Mitos da Ditadura: eleições e democracia (Parte 3) – A escolha do último general
top of page
  • Foto do escritorHistória da Ditadura

Mitos da Ditadura: eleições e democracia (Parte 3) – A escolha do último general

Atualizado: 15 de out. de 2020

 

Nas primeiras colunas desta seção a gente falou sobre muitos dos aspectos relacionados aos processos eleitorais que, com certa regularidade, aconteciam durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Além de explicar alguns pontos específicos da história daqueles anos, nosso objetivo foi desconstruir um dos mais propagados Mitos da Ditadura: o argumento de que não se pode falar em ditadura no Brasil por causa da realização de eleições. Vimos que as eleições indiretas para a presidência da República eram meros instrumentos para garantir um “verniz democrático” ao regime ditatorial que comandava o país.

Falamos sobre as eleições dos generais Castelo Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969) e sobre a escolha da “Junta Militar”, que governaria o país brevemente. Também explicamos os processos que levaram os generais Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1978) a ocupar o cargo de presidente da República. Hoje, vamos explicar como um ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), o general João Batista Figueiredo (1979-1985), seria alçado ao poder. Ele seria o último general a comandar o país; o último presidente do mais recente ciclo ditatorial de nossa história.

Presidente da República João Figueiredo no clássico desfile no Rolls-Royce ao lado de Aureliano Chaves seu vice. Foto: Senado Federal (Creative Commons)


O último general

Quando o general João Baptista Figueiredo deixou a presidência da República, o país não tinha muito a comemorar. Se, entre 1983 e 1985, a política de estímulo às exportações havia trazido resultados positivos à balança comercial do país, o governo Figueiredo saía de cena marcado pelo alto índice de desemprego, pelo pífio desempenho do Produto Interno Bruto (PIB) e com uma inflação média anual de 200% entre 1984 e 1985. Para além desses dados, o país enfrentava um aumento exponencial da violência, os precários índices de desenvolvimento social eram alarmantes e, após 21 anos de “Revolução”, a sociedade vivia em um ambiente de frustração, desânimo e ressentimento.

A ditadura fracassara; e, particularmente, o governo Figueiredo seria o ato final da melancólica trajetória política dos militares no poder. Os efeitos nocivos do reforço do autoritarismo, da militarização das forças de segurança pública e da incapacidade coletiva de debater abertamente os crimes cometidos pelos agentes do Estado, marcariam o país que, agora, procurava reorganizar sua vida política.

Ao mesmo tempo, o período em que esteve à frente do Palácio do Planalto fora, inegavelmente, tanto no plano interno, como no cenário internacional, marcado por transformações aceleradas e mudanças bruscas. Os anos Figueiredo representaram a etapa final da chamada “transição” da ditadura para a democracia, com inúmeras medidas voltadas para a abertura política. Ainda nos primeiros meses de sua presidência, por exemplo, o general Figueiredo faria aprovar no Congresso a lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979: a lei de anistia.

Um conjunto de outras medidas, como a reforma partidária, que autorizava a livre organização de Partidos Políticos, trariam novos desafios para a “arquitetura institucional” do jogo político. Nas eleições gerais de 1982, por exemplo, o fracasso político da ditadura e o desgaste dos militares ficariam evidentes. O (P)MDB elegeria inúmeros governadores por todo o país, vencendo inclusive, nos colégios eleitorais de São Paulo (Franco Montoro) e Minas Gerais (Tancredo Neves). Leonel Brizola, que voltaria ao país depois de 15 anos de exílio, venceria as eleições para o governo do Rio de Janeiro, derrotando o candidato do PDS (antiga ARENA), Moreira Franco.

A vitória da oposição despertaria a fúria dos partidários da ditadura e de militares radicais que, por meio de atentados terroristas, procuravam inviabilizar a abertura. No governo Figueiredo, esses indivíduos seriam responsáveis pela realização de dezenas de atentados que provocariam a morte de cidadãos brasileiros. Dentre eles, a carta bomba que explodiria na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro, no dia 27 de agosto de 1980, matando Lyda Monteiro Silva e, o atentado do Riocentro, na noite de 30 de abril de 1981. Os dois atentados se tornariam episódios simbólicos dessa etapa da história.

