Mentira e verdade na ditadura militar brasileira no passado e no presente: um diálogo com o pensamen
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Mentira e verdade na ditadura militar brasileira no passado e no presente: um diálogo com o pensamen

Atualizado: 15 de out. de 2020

 

“Conceitualmente, podemos chamar de verdade aquilo

que não podemos modificar.” – Hannah Arendt

Regimes ditatoriais, a exemplo da ditadura militar no Brasil, engendram um sem número de mentiras sobre as quais se sustentam. A mentira lhes é peculiar. Não que regimes democráticos não estejam sujeitos a tal, mas ditaduras e regimes autoritários foram marcados por acontecimentos atrozes que não vieram à tona ou foram distorcidos, forjando versões que buscavam fabricar mentiras com status de verdade.

Correntes de pensamento essencialmente apegadas a relativismos costumam questionar a busca pela verdade, alegando que a mesma pode se dar a partir de muitas perspectivas e pontos de vista; logo, cada um pode ter a sua verdade e, sendo assim, tudo é verdade, mas também tudo não o é.

Em se tratando de crimes de violações dos direitos humanos, tão presentes em ditaduras, é comum disputas de memória em torno do que lembrar, como lembrar e de quem lembrar. Muitas memórias são formadas por fatos históricos presenciados por testemunhas, outros herdam essas memórias de terceiros. É válido afirmar, entretanto, que ambas estão ideológica e culturalmente mediadas.[1]

O que quero tratar aqui em relação à ditadura militar brasileira, no entanto, não diz respeito tão somente às disputas de memórias (elas estão presentes de algum modo na discussão em tela, mas o ponto a ser problematizado é outro); o que norteará a discussão é a verdade factual e a mentira organizada, dimensões presentes no período ditatorial e responsáveis por embates ainda hoje visíveis na sociedade.

Verdade factual e mentira organizada

À primeira vista, pode parecer presunçoso discutir o que é verdade em relação à ditadura militar brasileira, uma vez que o historiador não fabrica verdades ou apresenta a verdade como algo pronto, inquestionável, retirado do passado de forma bruta e hoje apresentado à sociedade. Sabemos dos caminhos teóricos e metodológicos que levam à inteligibilidade de fatos passados no campo da História e não convém discuti-los.

O que pretendo problematizar está no âmbito das disputas em torno do monopólio da verdade e como essa se encontra ameaçada e assediada pelo poder em contextos ditatoriais. Ou seja, quando a mentira deliberada ameaça a verdade factual, buscando incidir na escrita da história, nas disputas de memórias e na própria construção do passado e do futuro.

As questões discutidas a seguir buscam inspiração nas reflexões feitas pela filósofa Hannah Arendt em seu ensaio “Verdade e Política”, publicado na obra Entre o passado e o futuro[2]. Arendt escreveu este ensaio por conta do que ela chamara de “pseudo controvérsias” relacionadas à sua obra Eichmann in Jerusalem[3].

Duas noções apresentadas por Arendt nortearão as questões que tentarei problematizar neste texto: verdade factual e mentira organizada. A autora as reflete discutindo também noções próximas, mas que às vezes são confundidas, como opinião ou o que ela denomina como verdade racional e verdade filosófica.

Se a verdade factual diz respeito, evidentemente, a fatos, estabelecidos por testemunhas e dependentes de comprovação, o seu oposto, segundo Arendt, não seria o erro, a ilusão ou a opinião, mas a falsidade deliberada, a mentira.[4]

Por que recorrer à Hannah Arendt para tratar de temas que, em um primeiro momento, nos parecem óbvios? Quando a disputa pelo sentido da verdade e pela representação do passado incide de modo violento no presente e em sua relação com a ditadura militar no Brasil, a reflexão que Arendt construiu algumas décadas atrás toca em pontos essenciais da própria narrativa histórica e de como ela deve ser construída, como também atenta para a importância de fatos e eventos que se veem ameaçados em momentos de crise, e a mentira organizada sobre os mesmos corre o risco de ser utilizada como combustível para a construção de projetos políticos que representam um perigo para a democracia. Creio ser desnecessário apresentar análise de conjuntura, aqui e alhures, para fazer o leitor perceber que existem perigos iminentes. Desejei fazer apenas um adendo. Passemos, então, ao próximo ponto.

