O 31 de março de 1964 e a (des)ordem do dia
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  • Foto do escritorVictor Traldi

O 31 de março de 1964 e a (des)ordem do dia

Os dias que antecederam a efeméride dos 57 anos do golpe civil-militar de 1964 reservaram várias emoções para quem acompanha a política brasileira: nos grandes veículos de imprensa e nas redes sociais, o principal assunto foram as mudanças na composição do ministério do governo de Jair Bolsonaro. Nesse cenário, os fatos que causaram maiores tensões foram a saída do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa e a subsequente demissão dos comandantes das três Forças Armadas pelo novo titular da pasta, o general Walter Braga Netto. Assim, às muitas preocupações dos brasileiros somam-se as seguintes perguntas: “Bolsonaro está tentando dar um golpe de Estado?”, “os militares estão contra ou a favor de Bolsonaro?” – ou, de maneira resumida, “o que diabos está acontecendo com os militares no Brasil?”. Tudo isso no pior momento da pandemia de covid-19, com o país batendo recordes nos números diários de mortes pela doença e enfrentando um grave colapso no sistema de saúde.


Porém, meu objetivo não é fazer uma análise da conjuntura, nem buscar traçar as causas e possíveis consequências das trocas no Ministério da Defesa e nos comandos das Forças Armadas – esforço que já foi feito por vários especialistas das relações civis-militares no Brasil ao longo dos últimos dias. A intenção desse texto é olhar com um pouco mais de atenção para um documento publicado em meio à crise instaurada: a “Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964”, a primeira publicação do general Braga Netto no cargo de ministro da Defesa. Nessa breve análise – que não se pretende exaustiva, nem definitiva –, pretendo mostrar como alguns aspectos centrais da memória militar sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar estão presentes ou ausentes na ordem do dia.


Antes de tudo, note-se a rapidez da escrita de tal texto, publicado apenas um dia após Braga Netto ter assumido o Ministério da Defesa em meio a uma crise sem precedentes na história brasileira – visto que nunca havia ocorrido uma saída conjunta dos comandantes das três Forças Armadas. Mesmo em face a essa situação delicada, o posicionamento institucional da pasta da Defesa sobre a efeméride não foi deixado para depois, o que demonstra a importância da comemoração dessa data nos meios militares.


Vejamos o primeiro parágrafo da ordem do dia assinada por Braga Netto:

“Eventos ocorridos há 57 anos, assim como todo acontecimento histórico, só podem ser compreendidos a partir do contexto da época”. Se tratarmos com rigor essa afirmação, podemos identificar um primeiro problema de ordem epistemológica: ora, nós só podemos compreender os acontecimentos históricos a partir do presente e por meio das perguntas que fazemos ao passado. Aliás, é exatamente esse o trabalho do historiador: estudar os eventos históricos levando em conta o contexto da época, mas sempre a partir de um olhar de seu próprio presente. Com isso não busco exigir de um militar um domínio de discussões caras à Teoria da História, mas afirmo que a forma como se entende a construção de um relato sobre o passado é um fator essencial a ser levado em conta na análise de tal relato.


No quarto, quinto e sexto parágrafos da ordem do dia, lê-se o seguinte:


A Guerra Fria envolveu a América Latina, trazendo ao Brasil um cenário de inseguranças com grave instabilidade política, social e econômica. Havia ameaça real à paz e à democracia. Os brasileiros perceberam a emergência e se movimentaram nas ruas, com amplo apoio da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas, interrompendo a escalada conflitiva, resultando no chamado movimento de 31 de março de 1964. As Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos.

Nas palavras de Braga Netto, o Brasil vivia um cenário de “grave instabilidade política, social e econômica”, que trazia consigo uma “ameaça real à paz e à democracia”. Ora, o que foram essas ameaçadoras instabilidades políticas e sociais? O general estaria fazendo referência à renúncia de Jânio Quadros ou mesmo à tentativa de impedimento da posse do então vice-presidente João Goulart? Evidentemente, não: na memória militar, tal ameaça à paz e a democracia seria a expansão do “comunismo” ou da “subversão”, promovida ou facilitada pelo governo Goulart.