Hoje, entretanto, não vamos apresentar a história do governo de João Baptista Figueiredo. Nosso objetivo é explicar de que forma o general carioca se tornaria o quinto militar a ocupar a presidência da República desde o golpe de abril de 1964. Como o general Ernesto Geisel conseguiu impor o nome do general Figueiredo em uma sucessão presidencial marcada por disputas políticas no interior da cúpula militar.

Logotipo do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI). Foto: Governo da República Federativa do Brasil (Creative Commons)


A vitória de Geisel seria uma derrota da “linha dura”?

Para alguns intelectuais brasileiros, o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) havia vencido a queda de braço contra os militares radicais identificados com a linha dura. Em 1979, inúmeros recursos autoritários já não se encontram à disposição da ditadura: o direito de Habeas-Corpus havia sido restaurado, a censura prévia fora suspensa, o temido Ato Institucional n° 5 perdera a validade e, em breve, os exilados políticos começariam a voltar ao país, com a lei de anistia.

É válido lembrar que instrumentos arbitrários como a Lei de Segurança Nacional e a Lei de Imprensa, por exemplo, ainda faziam parte dos recursos legais autoritários à disposição da ditadura; ao mesmo tempo, os efeitos provocados pela legislação autoritária, que desde 1964 havia sido adotada pelos militares, não poderiam ser apreciados pela justiça: ainda não seria possível contestar a perseguição política sofrida nos anos anteriores.

De todo modo, em resumo, para muitos analistas, Geisel havia saído vitorioso em seu projeto de abertura política: o país caminhava para a redemocratização. E um dos símbolos dessa vitória seria a escolha de seu sucessor: o general João Batista Figueiredo. E por que a escolha de Figueiredo pode ser identificada com uma vitória sobre a “linha dura” e com a consagração do projeto de abertura política formulado pelo general Geisel? Em poucas palavras: porque a sucessão presidencial que levaria o general Figueiredo ao comando do país foi, sobretudo, o desfecho de uma crise militar.

Vamos tentar explicar.

Nos anos finais do governo Geisel, os militares radicais, que eram contra a abertura política, seriam identificados como representantes da chamada “linha dura”. Esse agrupamento era formado por oficiais que se opunham ao fim da ditadura e que desejavam a permanência dos militares no poder e o fortalecimento dos instrumentos repressivos. Naquele momento, o então Ministro do Exército, o general Sílvio Frota, era o principal representante desse grupo de militares radicais.

Sílvio Frota havia sido nomeado Chefe do Estado-Maior do Exército no início do governo Geisel. Em maio de 1974, o general Frota se tornaria Ministro do Exército. Desde que assumiu o cargo, com muitas ambições políticas, o general Sílvio Frota, incentivado pela “linha dura”, começou uma “campanha” pessoal para se tornar o próximo presidente da República. O general Ernesto Geisel, em discurso pronunciado em 1976, havia afirmado que se reservava o direito de escolher seu sucessor; mas, o Silvio Frota e a “linha dura” tinham outros planos.

Diante do embate, o general Ernesto Geisel, após se certificar que contava com apoio da maioria das lideranças militares, decidiu demitir o ministro do Exército, o general Sílvio Frota. No dia 12 de outubro de 1977, feriado nacional, Geisel convocou o ministro ao Palácio do Planalto e comunicou seu afastamento. A escolha da data e a estratégia militar representaram verdadeira “operação de inteligência”, para evitar possíveis revoltas nos agrupamentos radicais. O general Sílvio Frota seria isolado e, sem apoios suficientes, veria suas pretensões políticas serem afundadas.

Com o enfraquecimento da “linha dura” e o afastamento do general Frota, Geisel iniciou, no final de 1977, a segunda parte de seu plano de sucessão: convencer o general João Figueiredo a aceitar a indicação. Para o general Geisel e a cúpula militar no Palácio do Planalto, Figueiredo seria o nome mais adequado para dar continuidade ao projeto de abertura política.

O general Figueiredo, que desde os primeiros momentos havia apoiado o golpe militar de 1964, possuía uma extensa carreira “política”: desde o governo Juscelino Kubistchek, o general Figueiredo ocupava posições importante na cúpula do Estado. Em 1958, ao lado do general Golbery do Couto e Silva, Figueiredo ocuparia posição no Estado-Maior do Exército. Já no governo Jânio Quadros, se tornaria chefe do Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (SFICI). Com o golpe de 1964, passaria a chefiar a agência do Serviço Nacional de Informações (SNI), no Rio de Janeiro.

