Jair Bolsonaro: uma ameaça à memória
Atualizado: 9 de mar. de 2022
O historiador Pierre Vidal-Naquet, no livro Les assasins de la mémorie, publicado em 1987, definiu o revisionismo como sendo uma doutrina segunda a qual o genocídio praticado pela Alemanha nazista contra judeus e ciganos não existira, pertencendo, pois, ao domínio do mito, da fabulação, da fraude.[1]
Este mesmo historiador nos conta que o revisionismo não surgira propriamente como um discurso de negação completa da Shoá. De início, o que ocorreu foram questionamentos quanto ao número de vítimas existentes e uma relativização do caráter nefasto desse ocorrido. Posteriormente, surgiram discursos que pregavam a inexistência das câmaras de gás, do uso do Zyklon-b – gás usado nessas câmaras – e de um plano sistemático para a eliminação dos indesejáveis ao nazismo.
Pelo menos desde 2013, o campo político no Brasil tem sido marcado por uma guinada à direita e por uma forte polarização social. Consequentemente, as leituras de cunho negacionista acerca do passado ditatorial brasileiro começaram a emergir no espaço público com grande força. O negacionismo não é exatamente uma novidade em nosso país, pois sempre esteve presente em certos segmentos da sociedade. No entanto, agora, setores de extrema-direita vêm propagando a negação da ditadura não apenas na Internet, mas também em manifestações de rua, quando fazem discursos elogiosos ao regime de exceção e pedem uma nova intervenção militar. A outra novidade é que, no momento atual, as narrativas negacionistas chegaram ao Estado brasileiro.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado no final de 2014, contabiliza mais de duzentas vítimas da ditadura militar que continuam desaparecidas. Mudam-se presidentes, mas, até agora, nada foi esclarecido a respeito. As Forças Armadas brasileiras, por sua vez, adotaram o silêncio como política oficial e negam sistematicamente a existência de qualquer documento que possa levar à elucidação dos casos dos desaparecidos e as circunstâncias das mortes: quem matou, quando, a mando de quem e o que fizeram com os corpos?
Na última semana, o presidente Jair Bolsonaro deu uma infeliz declaração, incompatível com o Estado democrático de direito. Em referência a Fernando Santa Cruz, militante da Ação Popular, desaparecido em 1974 e pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, Bolsonaro disparou: “Se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu, eu conto”. Na mesma ocasião, Bolsonaro, em uma atitude deliberada de falseamento dos fatos históricos, criou a versão de que a culpa pela morte de Fernando seria da própria esquerda.
Em seguida, Bolsonaro contestou os trabalhos da CNV: “E você acredita em Comissão da Verdade? Qual foi a composição da comissão? Foram sete pessoas indicadas por quem? Pela Dilma?”. Com essas afirmações, o presidente refutou a lei federal que criou a CNV, a própria comissão e seu relatório.
Entrega do Relatório da Comissão Nacional da Verdade à Presidenta Dilma Rousseff, em 10 de dezembro de 2014, no Palácio do Planalto. Fonte: Site da Comissão Nacional da Verdade. Autor: Fabrício Faria/Comissão Nacional da Verdade. Wikimedia Commons
As recentes declarações do presidente foram mal recebidas por pessoas até mesmo do espectro conservador que o ajudaram a se eleger, a exemplo do governador de São Paulo, João Dória.
Não é de agora que Bolsonaro faz declarações totalmente incompatíveis com os valores democráticos. A essas declarações e ações somam-se outras. Em março deste ano, no contexto dos 55 anos do golpe de 1964, Bolsonaro incentivou “as devidas comemorações”, contrariando uma recomendação do relatório da CNV. Na ocasião, afirmou que o que ocorrera em 1964 não foi um golpe. Diante da reação da Organização das Nações Unidas (ONU), que cobrou do Brasil explicações, o Itamaraty respondeu que o golpe de 1964 não existiu. O que teria ocorrido foi um movimento “legítimo”. Num dos trechos, o documento chega a falar em “repúdio” à cobrança e aos comentários do relator da ONU. O uso do termo é usado apenas em situações de extrema ofensa ou de crises. A ONU recebeu a resposta do Estado brasileiro com preocupação e perplexidade.[2]
Atualmente, há um esforço do Estado brasileiro para reabilitar historicamente o golpe e a ditadura. Nega-se o golpe de 1964, conferindo-lhe legitimidade, e se retoma a ideia de que a ditadura salvou o país do comunismo e do autoritarismo de esquerda. Os governantes atuais pretendem impor essas versões como fatos históricos. Nesse sentido, pretendem diluir a linha divisória que separa história e memória. Em outros termos, a verdade histórica e os avanços que foram alcançados pelo Estado brasileiro por meio de órgãos da justiça transicional[3] são postos em questão.
Essas questões se agravam diante dos ataques oficiais sofridos pelo campo do ensino de história. O ex-ministro da Educação, Ricardo Vélez, afirmou que não houve golpe e que a ditadura não poderia ser considerada como tal, mas como um “regime democrático de força”. Na ocasião, afirmou também que haveria mudanças progressivas nos conteúdos dos livros didáticos “na medida em que seja resgatada uma versão da história mais ampla”.[4] Vélez ficou pouco tempo no cargo. Não resistiu às disputas internas existentes no Ministério da Educação e acabou sendo demitido. Em seu lugar, Bolsonaro nomeou Abraham Weintraub, também de perfil conservador. Para Weintraub, o golpe de 1964 foi uma “contrarrevolução”, uma “ruptura dentro das regras”.
O filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, que exerce grande influência nas decisões políticas do pai, declarou em seu perfil na rede social Twitter que a ditadura militar é “mal retratada nos livros didáticos”. Para o deputado federal, “se continuarmos no nosso marasmo, os livros escolares seguirão botando assassinos como heróis e militares como facínoras”.[5]
As atitudes dos integrantes do governo atual são uma flagrante tentativa de reescrever o passado ditatorial brasileiro com base no negacionismo e no relativismo. Tal tentativa vai de encontro à narrativa construída pela CNV e outros órgãos estatais, a exemplo da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que buscaram esclarecer – com base em um trabalho sério fundamentado em documentos oficiais e depoimentos – os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura. Essas investidas contra a memória representam um ponto de inflexão sem precedentes em nossa democracia.
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Data desconhecida. Wikimedia Commons.
O que temos vivido atualmente no Brasil em termos de memória resulta de uma política de trato do passado baseada na conciliação, na manutenção da Lei de Anistia e na impunidade de torturadores e assassinos. Tal impunidade tanto fortalece o presidente da República e seus apoiadores, como permitiu que o então deputado federal Jair Bolsonaro saísse ileso de uma sessão do processo de impeachment após ter dedicado seu voto ao torturador Carlos Aberto Brilhante Ustra. [6]
As ações do atual governo não se resumem a retóricas odiosas contra as vítimas da ditadura e seus familiares. Desenha-se um grave ataque ao processo de justiça de transição no país que, desde 1995, busca sanar as dívidas que o Estado tem com seu passado ditatorial. Os dois órgãos permanentes que lidam com os mortos, desaparecidos e demais perseguidos pela ditadura, a Comissão de Anistia (CA) e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) sofreram duros reveses sob o governo Bolsonaro.
A CA teve a composição de seus membros alterada para dar lugar a pessoas com posturas totalmente contrárias aos propósitos da comissão. Tal mudança foi, inclusive, objeto de questionamento por parte do Ministério Público. Além disso, a ministra Damares Alves[7] rejeitou recentemente mais de mil solicitações de reconhecimento de anistiados políticos.[8] Afora as declarações de Bolsonaro defendendo a abertura de uma CPI para investigar as indenizações concedidas. Trata-se de estratégia política para prejudicar os trabalhos da comissão, inviabilizando o seu pleno funcionamento.
A CEMDP também foi atacada. Primeiramente, em virtude do decreto presidencial n. 9.759/2019, o Grupo de Trabalho Perus[9] teve seus trabalhos paralisados, pois o dispositivo legal pôs fim à equipe de identificação. Mais recentemente, após as declarações sobre Fernando Santa Cruz e a CNV, Bolsonaro excluiu parte dos integrantes da comissão e, em substituição, nomeou militares e integrantes de seu partido, o PSL. Entre os excluídos está Eugênia Gonzaga, até então presidente da comissão, que fez críticas a Bolsonaro após suas declarações. Para Gonzaga, a atitude do governo foi uma represália.[10]
A maneira pela qual os temas relacionados à ditadura militar voltaram ao espaço público só reforça a necessidade de abrir os arquivos das Forças Armadas, esclarecer o paradeiro dos desaparecidos políticos e responsabilizar penalmente os agentes envolvidos em uma série de violações aos direitos humanos. Dificilmente, iniciativas nesse sentido irão avançar no momento político atual.
Walter Benjamin, em sua sexta tese sobre a história, afirmou que “(…) os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.[11] Os integrantes do governo, diante do que têm feito e dito, têm proporcionado um duplo assassinato às vítimas da ditadura: matou-se após 1964; agora, em plena democracia, mata-se novamente, desta vez pela memória.
Notas:
[1] VIDAL-NAQUET, Pierre. Les assasins de la mémorie. Paris: Éditions de La Découvert, 1987. [2] “Tensão no papel”. Uol, 28/05/19. Disponível em: Notícias UOL. [3] Basicamente, pode-se definir que o objetivo da justiça de transição implica processar os violadores dos direitos humanos, revelar a verdade sobre crimes passados, reparar as vítimas, reformar as instituições ligadas de algum modo a essas violações e promover a reconciliação. Cf. VAN ZYL, Paul. “Promoting Transitional Justice in Post-Conflict Societes”. In: BRYDEN, Alan; HÄNGGI, Heiner (eds.). Security Governance in Post-Conflict Peacebuilding. DCAF: Genebra, 2005. [4] “Ministro diz que não houve golpe em 1964 e que livros didáticos vão mudar”. Folha de S. Paulo, 03/04/19. Disponível em: Folha de São Paulo. [5] “Filho de Bolsonaro propõe revisão histórica sobre ditadura em livro didático”. Folha de S. Paulo, 10/01/19. Disponível em: Folha de São Paulo. [6] Em 2012, em consequência de uma ação movida pela família Teles, a Justiça de São Paulo reconheceu formalmente Ustra como torturador. Essa foi a primeira vez que uma decisão envolvendo a tortura durante a ditadura foi reconhecida por um colegiado de segunda instância. [7] Este ano, a comissão passou a fazer parte do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos. [8] “Damares rejeita 1.381 pedidos de reconhecimento de anistiados políticos”. O Globo, 29/07/2019. Disponível em: O Globo. [9] O GT Perus busca identificar as ossadas encontradas em uma vala clandestina no Cemitério de Perus, em São Paulo, no início dos anos 1990. Parte dessas ossadas é de militantes políticos que foram enterrados como indigentes. [10] “Bolsonaro põe militares e integrantes do PSL na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos”. O Globo, 01/08/2019. Disponível em: O Globo. [11] BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e crítica histórica. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasilense, 2012.
Crédito da imagem destacada: Rememorar os Fatos Relacionados ao dia 31 de Março de 1964, véspera do golpe de estado que deu origem a ditadura militar. Dep. Jair Bolsonaro (PP-RJ) Data: 01/04/2014. Autor: Gustavo Lima / Câmara dos Deputados. Wikimedia Commons
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