Um passado que não passa

A ditadura militar brasileira se inscreve na ideia do historiador francês Henry Rousso de un passé qui ne passe pas.[5] Eventos traumáticos possuem um caráter “interminável”, haja vista sua constante reelaboração através de memórias e mesmo as disputas em torno do monopólio da verdade sobre eventos e sujeitos que marcaram aquele período. Ainda que mais de cinco décadas nos distanciem do golpe de 1964 e outras três nos distanciem do fim da ditadura, a disputa por esse monopólio não cessa. Setores ligados à ditadura ainda hoje sustentam versões nada verossímeis sobre eventos passados; omitem informações, rechaçam evidências e forjam reconstruções do passado. Por outro lado, sujeitos que outrora resistiram ou se opuseram à ditadura atuam no sentido não apenas de recuperar a verdade factual do passado a partir de evidências documentais e/ou orais, como fazem isso buscando desconstruir mentiras organizadas produzidas desde a ditadura militar.

Sabemos dos riscos dos relativismos quando estas questões adentram na arena de disputas políticas. Daí porque a reflexão de Hannah Arendt parece-me oportuna, pois houve quem defendesse – e há quem defenda – que somente um regime semelhante à ditadura militar seria o remédio para a crise na qual o Brasil atualmente se encontra. Temos encontrado alguns discursos cujos impasses de versões parecem se resumir a uma guerra de opiniões, como, por exemplo, quem defende a tortura e a violência política da ditadura alegando tratar-se de sua opinião. “Os terroristas e demais subversivos fizeram por merecer, tratava-se de uma guerra com excessos de ambos os lados. Às favas o que dizem as evidências históricas. Essa é a minha opinião”. Isso me parece deveras ilustrativo de certos posicionamentos que, aos montes, se impõem nos debates mais recentes.

O problema reside no fato de que não se trata a questão, muitas vezes, levando-se em conta a verdade factual. Reduzem-se mentiras organizadas ao nível da opinião. Logo, as evidências pouco importam, pois a opinião as transcende. Os fatos, que segundo Hannah Arendt, deveriam informar opiniões, parecem assumir lógica inversa e perigosa. E não custa lembrar que são muitas as mentiras organizadas produzidas pela ditadura, servindo de repertório argumentativo para moldar opiniões – igualmente perigosas – sobre aquele período.

Em determinada altura de sua reflexão, Arendt defende que a verdade é odiada pelos tiranos, pois se trata de algo que não se pode monopolizar e que estão além de acordos e consentimentos. Opiniões inoportunas podem ser rejeitadas, mas fatos indesejáveis, contudo, possuem enfurecedora pertinácia e nada pode destruí-los a não ser mentiras cabais.[6]

Como bem sabemos, a verdade factual representou um verdadeiro incômodo para a ditadura e seus simpatizantes. A prática da censura, a figura do desaparecido e a manipulação e ocultamento de informações foram recorrentes durantes aqueles anos. No tempo presente, remexer no passado é algo que igualmente incomoda a setores das Forças Armadas e sujeitos ligados de algum modo à ditadura. São questões que refletem as tentativas de retirar da cena pública a verdade factual, ainda que para isso seja preciso recorrer à mentira organizada, às mentiras cabais. “Não houve tortura”; “não existem documentos”; “não há corpos desaparecidos”; “foram apenas excessos”. O repertório argumentativo que constitui a mentira organizada da ditadura é extenso. Citei aqui, apenas, aqueles que me parecem mais usuais.

Os riscos de reduzir a complexidade da busca pela verdade aos âmbitos da opinião ou mera interpretação são reais. Entretanto, Hannah Arendt chama a atenção para a existência da matéria factual, que não pode ser apagada pelas linhas divisórias existentes entre fato, opinião e interpretação, e tampouco o historiador pode manipulá-la a seu bel-prazer.[7]

Além disso, a verdade factual é ameaçada por silêncios deliberados, constitutivos da mentira organizada, que buscam incidir na construção da representação do passado. São silêncios também responsáveis pela constituição das memórias sobre os anos da ditadura militar no Brasil que envolvem, de maneira resumida, as práticas de violência cometidas pelo Estado ditatorial contra a população e direcionadas para grupos específicos, como os indígenas; os responsáveis pelo financiamento e pela construção das estruturas de informação e repressão; e o silêncio sobre o apoio de setores da sociedade brasileira ao regime.[8]

Justiça de transição

A evidenciação da verdade factual representa ponto essencial à chamada Justiça de Transição[9], pois o direito à verdade é fundamental não apenas para esclarecer o paradeiro de desaparecidos políticos, circunstâncias das mortes e agentes da ditadura envolvidos, mas também para a própria construção da democracia, da memória e da história.