Em 1969, assumiria o comando do Estado-Maior do III Exército e, em seguida, seria nomeado chefe do Gabinete Militar no governo do general Emílio Médici. Com a chegada de Geisel à presidência da República, o general Figueiredo assumiria a chefia do Serviço Nacional de Informações (SNI). No final de 1977, em um encontro em Brasília, o general Geisel apresentaria ao general João Batista Figueiredo o convite para ser o próximo presidente da República. Alguns meses depois, já em 1978, o governo anuncia a “candidatura” do general Figueiredo às eleições presidenciais que ocorreriam naquele ano.

Presidente João Figueiredo sobe a rampa do Congresso Nacional durante cerimônia de posse ao lado de Aureliano Chaves seu vice. Foto: Senado Federal (Creative Commons)


As eleições

De fato, assim como ocorrerá com os demais generais que ocuparam a presidência da República ao longo da ditadura, Figueiredo seria eleito pelo Congresso Nacional; entretanto, como temos demonstrado, essas eleições eram mera formalidade para atribuir um “verniz democrático” a um sistema autoritário. Nas eleições de outubro de 1978, a ARENA apresentaria a chapa formada pelo general João Baptista Figueiredo e por Aureliano Chaves, para presidente e vice-presidente, respectivamente. Do lado do MDB, surgia uma novidade: o partido apresentava como candidato à presidência o general Euler Bentes Monteiro, em uma chapa que ainda contava com o senador Paulo Brossard.

O resultado das eleições, no entanto, não trouxe nenhuma surpresa: a escolha de Geisel seria consagrada com 355 votos, contra os 226 votos que seriam atribuídos aos candidatos do MDB. O general João Figueiredo assumiria a presidência no dia 15 de março de 1979 para um longo e melancólico mandato de seis anos. Se a indicação de Figueiredo havia sido uma vitória de Geisel sob a “linha dura”, seu governo demonstraria que as relações entre as forças políticas nacionais são imensamente mais complexas dos que a mera atribuição de rótulos.

O novo governo seria visto no meio militar como uma espécie de “ponte” entre a chamada “linha dura” e os grupos “castelistas”. O discurso de posse e, as primeiras medidas, como a nomeação do Ministério, indicariam os traços de continuidade no projeto de abertura política e, sobretudo, na condução da política econômica.

O novo ocupante do Palácio do Planalto seria o último militar a “vencer” eleições para a presidência da República. A próxima eleição, apesar da mobilização popular, ainda seria indireta. O povo, só voltaria a escolher o presidente da República a partir de 1989. O mito de que a realização eleições seria atributo suficiente para a existência de um regime democrático não se sustenta. Entre 1964 e 1985, os generais presidentes seriam, de fato, eleitos pelo Congresso Nacional. Eleitos em uma ditadura. Eleitos em “escolhas” que aconteciam bem longe da vontade soberana popular.

Pedro Teixeirense é historiador e editor do site História da Ditadura.

 

Bibliografia:

Alzira Alves de Abreu e Israel Beloch (Org.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

Thomas Skidmore. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Hugo Abreu. O outro lado do poder. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.

Sylvio Frota. Ideais traídos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

 

Para saber mais:

Márcio Moreira Alves e Artur Baptista. As eleições de 1978 no Brasil. Revista Crítica de Ciências Sociais, 3, Dezembro, 1979. pp. 29-52.

Celina D’Araújo e Celso Castro (Org.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997. p.205

Celina D’Araújo, Gláucio Soares e Celso Castro (Org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

Carlos Fico. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado “perdão dos torturadores. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n. 4, p. 318-332, jul./dez. 2010.

Pedro Teixeirense. O que resta da ditadura, o que havia de nós: história e memória nos mecanismos de justiça de transição no Brasil. Revista Cantareira. Dossiê: Os legados das ditaduras civis-militares. 20ª Edição jan-jun, 2014.

 

Crédito da imagem de destaque: Posse do presidente João Figueiredo em 15 de março de 1979, em sessão conjunta do Congresso Nacional, presidida pelo Senador Luís Viana. Foto: Senado Federal (Creative Commons)

82 visualizações

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page