MST, o objeto enlouquecedor do autoritarismo brasileiro
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  • Foto do escritorAlberto Rafael Ribeiro Mendes

MST, o objeto enlouquecedor do autoritarismo brasileiro

Atualizado: 9 de mar. de 2022

Em matéria publicada pelo portal Brasil 247, de 19 de novembro de 2021, lê-se o seguinte: Governo Caiado monta centro de espionagem de movimentos sociais, especialmente do MST.

Segundo o portal, a inciativa do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, para tentar espionar os movimentos sociais, foi encaminhada ao Comando Regional de Polícia Militar, contendo objetivos como “localizar e mapear, por meio de coordenadas geográficas, os assentamentos/acampamentos inseridos na área da respectiva Unidade”, e “pormenorizar o histórico de invasões, conflitos, ou qualquer assunto de interesse da segurança pública na região da Unidade”. Além disso, a inciativa pretende “identificar e qualificar as lideranças locais desses movimentos, bem como levantar o quantitativo de pessoas em cada assentamento/acampamento (quantidade de crianças, mulheres e faixa etária dos integrantes desses movimentos)”.

Ora, não é de admirar que o idealizador da antiga União Democrática Ruralista (UDR) – famosa por protagonizar atos de violência contra trabalhadores rurais e pela intensa campanha contra a reforma agrária no Brasil na segunda metade dos anos 1980 – continue obstinadamente a combater o movimento que explica a própria formação da UDR. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e as ocupações de terra constituem o pesadelo, o objeto enlouquecedor dos ruralistas brasileiros, homens que, como Caiado, precisam encontrar caminhos de criminalização da movimentação política no campo.

Achille Mbembe (2017) destaca que este objeto enlouquecedor, perseguido pelo sujeito rodeado pela fantasia da desproteção, da destruição e da persecução, é produto e invenção de seu próprio desejo e de sua imaginação, para assegurar-lhe o sentimento de diferença e de distanciamento em relação ao “outro”, ao diferente, ao estrangeiro, para assegurar-lhe a propriedade, o status social, a “pureza” da raça, o poder econômico ou político. “Outrora”, diz-nos Mbembe, “estes objetos tinham os nomes privilegiados de negro e judeu, hoje, negros e judeus têm outros nomes – o islão, o mulçumano, o árabe, o estrangeiro, o imigrante, o refugiado, o intruso, para citar apenas alguns”. Ronaldo Caiado, a UDR, e as ocupações


A UDR foi fundada em junho de 1985, em Goiás, reunindo em seu núcleo, principalmente, pecuaristas de São Paulo, Minas Gerais e Goiás. Sua criação se deu logo após o anúncio do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), feito pelo presidente José Sarney, em maio de 1985. O plano priorizava a desapropriação por interesse social das terras improdutivas do país como principal instrumento de realização da reforma agrária e propunha o pagamento das indenizações das terras em Títulos da Dívida Agrária (TDA) com valores abaixo do mercado, o que acabava por transformar a desapropriação em penalidade imposta ao proprietário rural que não cumpria a função social de sua propriedade.

De olho nos ruralistas: observatório do agronegócio brasileiro. Reprodução.

A UDR nasceu como entidade protetora e defensora dos proprietários rurais e da propriedade privada, ancorada no discurso de marginalização desses setores do debate político. Além disso, defendia a construção de uma associação forte e independente, que fosse capaz de combater seus principais adversários: as ocupações de terras e a Igreja Progressista.


Seus principais idealizadores foram Ronaldo Caiado, descendente de tradicional família de fazendeiros e políticos de Goiás, e Plínio Junqueira Júnior, pecuarista da região paulista do Pontal Paranapanema, ressentido por ter sido atingido por um processo de desapropriação levado a cabo pelo governo do estado de São Paulo, em 1984. Uma marca de origem da UDR é o combate àquilo que seus idealizadores e associados denominavam de “baderna no campo” ou “agitação comunista e esquerdista”, referindo-se, especialmente, ao movimento de ocupações de terra e ao apoio da Igreja Católica. As ocupações de terras, crescentes em meados da década de 1980, impulsionadas pelo entendimento dos trabalhadores rurais de que a terra não se ganha, se conquista, constituem a maior preocupação dos setores latifundiários. Aliás, é contra elas que se organizam inúmeras entidades patronais, sustentadas pelo argumento da existência de uma guerra no campo e do avanço do comunismo, constituindo certa coesão de interesses entre elas, exacerbando a violência na retórica e na prática. Para Regina Bruno (2003),