Vale chamar a atenção para outro aspecto discutido por Hannah Arendt, que diz respeito à verdade factual que pode ter sua discussão pública transformada em tabu pela sociedade. Exemplificando seu raciocínio, Arendt coloca que: “(…) Mesmo na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stálin, era mais perigoso falar de campos de concentração e extermínio, cuja existência não era nenhum segredo, que emitir concepções “heréticas” acerca de antissemitismo, racismo e comunismo (…)”.[10]

Ainda que seja difícil dimensionar, me parece evidente a existência de tabus relativos a temas ligados à ditadura, como o já mencionado apoio de setores da sociedade, por mais que seja do conhecimento de alguns. Nos meios políticos, sujeitos outrora ligados à ditadura, como José Sarney, posam livremente como defensores da democracia desde sempre sem serem questionados por seus pares. Assim como também a discussão pública sobre a punição de notórios torturadores da ditadura representa, para alguns, um tabu, um tema incômodo. Por fim, vale mencionar um último exemplo, que diz respeito ao acesso aos documentos das Forças Armadas relativos à ditadura. Sabe-se de sua existência, mas o acesso continua vetado, o que igualmente indica uma estratégia de impedimento para o conhecimento da verdade factual e sua discussão no âmbito público. Sua liberação continua representando um tabu, e esse impedimento contou com a conivência do próprio Estado democrático.[11]

A busca pela verdade no Brasil relativa a esse passado mobilizou e mobiliza muitas frentes, sendo um ato claro de oposição à ditadura, no passado e no presente. Sua importância para a construção da democracia e para a reparação às violações aos direitos humanos é fundamental. Logo, o que está em jogo não é uma questão de opinião ou a simples construção de múltiplas interpretações sobre o passado ditatorial, mas o resgate da verdade factual a fim de descortinar, romper silêncios e permitir que a matéria factual não seja apagada pelos assédios do poder.

Como já colocara Hannah Arendt, a verdade incomoda os tiranos, que a odeiam. Após o fim da ditadura e sob um falso clima de reconciliação da sociedade e de página virada, os militares e seus aliados civis se viram diante de um trabalho documental, produzido a partir de fontes oficiais, que rompia silêncios e contribuía para a desconstrução de uma mentira organizada. Brasil: Nunca Mais , publicado em 1985, não se apresentava como um trabalho opinativo ou mera interpretação do passado. Trazia uma verdade factual cujos militares não mais podiam censurar.

Brasil: nunca mais

A disputa pelo monopólio da verdade transcende o período da ditadura militar; dá-se constantemente. A repercussão do Brasil Nunca: Mais resultou em ação por parte dos militares, que decidiram produzir um livro que desdissesse tudo o que esse havia apresentado. Para ser mais preciso, o projeto começou a ser gestado no Quartel-General do Exército em Brasília, sendo o general Leônidas Pires Gonçalves o idealizador e responsável pela produção do que viria a ser chamado de Orvil, a palavra livro escrita de trás para frente.[12]

Entendo que Orvil se enquadra na produção de uma mentira organizada, atuando deliberadamente na manipulação de informações e na ocultação de outras, a fim de dar sustentação à versão da ditadura para acontecimentos passados.[13]

O livro por longo tempo esteve inacessível. Em 1988, Leônidas Pires Gonçalves procurara o então presidente José Sarney, única pessoa que poderia autorizar a publicação de Orvil. Sarney, no entanto, o considerou desnecessário e sua publicação acabou sendo vetada.[14] Calcula-se que apenas 15 cópias do documento foram feitas, que ficaram inacessíveis por quase 20 anos.[15] Atualmente, é possível encontrar uma cópia do projeto para download no site de direita “A verdade sufocada”.[16]

