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  • Foto do escritorJoão Condé

James Dean em Copacabana: a invenção da “juventude transviada” carioca nos anos 1950

 

“Aquele que se transviou”. Segundo dicionários da língua portuguesa, esta é a definição para a palavra “transviado”, expressão recorrente no imaginário da população brasileira residente nos grandes centros urbanos. Se em uma conversa casual entre pessoas com mais de cinquenta anos, surgir a pergunta de quem eram os “transviados” do século passado, muito provavelmente as respostas serão semelhantes: eram jovens fora de controle, que viviam sem regras, vestiam jaquetas de couro, dirigiam lambretas e usavam um característico topete no cabelo. Esta é parte da definição que se popularizou no Brasil sobre o que se chamava de “juventude transviada”, expressão recorrente na vida noturna da Zona Sul carioca nos anos 1950.

No entanto, a expressão nem sempre foi popular. Uma pesquisa no acervo digital do jornal O Globo aponta que, no período compreendido entre 1951 e 1956, o termo foi utilizado apenas 24 vezes. Ao continuar a pesquisa para os anos seguintes, de 1957 a 1959, a expressão aparece em 153 ocasiões. A partir desses números, observa-se que, em um período de seis anos, o termo foi mencionado cerca de sete vezes menos do que no período dos três anos seguintes, o que me leva a questionar os motivos da popularização da expressão a partir do ano de 1957. A princípio, a resposta parece óbvia: o ano de 1957 foi o ano de lançamento do filme Rebels without a cause, título traduzido no Brasil para “Juventude Transviada”. No entanto, a questão não é tão simples.

Os anos 1950 representaram um período de intensa transformação social. Os brasileiros dos grandes centros urbanos mudaram diversos padrões e costumes no que diz respeito à vida cotidiana. Nesse sentido, houve, na segunda metade dos anos 1950, um discreto processo de emancipação feminina. Mulheres começaram a trabalhar fora de casa, a frequentar bares e discotecas, a beber em público e a fumar, sem necessariamente serem mal vistas por isso. Esse movimento de saída das mulheres para espaços públicos de sociabilidade mudou o ambiente onde futuros casais se conheciam, tirando-os de lugares mais restritos, tutelados pela família, e trazendo-os para lugares de livre circulação, como festas, bares e lanchonetes, locais onde a decisão de um beijo ou um relacionamento não envolvia a família de nenhuma das duas partes.

De todo modo, ainda que alguns padrões de gênero tenham passado por mudanças, permanecia a forte preocupação em manter as moças no “caminho certo”, afastando-as de “más influências” que poderiam ser responsáveis por levá-las à perda da virgindade. Nesse sentido, a historiadora Carla Bassanezi afirma que os mais conservadores chegavam a criticar o cinema estadunidense, responsável por trazer para o Brasil “hábitos condenáveis para uma mulher”[1]. Tal afirmação evidencia mudanças de costumes das moças que tinham contato com a produção cinematográfica de Hollywood, bem como a existência de um debate sobre padrões de comportamentos ideais. Enquanto disputas sobre as questões morais vigentes se consolidavam, hábitos que estavam de acordo com um padrão visto no cinema norte-americano começavam a ganhar força, tais como beijos na boca e passeios de mãos dadas.

Cena do filme Juventude Transviada (Imagem: Reprodução)

Todas essas transformações na sociedade brasileira durante os anos 1950 estavam fortemente associadas a um ideal de progresso espelhado na apropriação de padrões de consumo de países tidos como superiores, os do chamado Primeiro Mundo. Nesse sentido, o cinema de Hollywood foi intensamente utilizado como ferramenta de propagação da cultura estadunidense. Este processo favoreceu a mudança de hábitos em nossa sociedade, que transformava seus costumes ao mesmo tempo em que lotava os cinemas para assistir a filmes que retratavam o chamado american way of life, difundido de maneira acelerada nos grandes centros urbanos do Brasil.

Na primeira metade do século XX, o hábito de ir ao cinema fazia parte da vida cotidiana do Rio de Janeiro. Havia salas, muito movimentadas, capazes de comportar um grande número de pessoas em várias regiões da cidade. Portanto, pode-se imaginar o poder de ação do cinema sobre a população. Nesse sentido, a sociedade conseguia enxergar de maneira mais clara nas ruas o que via nas telas de cinema. Tudo isso foi aproveitado pela imprensa, ao encontrar, nas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro, jovens com hábitos semelhantes aos dos personagens do filme “Juventude Transviada”, pelo jeito de se vestir, se portar, ou pelo consumo de drogas como álcool, cigarro e maconha.

Pinheiro Junior, repórter do jornal Última Hora, afirmou em seu livro de memórias que Samuel Wainer (editor-chefe deste jornal) gostava de publicar temas inspirados nos filmes em cartaz nos cinemas que, segundo ele, preparavam a cabeça da população para a abordagem do jornalista, gerando curiosidade e envolvendo o leitor de maneira mais significativa na leitura das reportagens . Foi o que aconteceu na segunda metade da década de 1950.

Após a estreia de uma sequência de filmes abordando a questão da delinquência juvenil, como O selvagem (1953), Sementes da violência (1956) e Juventude transviada (1956), jovens e adultos foram atraídos para os cinemas para assistirem a filmes que serviriam de base para a criação de um imaginário sobre uma juventude transgressora. Segundo a historiadora Lídia dos Santos, os filmes sustentavam novas práticas juvenis, construindo um imaginário do transvio, juntando ícones, símbolos e signos que constituem a expressão visual do jovem transviado[2].