Um ponto curioso dessa ordem do dia é que, mesmo que o principal pretexto dos militares que deram o golpe de 1964 foi o combate ao “comunismo” e à “subversão”, tais palavras não aparecem em nenhum momento. O cenário descrito é de uma ameaça etérea e de um caos amorfo. Contudo, o anticomunismo escancarado que faltou no texto de Braga Netto abundou na nota do Clube Militar, concebida como um complemento à ordem do dia do ministro da Defesa. “Em memória daqueles que, por 21 anos, dedicaram suas vidas para que o Brasil não se subjugasse ao comunismo”, o presidente do clube, o general-de-divisão Eduardo José Barbosa, afirma que “foi contra esse Regime Genocida e seus apátridas seguidores travestidos de terroristas e guerrilheiros que várias medidas amargas foram tomadas no período de 1964 a 1985”. A nota não se restringe à justificação e à atenuação das ações da ditadura e emite um alerta para os leitores:


Enquanto tivermos no Brasil organizações políticas que enaltecem e apoiam um Regime Comunista / Socialista, que é na essência genocida e ditatorial, espalhando suas mentiras no seio da sociedade, iludindo o povo acerca de seus verdadeiros objetivos e contando ainda com apoio ostensivo de parte da mídia e do Poder Judiciário, devemos nos manter vigilantes.

Nos últimos anos, o Clube Militar – instituição conhecida por congregar militares da reserva, oriundos sobretudo do Exército – tem comentado frequentemente os acontecimentos da política brasileira. Como fica claro na nota acima, impera um uso do passado recente que não se resume a interpretar acontecimentos e processos históricos, mas que aponta para o presente e para o futuro do país.


Dessa maneira, é importante que voltemos a atenção não só ao que é dito, mas também ao que é escondido ou silenciado nesses textos. Em nenhum momento tais escritos tocam no fato de que a principal plataforma do governo de João Goulart eram as reformas de base, que atingiriam interesses de vários setores das elites. Os autores das publicações também ocultam que as ações de Goulart em prol das reformas eram criticadas não só pela direita, mas pelos setores mais radicais à esquerda. Quando a ordem do dia de Braga Netto diz que “os brasileiros perceberam a emergência e se movimentaram nas ruas”, faz-se uma generalização irresponsável, que silencia sobre o amplo apoio popular ao governo de Jango. No momento em que se afirma que “as Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País”, esconde-se as divisões dentro das casernas e omite-se que havia militares que não apoiaram o golpe e que, por isso, foram perseguidos e cassados.


Além disso, nesses excertos fica claro outro pilar da memória militar sobre 1964: a defesa da postura salvacionista ou moderadora das Forças Armadas, as únicas que teriam sido capazes de “colocar ordem na casa” e dar um basta ao caos na política nacional.


No entanto, como sabemos, as Forças Armadas não pacificaram o país durante os vinte e um anos de ditadura. Antes, durante e depois da vigência do Ato Institucional nº 5, a violência estatal atingiu milhares de pessoas de diversos setores da sociedade: políticos, militares, estudantes, funcionários públicos, populações negras e indígenas, trabalhadores rurais, membros da luta armada, entre outros. É importante ampliarmos o escopo das vítimas da ditadura, mas, ao mesmo tempo, é preciso tomar cuidado para não cairmos no mito de que toda a sociedade brasileira foi contrária ao regime instaurado em 1964 – mito questionado por historiadores como Daniel Aarão Reis e Denise Rollemberg. A memória da “sociedade resistente”, forjada no fim dos anos 1970, silencia sobre os complexos e heterogêneos apoios sociais ao golpe e ao regime subsequente. De fato, o golpe de 1964 teve apoio “da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas”, mas esses grupos não representam a totalidade da população brasileira, como a ordem do dia sugere.


Tampouco a afirmação de que as Forças Armadas agiram para “garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos” se sustenta. Nossa frágil democracia existe não por causa das ações dos militares durante a ditadura, mas apesar do legado do regime de exceção, como a Lei de Anistia e a Lei de Segurança Nacional.