o que se vê, nas páginas dos jornais, é sua defesa como ‘único meio eficaz para reter as invasões’, bem como a formação de milícias armadas com o objetivo de fazer ‘justiça com as próprias mãos’. Para os proprietários e empresários rurais, é impensável um ‘Pacto de Solidariedade’, sem o compromisso de todos com a violência, a compra de armas e a formação de milícias. Apostava-se no deslanchar de uma verdadeira ‘guerra no campo’. E a formação de grupos de defesa teria como objetivos a compra de armas para se ‘proteger’ das ‘invasões’ de terras, e o enfrentamento direto com os ‘sem-terra’ e os seus aliados.

Nesse jogo de caça aos “sem-terra”, deve-se registrar o papel fundamental do trabalho de estereotipia negativa dos trabalhadores rurais e de seus aliados. Criou-se, discursivamente, a figura do sem-terra “invasor”, “baderneiro”, “violento”, “comunista”, “esquerdista”; enredam-no numa trama policialesca, aproximando-o da imagem do criminoso, do desordeiro, associado ao uso de armas e ao treinamento de guerrilha. Igualmente, o sem-terra seria, ainda, remetido para o universo fantasmagórico e maléfico, encarnando personagens monstruosos, mal intencionados, anticristãos. Esse processo constante de satanização do MST, como diria Eduardo Ferreira de Souza (2004), está na origem do movimento.

Vejamos algumas orientações táticas para o combate aos sem-terra elaboradas pela UDR em Cruz Alta: 

7. O inimigo deve saber, ainda que sem detalhes operacionais, os meios que dispomos e a disposição que temos, para defender as nossas propriedades privadas.
11. Ações definitivas devem ser dirigidas contra os líderes e não contra pobres diabos, que na realidade servem apenas de bucha para canhão. É fácil, facílimo, identificar os líderes. 
12. contra viaturas (ônibus, caminhões e automóveis) as ações eficientes são bloqueios de estradas, “molotovs” lançadas contra as carrocerias, e tiros de calibre 12 nos pneus e radiadores.
Contra acampamentos, a ação armada deve seguir a seguinte sequência:
- tiros de inquietação, a 100 metros, diurnos e noturnos;
- saturação da área, com agrotóxicos dosados à nível vesicante e esternutatório, lançados por espargidores terrestres e aviões agrícolas;
- ataque direto, para desalojar os invasores.

Há um duplo trabalho pedagógico nesse tipo de diretriz que pressupõe a instrumentalização para o combate às ocupações de terra, que envolve o aprendizado do manejo de armas, a organização de ataques estratégicos e o estudo do perfil dos adversários. A outra parte desse trabalho diz respeito à fabricação de crentes na existência do perigo e na periculosidade do “invasor” sem-terra. Essa crença é parte fundamental na arregimentação de parceiros, na formação de grupos e na organização de associações em defesa da propriedade. Crer no inimigo, temer o inimigo: eis o trabalho de afetação dos setores latifundiários para tentar barrar a reforma agrária e as ocupações de terras.

Trata-se, como ressalta Vladimir Safatle (2019), da produção e gestão do medo como afetação política em sociedades liberais, fundadas na figura do indivíduo e no direito de proteção de seus bens, sua vida, seu patrimônio material e sua liberdade. Necessidade do medo, gestão do medo, que denuncia o estado atormentado de nossas comunidades sociais, sempre em alerta, sempre vigilantes, vendo fantasmas a todo instante.


O medo como afeto político, por exemplo, tende a construir a imagem da sociedade como corpo tendencialmente paranoico, preso à lógica securitária do que deve se imunizar contra toda violência que coloca em risco o princípio unitário da vida social. Imunidade que precisa da perpetuação funcional de um estado potencial de insegurança absoluta vinda não apenas do risco exterior, mas da violência imanente da relação entre indivíduos (SAFATLE, 2019, p. 20).

A crença no “inimigo” sem-terra também fora sustentada pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) instituição de orientação católica, fundada em 1960, caracterizando-se pelo combate ao Comunismo. Essa entidade foi uma aliada importante no trabalho de detração dos sem-terra, das ocupações e da reforma agrária. Sua participação foi central no trabalho de construção imaginária do “risco” sem-terra, na dispersão do medo pelas áreas rurais, na pregação antirreformista e no apoio à defesa da propriedade, inclusive legitimando o uso de armas.