Outras iniciativas semelhantes foram feitas pelos militares no âmbito da produção de uma mentira organizada. Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi do II Exército, em São Paulo, torturador, escreveu o livro A verdade sufocada, publicado em 2006. À época do lançamento, Ustra justificou que “(…) procuro desmentir e provar, com fatos e dados irrefutáveis, mitos e inverdades criados pela esquerda, além de defender a atuação das Forças Armadas no combate ao terrorismo”.[17] Agnaldo Del Nero Augusto publicou, em 2001, A grande mentira, pela Editora do Exército. A sinopse do livro traz que são descritas “(…) de forma objetiva e completa, as tentativas de tomada do poder pelos comunistas (…) esclarecendo e desmistificando fatos e verdades do discurso das esquerdas brasileiras”.[18] Por fim, vale um último exemplo, de notório conhecimento e bastante citado nos espectros da direita brasileira, que é o site “Terrorismo Nunca Mais” [19], o Ternuma, igualmente incumbido de disseminar conteúdos que buscam retratar a “verdade” no âmbito dos defensores da ditadura militar, responsáveis pela constituição de uma mentira organizada a respeito daquele período.

Mencionei anteriormente Brasil: Nunca Mais como projeto de resgate da verdade factual, responsável por trazer à tona os crimes praticados pela ditadura. Neste sentido, convém destacar a atuação da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP) que, desde a primeira metade dos anos 1970, vem buscando evidenciar a verdade factual sobre mortos e desparecidos, a despeito das negativas sobre pistas e documentos que possam levar aos esclarecimentos, feitas tanto na ditadura como em período democrático.

A CFMDP fora responsável por produzir um dossiê relatando de maneira sucinta casos de mortos e desaparecidos, que chegou a ser entregue ao então senador Teotônio Vilela logo após a aprovação da Lei de Anistia. Vilela fora presidente da Comissão Mista Sobre a Anistia, no Congresso Nacional.[20] Esse dossiê serviu de base para uma publicação posterior, intitulada Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964, publicado em 1995, com prefácio escrito por Dom Paulo Evaristo Arns.[21] Com a liberação dos arquivos de alguns DOPS estaduais no início dos anos 1990, foi possível incorporar ao dossiê fotografias de mortos, muitas das quais evidenciam sinais claros de tortura e outras violências físicas[22], colocando em xeque a “verdade” da ditadura ou, em melhores termos, a mentira organizada de que a tortura fora obra do excesso de poucos ou que sujeitos morreram em decorrência de “suicídio” e “troca de tiros” com as forças policiais, sustentada por laudos médicos falsos.[23]

No âmbito do Estado brasileiro, que tardiamente apresentou à sociedade sua primeira versão oficial sobre os mortos e desaparecidos, há que se destacar a publicação do livro-relatório Direito à memória e à verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos[24], publicado em 2007 com forte reação contrária de setores das Forças Armadas brasileiras. Esse trabalho resultou das pesquisas realizadas pela Comissão Especial ao longo de onze anos de trabalho.

Comissão Nacional da Verdade

Por fim, e um dos pontos que tanta polêmica gerou quando anunciado, diz respeito à criação da Comissão Nacional da Verdade. Grupos de direita e setores das Forças Armadas acusaram a CNV de ser uma comissão da mentira ou, então, comissão de uma meia verdade, uma vez que apenas as violências produzidas pelo Estado ditatorial seriam investigadas, e não as que se deram a partir das ações de grupos armados no campo das esquerdas.

Seria possível uma comissão, cujo mandato durou pouco mais de dois anos, apresentar à sociedade brasileira a verdade sobre o período da ditadura militar? Havia o risco, como acusaram, de a comissão produzir uma meia verdade ou uma mentira? Como bem sabemos, o objetivo da CNV voltou-se para a recuperação da verdade factual, tal qual nos apresenta Hannah Arendt, no que diz respeito às violações de direitos humanos.

Creio ser desnecessário, haja vista a natureza deste texto, fazer maiores comentários sobre a atuação da CNV, suas limitações, suas tensões e resultados. Interessa-me chamar atenção para o seu papel como instrumento de promoção da verdade factual a partir do Estado, o que representa algo importante, haja vista que a verdade factual no Brasil relacionada à ditadura começou a ser promovida apesar do Estado, como vimos com Brasil: Nunca Mais, e diferentemente do que ocorrera na Argentina, por exemplo, em que a sua Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) deu-se no âmbito estatal.

