontram espaço de atuação dentro das estruturas tradicionais. Sobram graduados, mestres e doutores sem emprego; é grande o número de desistências nos cursos de História, em parte porque não oferecem alternativas para além da pesquisa e da docência a uma geração que tem expectativas bastante diversas e modificadas pelo estilo de vida contemporâneo, mas que, ainda assim, demonstram grande interesse em relação à ciência histórica, seus objetos e ferramentas de interpretação da realidade social.


Como a História pode servir à sociedade no presente? Como a estrutura acadêmica que a sustenta pode contribuir para que seus representantes – nós, historiadores – consigam, mesmo que de forma autônoma, escalar a ação da História na sociedade? Essas são questões básicas, evidentes, mas que são frequentemente esquecidas ou apagadas em meio ao turbilhão de demandas criadas no interior do universo acadêmico.


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