Estratégia importante nesse trabalho foi a representação das ocupações e dos trabalhadores como fatos sociais desconhecidos, estranhos, por vezes de origem duvidosa. Trabalho de suspeição, de dúvida, de desconfiança, que tinha como escopo questionar a legitimidade das lutas e a idoneidade dos seus representantes.

No limite, buscava-se um meio de criminalizar essas lutas. Não à toa, na lista de preocupações que o poder público deveria se ocupar, segundo as sugestões da TFP, cabia investigar cada invasor, perscrutar sua vida pregressa, anterior à adesão ao movimento de ocupação, inquirir sobre seus laços familiares, origem geográfica, profissão, filiação partidária, orientação religiosa, inclinação filosófica, recursos financeiros, motivações para aderir às “hordas invasoras” etc. O rol de perguntas é longo, à maneira de um inquérito policial, por vezes tendendo à associação entre o elemento invasor e a figura de um criminoso. Daí porque era importante saber:


5. Estão identificados na polícia? 
15. Qual a vida de cada “invasor”, antes de se entregar a sua presente ocupação?
16. Teve passagens por delegacias criminais, ou de ordem política e social? Foi processado? Condenado? Cumpriu integralmente a pena imposta?
20. Participou de algum movimento de agitação social?
21. Em seu presente perambular, usa ele armas? A quem pertencem? A ele? À coluna invasora?
25. Praticam-se na coluna exercícios de tiro-ao-alvo e outros como caratê, judô ou capoeira? Há, na coluna, treinamento especial para isto?

A estratégia é levantar suspeita sobre as ocupações, essas desconhecidas, fomentar um sentimento de cautela, de preocupação, de ansiedade e de medo; pavor do desconhecido, temor que se constrói pela introdução de uma indefinição acerca da idoneidade dos invasores, suspeição do caráter, da moral. Igualmente, pelo teor policialesco do inquérito preconizado pela TFP, buscava-se cercar as ocupações de um vocabulário criminal, apelando para a investigação de homens armados, treinados, sob a mira da polícia e da justiça. Em suma, a busca pelos “criminosos” que, se não existiam de fato, passariam a habitar o imaginário social.

Antes, porém, a TFP já havia introduzido os temas da reforma agrária e das ocupações em um universo mais sombrio, assustador, fantasmagórico e até maléfico. Recorreu ao imaginário fantástico dos monstros, dos fantasmas, dos demônios, para justificar a agitação social dos anos 1980, com o objetivo de associar as greves operárias e as lutas em torno de reformas como a agrária, ao projeto secreto e ardiloso encabeçado pelo grande monstro incendiário: as CEBS – Comunidades Eclesiais de Base. Em 1984, o alerta da TFP para o grande “perigo” que as CEBS representavam veio ao público em forma de história em quadrinho (HQ), apelando para uma linguagem simples, direta, ilustrada e animada para difundir sua oposição ao trabalho das comunidades. Era a HQ Agitação social, violência: produtos de laboratório que o Brasil rejeita. No laboratório das CEBs, como sugeria a capa da HQ, uma série de elementos se misturavam de modo a produzir a agitação social e a violência. Na publicação, a CEB é representada pelo monstro agitador, que congrega os movimentos propulsores da “agitação, o “ser misterioso, que tantas ameaças acumula sobre o Brasil”.


TFP: agitação social, 1984 (capa). Reprodução

Sob o pano de fundo vermelho em alusão ao comunismo – porque é este o grande “perigo”, o verdadeiro objetivo de todo este laboratório –, os produtos finais das experiências aí desenvolvidas, a reforma agrária e as invasões, figuram entre as substâncias explosivas, associadas à ideologia marxista e à orientação religiosa da Teologia da Libertação.






Bolsonaro e o MST: um “inimigo” para chamar de seu

As orientações de Ronaldo Caiado, que tentam criminalizar os movimentos sociais, em especial o MST, apenas corroboram a escalada autoritária no Brasil contemporâneo, consubstanciada, especialmente, no chefe do poder executivo federal, Jair Bolsonaro. Ele próprio é um incansável detrator do Movimento Sem Terra e defensor do uso da violência armada contra seus integrantes. Bolsonaro atualiza a velha fraseologia dos latifundiários que apregoa, contra a existência de uma “guerra no campo”, o uso das armas, a morte dos “invasores” e a extinção do MST.