Como historiadores, sabemos das limitações de comissões deste tipo que costumam apresentar narrativas unívocas. Entretanto, seria desonesto do ponto de vista ético usar tal argumentação para desencorajar ações nesse sentido, pois sabemos de sua importância política e da necessidade da verdade contra o esquecimento. Pois a verdade, se é ameaçada em regimes totalitários como advertira Hannah Arendt, também pode correr riscos em regimes democráticos quando não há discussão pública e tampouco iniciativas para fazê-la. O Brasil, em certo período democrático, viveu esses riscos com um Estado inerte que agiu politicamente para deixar a verdade factual distante de seu lugar que é o espaço público[25].

A CNV fora alvo de críticas por não conter entre seus membros nenhum historiador[26]. Mas, caberia a um historiador integrar tal comissão[27], uma vez que não nos concerne dizer o que é “a” verdade? Certamente, a questão é mais complexa e não se dá nesse âmbito. O historiador pode, sim, contribuir para a construção de representações do passado a partir de evidências factuais, ajudando a desconstruir mentiras organizadas. Como dissera Hannah Arendt, não se trata de modificar a matéria factual a nosso bel prazer; ela não pode ser desfeita. A lei que criou a CNV falava em se efetivar o direito à “verdade histórica”[28], e isso causou certa celeuma, pois, soou presunçoso ou, no campo da História, demasiado positivista se se pensa na verdade com certo objetivismo.

Entendo que a questão, entretanto, refere-se a um oportuno exemplo colocado por Hannah Arendt quando narra em seu ensaio que Clemenceau, pouco antes de sua morte, conversava com um representante da República de Weimar sobre a Segunda Guerra Mundial e teria interrogado sobre o que pensariam os historiadores do futuro sobre este tema espinhoso e controverso, o qual respondera: “Isso eu não sei. Mas tenho certeza de que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha”.[29] Arendt também afirma que por mais que admitamos que cada geração tenha o direito de escrever sua própria história, não devemos admitir mais nada além do fato de ela poder rearranjar os fatos de acordo com sua própria perspectiva. Contudo, não devemos permitir que se toque na própria matéria factual.[30]

Entendo que o que está em jogo não é apenas uma disputa de versões, da qual o historiador não deve intervir como dono do tribunal da verdade, mas, sim, uma disputa de fatos, na qual a matéria factual deve ser preservada contra eventuais mentiras organizadas. Creio que a atuação da CNV deve ser pensada nesses termos, a despeito da complexidade que é propor uma narrativa oficial e dos riscos ideológicos que tal empreitada pode vir a enfrentar.

Para concluir, entendo que as reflexões feitas por Hannah Arendt são importantes não apenas para a construção da narrativa histórica, como também para problematizarmos os temas da verdade factual e da mentira organizada no âmbito de regimes autoritários e ditatoriais, sem nos rendermos a relativismos perigosos, tampouco nos paralisarmos com receio de sermos tachados como positivistas[31].

“(…) nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”. A terceira tese de Walter Benjamin em “Sobre o conceito da História”[32] me parece oportuna para encerrar esta reflexão. Tenho considerado desde o início sobre os perigos que a verdade factual corre, especialmente em determinadas conjunturas. Verdades factuais relacionadas às violações aos direitos humanos correram e correm o risco de se perderem na história, pois há quem queira emudecê-las, apagar seus rastros, sufocá-las com mentiras organizadas ou, então, reduzi-las a uma batalha de versões e interpretações. Em uma sociedade que ainda pouco conhece sobre a ditadura militar[33], cabe manter-se alerta.

João Teófilo é historiador.

 

Notas:

[1] PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & abusos da História Oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 106.

[2] Título original Between Past and Future, publicada originalmente em 1961. Outros dois ensaios foram acrescentados à obra em 1968.

[3] Título original Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, publicada originalmente em 1963.

[4] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 2ª Ed. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 308.

[5] ROUSSO, Henry. Le Syndrome de Vichy: de 1944 à nos jours. 2ªed. Paris: Seuil, 1990.

[6] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 2ª Ed. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1988, pp. 298-299.

[7] ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 296.