Filme Sementes da violência (Imagem: Reprodução)

Quando estreia o filme estrelado por James Dean, o último da sequência de filmes sobre delinquência juvenil na década de 1950, debates sobre a temática do longa foram impulsionados. Juventude Transviada ocupou onze cinemas do Rio de Janeiro e contou com intensa campanha publicitária nos jornais, que apontavam o filme como “impressionantemente violento, chocantemente real e expressivamente humano”.

A partir do sucesso do filme, vários jornais e revistas da capital se voltaram para o problema da juventude na cidade do Rio de Janeiro, fazendo nascer, a partir de então, a ideia de uma “juventude transviada tropical”. Tal ideia passaria a ser reconhecida pelo olhar conservador das classes média e alta, que passaram a conhecer os hábitos noturnos de jovens da Zona Sul por meio das matérias publicadas na imprensa, agora muito mais preocupada em abordar questões relacionadas ao mundo jovem. Na semana de estreia do longa, um crítico traçou um paralelo entre os jovens da trama e os jovens da época. Ele afirmava: “vocês encontrarão [no filme] os tipos marcantes da juventude atual, uma juventude sem rumo, sem rumo praticamente porque teima em partir do nada e quer alcançar o impossível.”[3]

O filme, portanto, era visto no Brasil como uma metáfora da fronteira cinzenta entre juventude, perdição moral e criminalidade. A repercussão da obra na sociedade inspirava na imprensa comentários sobre a juventude como um todo, assim como a exposição da ideia de que os pais precisavam estar presentes no convívio com seus filhos e observar seus hábitos noturnos, para que eles não praticassem atos considerados desviantes ou marginais.

Nesse sentido, pouco tempo após a estreia do filme, o Última Hora designou o jovem repórter Pinheiro Junior a tarefa de passar cerca de um mês entre bares e boates de Copacabana para produzir algum material sobre os costumes dos jovens que frequentavam esses locais. Segundo o próprio repórter, a ideia surgiu quando um funcionário do jornal que morava em cima de um bar sempre repleto de jovens, manifestou curiosidade sobre os hábitos dos que frequentavam aqueles e outros lugares da Zona Sul. relacionando-os com o filme recém-estreado do ator James Dean. Em seu livro de memórias, o repórter afirma:

A nossa juventude transviada deve ser muito mais interessante. Isto é: muito mais transviada. Se os desencontros da moçada americana deram um filme tão falado, por que as loucuras dos nossos transviados não dariam também uma reportagem de repercussão?[4]

A partir desse momento, constrói-se na imprensa carioca um padrão ideal para o jovem, padrão que seria contraposto pela ideia de uma “juventude transviada”. Gerava-se um debate em torno de um modelo de mocidade adequado aos padrões morais vigentes, amplamente veiculado pela imprensa, e distante do transvio. Ao mesmo tempo, gerava-se um estigma para jovens com hábitos ditos “transviados”.

A partir disso, conclui-se que as reportagens que têm como objetivo explorar o submundo de uma “juventude transviada”, começam a mexer com o imaginário da população carioca, que passa a classificar jovens como transviados a partir do seu jeito de se vestir, seus hábitos noturnos, suas companhias ou os lugares que frequentam. Em 1958, a revista O Cruzeiro alertava:

Vocês, meninas e rapazes de blusa vermelha e blue jeans, tornaram essa cidade ainda mais desgraçada (…) Ali em Copacabana, na rua Raul Pompéia, nas mesinhas da calçada do Snack Bar, vocês instalaram um quartel-general, e pela noite adentro, atormentam os vizinhos com gritarias, ruídos de motonetas e escândalos. (…) Muitos e muitas de vocês, garotos e meninas de blusa rubra e calça blue jeans enganam seus pais e cabulam aulas para frequentar rodas de transviados.[5]

A partir de discursos veiculados nos jornais de grande circulação, foi construída uma ideia sobre determinados jovens que se adaptavam ao modelo da “juventude transviada” norte-americana. O uso de blue jeans, camisetas coloridas, lambretas e carros, assim como o consumo de cigarro, álcool e outras drogas, passavam a caracterizar uma “juventude transviada carioca”, que quando “nasce”, já se torna alvo de críticas. Logo, é possível afirmar que o cinema de Hollywood influenciou determinado estilo de vida na juventude dos grandes centros urbanos brasileiros que, após o lançamento do filme de James Dean, passou a ser caracterizado pela imprensa como o estilo da “juventude transviada”, que, na perspectiva das classes mais abastadas da cidade, correspondia a um problema evidente da vida noturna carioca, que deveria ser solucionado.

Portanto, a partir de então, nasceu a expressão “juventude transviada”, recorrente na memória daqueles que, no século passado, eram capazes de identificar os jovens ditos “transviados”, mesmo que esses indivíduos nunca tenham formado uma identidade em comum. Rapazes e moças brancos, de classe média alta, moradores dos bairros mais aristocráticos do Rio de Janeiro, passavam a ser identificados como jovens que estavam em um caminho diferente do esperado. O uso da expressão ficou famoso nos anos seguintes, movimentando discursos moralistas, ações policiais e articulações políticas contra os ditos transviados, gerando um grande embate na vida noturna carioca a partir dos anos 1950.

 

Notas:

[1] BASSANEZI, Carla. “Mulheres nos anos dourados”. In: DEL PRIORI, Mary (Org.); BASSANEZI, Carla (Coord. de textos). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 609.

 

Crédito da imagem destacada: Reprodução

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