Bolsonaro e Caiado continuam presos a uma lógica securitária que precisa constantemente alimentar seus fantasmas, seus inimigos: aqui, o MST, acolá, o comunismo disforme. Importa manter esse outro ameaçador sempre vivo, criar e recriar, constantemente, o seu risco.

Recentemente, o presidente da República usou suas redes sociais para imputar ao MST a violência contra famílias do assentamento São João, no sul da Bahia.


Instagram. Reprodução.

Em outra ocasião, em 1º de maio de 2021, durante evento do setor agropecuário, Bolsonaro sugere ter eliminado o MST, promovendo titulações de terra e cortando repasses de verbas para ONGs ligadas ao movimento. Na fala presidencial, os movimentos camponeses aparecem caracterizados como maléficos e terroristas.







No nosso governo também, tivemos poucas invasões no campo. Tivemos a perspicácia de buscar minar os recursos para o MST, acabamos com repasses de ONGs para eles. Eles perderam força e deixaram de levar o terror ao campo. [...] Temos um foco mais grave que os malefícios causados pelo MST, em Rondônia. Temos um exemplo da LCP, Liga dos Camponeses Pobres que tem levado terror ao campo naquele estado. 

Vale ressaltar também o papel da mídia brasileira nesse processo de estereotipia e criminalização do movimento. O caso mais recente nesse sentido foi a reportagem especial que a TV Record, cujo proprietário é o bispo Edir Macedo, aliado do presidente da República, produziu sobre o MST, intitulada A força do campo: novas invasões do MST voltam a preocupar o agronegócio.


No enredo, de um lado, o sucesso e a grande produção e rentabilidade do agronegócio brasileiro; do outro, a ameaça das “invasões” de terra, protagonizadas pelo MST, gerando insegurança e instabilidade ao setor agropecuário. Os trabalhadores aparecem como ameaça ao setor, espalhando medo, depredando o patrimônio público, roubando grãos. Figuram como obstáculos aos empresários, apresentados como amedrontados e inseguros, reféns do retorno das ocupações.


Ora, trata-se da reedição do enredo de criminalização do MST, que agora se dá em meio ao processo de retomada do autoritarismo e da militarização das instituições brasileiras e da tentativa de silenciar e criminalizar as forças opositoras ao governo. Ocorre, por exemplo, em meio à tramitação, na Câmara dos Deputados, do PL 1595/2019, de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PSL/GO), que dispõe sobre “ações contraterroristas” e prevê a criação de uma “polícia política” para o combate aos atos e aos grupos supostamente terroristas.


O PL prevê a criação do Sistema Nacional Contraterrorista (SNC) e a Política Nacional Contra Terrorista (PNC), ambos sob controle direto do presidente da República, que poderá coordenar as Forças Armadas e Policiais para a execução de atos entendidos como terroristas. Na prática, o projeto busca intimidar e reprimir os movimentos sociais e opositores do governo Bolsonaro, dando a este plenos poderes para reprimir e criminalizar a atuação da sociedade civil. Várias entidades lançaram a Campanha Lutar não é Crime, que pretende reunir esforços para pressionar a Câmara dos Deputados a rejeitarem o Projeto de Lei. Assinam a campanha grupos como o MST, o Greenpeace, a CONTAG, entre outras. A Bolsonaro e sua trupe, resta viver de passado, não apenas tentando forjar um passado positivo para a ditadura militar ou alçar os ditadores ao posto de heróis nacionais, mas também alimentando os mesmos e velhos fantasmas, a desbotada imagem do “inimigo vermelho” que, no campo, tem no MST a sua maior expressão. Eis o objeto enlouquecedor.


 

BIBLIOGRAFIA

BRUNO, Regina Angela Landim. Nova República: a violência patronal rural como prática de classe. Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, p. 284 – 310, jul./dez. 2003.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.

OLIVEIRA, Plínio Corrêa de. No Brasil a reforma agrária leva a miséria ao campo e à cidade. São Paulo: Editora Vera Cruz, 1986.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

SOUZA, Eduardo Ferreira de. Do silêncio à satanização: o discurso de Veja e o MST. São Paulo: Annablume, 2004.

TFP. Agitação social, violência: produtos de laboratório que o Brasil rejeita. São Paulo: Editora Vera Cruz, 1984.

UDR. Diretrizes Gerais para a Defesa Rural em Cruz Alta. 23 de julho de 1987.

ZANOTTO, Gizele. É o caos!!! A luta anti agro-reformista de Plínio Corrêa de Oliveira. Dissertação (Mestrado em História Cultural) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2003.


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