No parágrafo seguinte, Braga Netto diz: “em 1979, a Lei da Anistia, aprovada pelo Congresso Nacional, consolidou um amplo pacto de pacificação a partir das convergências próprias da democracia. Foi uma transição sólida, enriquecida com a maturidade do aprendizado coletivo”. Aqui fica evidente outro ponto central da memória militar: a percepção da Lei de Anistia como um perdão mútuo que deveria significar o esquecimento de um passado de violência em prol do futuro da nação. Nesse caso, silencia-se que tal lei impediu a punição dos agentes estatais responsáveis por violações dos Direitos Humanos. Ademais, a transição não foi sólida, visto que contou com fortes resistências dentro das Forças Armadas. Os assassinatos de Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog, a crise entre Ernesto Geisel e seu ministro do Exército Sylvio Frota, o atentado do Riocentro e outras ações armadas de grupos de extrema-direita mostram que a abertura foi lenta e gradual, mas não tão segura.


Mas o mais impressionante é a passagem abrupta de 1964 para 1979, como se nada tivesse havido entre as duas datas. Toda a movimentação social, cultural e política desses quinze anos está ausente da nota. Até mesmo outros elementos centrais da memória militar sobre o período, como o combate à luta armada ou o “milagre econômico”, não são citados pelo general. Teria sido falta de tempo ou espaço para desenvolver seus argumentos? Ou simplesmente não seria conveniente entrar em detalhes da época, já que seria necessário lidar com a questão da tortura como política de Estado e com o fato de que o “milagre” foi seguido por uma grave crise econômica, só superada nos anos 1990?


Em suma, o texto da “Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964” assinada por Braga Netto é uma típica expressão da memória militar sobre o golpe de 1964 e a ditadura; ela traz uma narrativa que retira a complexidade da dinâmica histórica por meio da omissão de fatos e processos sem os quais é impossível compreender o período de forma criteriosa. Além disso, ressalte-se que tal nota tem a intenção de instruir os praças e oficiais do serviço ativo que essa é a forma que os acontecimentos devem ser relembrados – não uma das formas, nem a melhor delas, mas a única. Nesse sentido, o último parágrafo da ordem do dia é assertivo: “O movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil. Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”.


Em um aspecto o general Braga Netto acertou: o 31 de março de 1964 foi uma data importante na história brasileira e, como tal, precisa ser compreendido. É exatamente isso o que centenas de historiadores e historiadoras – brasileiros e de outros países – vêm buscando fazer em seus estudos, resistindo aos frequentes ataques às Ciências Humanas e combatendo os mais diversos revisionismos e negacionismos.


Em tempo: celebrar o golpe civil-militar de 1964? Nunca.

 

Imagem destacada: Brasília – O Comandante Militar do Leste, General Braga Netto, durante entrevista coletiva sobre o decreto de intervenção no Estado do Rio de Janeiro (Marcelo Camargo/Agência Brasil). Wikimedia Commons.


  1. Dentre as análises traçadas, cito algumas que, por abordarem pontos diferentes e chegarem a conclusões distintas, dão um panorama sobre o debate a respeito das movimentações nos comandos das Forças Armadas e suas implicações para o governo Bolsonaro: ALEGRETTI, Laís. Mudança na cúpula da Defesa traz risco de quebra de hierarquia e fissuras nas Forças Armadas. Disponível em: BBC; ALESSI, Gil. “O maior risco para a democracia no momento é de que revoltas nas polícias sejam incentivadas”. Disponível em: El País; MARIN, Pedro. Azevedo desembarca? Disponível em: Revista Ópera; MARTINS, Rafael Moro; DEMORI, Leandro. Imprensa dá voz à farsa de que generais se descolaram de Bolsonaro, mas militares seguem afundados no governo. Disponível em: The Intercept.

  2. A Ordem do Dia foi publicada no site do Ministério da Defesa.

  3. A “Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964” de 2021 é a terceira publicada durante o governo Bolsonaro. As duas notas anteriores foram assinadas pelo ex-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e pelos então comandantes das três Forças Armadas: almirante de esquadra Ilques Barbosa Júnior (Marinha), general-de-exército Edson Leal Pujol (Exército) e tenente-brigadeiro Antonio Carlos Moretti Bermudez (Aeronáutica).

  4. Tal nota foi publicada no site do Clube Militar.

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