[8] Para uma discussão mais aprofundada sobre estes silêncios, consultar: STARLING, Heloisa. “Silêncios da ditadura”. Revista Maracanan, n. 12. Rio de Janeiro: julho 2015, pp. 37-46. Sugiro, ainda, para uma discussão específica a respeito dos indígenas durante a ditadura, o recente trabalho do jornalista Rubens Valente: Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

[9] Para uma melhor compreensão sobre os entendimentos em torno desse termo, consultar: ELSTER, Jon. Closing the books: transitional justice in historical perspective. New York: Cambridge University, 2004.

[10] ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 293.

[11] Sobre a ocultação dos arquivos da ditadura, consultar o trabalho do jornalista Lucas Figueiredo: Lugar nenhum: militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[12] Para uma discussão mais aprofundada sobre os livros Brasil: Nunca Mais e Orvil, consultar o trabalho do jornalista Lucas Figueiredo: Olho por olho: os livros secretos da ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2009.

[13] Cf. Idem.

[14] Cf. Idem, p. 119.

[15] Cf. Idem, p. 11.

[20] A título de informação, vale indicar publicação anterior, do Comitê Brasileiro de Anistia do Rio de Janeiro, organizado por Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa, publicado em 1979. O livro traz artigos, entrevistas, depoimentos e fotografias: Desaparecidos Políticos: prisões, sequestros, assassinatos. Rio de Janeiro: Edições Opção, 1979.

[21] COMISSÃO de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1995.

[22] Cf. Anexo I do Dossiê. Op. Cit. pp. 417-426.

[23] Sobre denúncias contra médicos que assinaram falsas versões para encobrir os crimes da ditadura, sugiro a leitura da reportagem feita pela jornalista Luiza Villaméa para a revista Brasileiros: “Os legistas e a engrenagem da tortura”. Disponível em: Revista Brasileiros. Acesso: 05/07/2016.

[24] BRASIL Secretaria Especial de Direitos Humanos. Direito à memória e à verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.

[25] Tenho pesquisado esta e outras questões para a minha tese de doutorado, a ser defendida no início de 2020 no PPGHIS da UFMG.

[26] Ver posição da Associação Nacional de História (Anpuh) sobre a ausência dos historiadores na Comissão da Verdade. Disponível em: Anpuh. Acesso: 09/06/2015.

[27] As equipes de pesquisa, entretanto, contaram com a presença de historiadores.

[28] Creio que esta expressão fora utilizada para marcar posicionamento que deixasse claro não tratar-se da produção de uma verdade jurídica com consequências persecutórias, uma vez que a CNV só conseguiu ser aprovada mediante acordos que garantiram a não revisão da Lei de Anistia e a não punição dos torturadores.

[29] ARENDT, Hannah. Op. Cit. p.296.

[30] Idem.

[31] Oportuno consultar discussão feita por: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. História, memória e as disputas pela representação do passado recente. Patrimônio e Memória, v.9, n. 1. São Paulo: Unesp: janeiro-junho, 2013.

[32] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Vol. I. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 242.

[33] Sobre pesquisas feitas em 2010 a respeito do conhecimento de setores da sociedade brasileira sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar, consultar: MOTTA, R. P. S.; CERQUEIRA, A. S. L. G. “Memória e esquecimento: o regime militar segundo pesquisas de opinião”. In: QUADRAT, Samantha; ROLLEMBERG, Denise. (Orgs.). História e memória das ditaduras do século XX. v. 1. Rio de Janeiro: FGV, 2015, p. 157-183. Para informações mais atuais, consultar resultados a partir de pesquisa feita pela Rede Globo em 2017, em virtude da novela “Os dias eram assim”, que teve como pano de fundo a ditadura militar. A emissora constatou que o brasileiro médio desconhece fatos recentes da vida do país. Disponível em: Notícias da TV. Acesso: 06/07/2017.

 

Como citar este artigo:

TEOFILO, João. Mentira e verdade na ditadura militar brasileira no passado e no presente: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. In: História da Ditadura – novas perspectivas. Disponível em: http://historiadaditadura.com.br/destaque/as-ditaduras-como-objeto-de-estudo. Publicado em: 17 Out. 2017. Acesso: [informar data].

 

Imagem de destaque: Cartaz com dissidentes políticos. Arquivo Público do Estado de São Paulo, Cartaz Terroristas 20-C-2 1493 (1976).

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