O Ato (fato) Institucional nº 1:
Atualizado: 9 de mar. de 2022
Uma base jurídica e ideológica para a Ditadura Civil-Militar no Brasil
No dia 11 de abril de 1964, em crônica publicada no jornal Correio da Manhã, Carlos Heitor Cony se referia ao Ato Institucional imposto pela Junta Militar como um Fato. Assim, o autor escreveu: “O ato não foi um ato: foi um fato, fato lamentável, mas que, justamente por ser um fato, já contém, em si, os germes do antifato que criará o novo fato”. Fato é que um golpe civil-militar se iniciou em terras mineiras no dia 31 de março de 1964 e foi sacramentado em Brasília a partir das bênçãos do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ribeiro da Costa, e de Auro de Moura Andrade, então presidente do Senado, que, na madrugada do dia 2 de abril, declarou a vacância do cargo de presidente da República. Na mesma madrugada, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, foi empossado interinamente no cargo mais alto do nosso Poder Executivo. Contudo, a posse de Mazzilli não foi constitucional, visto que, quando da declaração de vacância do cargo, o presidente João Goulart ainda se encontrava em território nacional. A inconstitucionalidade desse ato institucionalizou o fato: o golpe.
“O ATO”, no entanto, só viria mesmo no dia 9 de abril de 1964. De acordo com Elio Gaspari, para os golpistas “a vitória não podia extinguir-se com a deposição do presidente”. Publicado inicialmente sem numeração, o Ato Institucional foi uma figura jurídica que suplantou a Constituição e institucionalizou de maneira definitiva o golpe de Estado, lançando as bases teóricas, ideológicas e jurídicas da ditadura brasileira.
Apesar de sua efetivação ter se dado apenas nesse contexto, o Ato Institucional não foi uma criação do regime que se instalaria em 1964. Nesse sentido, Heloisa Fernandes Câmara aponta que os atos institucionais foram figuras jurídicas que apareceram nas discussões sobre a manutenção ou não da Constituição de 1937 após a queda do Estado Novo, constando menções nas atas da Assembleia Constituinte de 1946 sobre a possibilidade de edição de um “ato institucional provisório” que ocuparia o lugar da Constituição anterior (a de 1937), enquanto a Constituição em discussão não fosse promulgada. Assim, o ato institucional ocuparia esse lugar de transição entre uma antiga e uma nova Constituição. Todavia, essa proposta não foi implementada, ficando a Constituição de 1937 em vigor até a promulgação de uma nova constituição.
Além disso, de acordo com a referida autora, a menção a essa figura jurídica também teria aparecido nas discussões de outra Assembleia Constituinte: a do extinto estado da Guanabara. O deputado estadual Themístocles Cavalcanti teria defendido em Assembleia a possibilidade de criação de um ato institucional até a promulgação da nova Constituição. Analisando esses dois momentos, é perceptível que as discussões sobre o ato institucional surgiram como uma alternativa jurídica que ocuparia esse interregno entre Constituições.
Seja como for, no contexto do golpe civil-militar de 1964, a figura jurídica do Ato Institucional foi um pouco além, já que, não obstante ter sido efetivamente implementado, ele reuniu em si tanto o poder constituído quanto o poder constituinte. Em resumo: o ato institucional manteve a Constituição de 1946 (Poder Constituído) ao mesmo tempo em que se colocava enquanto um poder acima dessa mesma Constituição (Poder Constituinte), contrariando a lógica dos dois exemplos acima mencionados em que o ato institucional ocupava apenas o espaço entre a “velha” e a “nova” Constituição. Em 1964, o Ato Institucional continha em si esses dois momentos. Para se tornar mais clara a questão, seguem dois trechos do Ato, sendo que: (a) se refere a manutenção da Constituição de 1946; e (b) ao Poder Constituinte revolucionário de que estaria investida a “revolução”.
(a) “Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional”.
(b) “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória”.
Percebe-se, a partir de leitura atenta dos dois trechos, algo interessante: O ato diz que manterá a Constituição de 1946, restringindo-se apenas a alterá-la nos aspectos “x”,”y”, e “z” – mas, no trecho em que fala sobre o Poder Constituinte revolucionário, informa que este tem a prerrogativa de editar normas jurídicas sem estar atrelado à normatividade anterior, ou seja, sem estar atrelado à Constituição de 1946. Desse modo, constata-se que o Ato Institucional se apresentou como um dispositivo de exceção que não apenas violou, mas suplantou a Constituição de 1946. Esta, é válido lembrar, foi uma importante conquista democrática após a queda da ditadura varguista.
Os demais atos institucionais que se seguiriam após a publicação do AI-1 mantiveram a mesma lógica jurídica do primeiro: tiveram o poder de criar quaisquer previsões normativas sem o respeito a qualquer outro instrumento legal. Assim, esse primeiro ato lançou as bases jurídicas de um regime calcado no autoritarismo, no arbítrio e na exceção.
Voltemos a Cony: por que o ato foi fato? Ao que me parece, a palavra “ato” remeteria ao AI-1 como um mero instrumento jurídico autoritário, enquanto a palavra “fato” remetia ao AI-1 como algo de maior dimensão ou, em outras palavras, o “Fato Institucional” possuía relação com todo um estado de coisas daquele ano de 1964. O AI-1, para além de lançar as bases jurídicas do golpe, também apresentava em seu corpo a dimensão ideológica do regime.
Criado pelos juristas Carlos Medeiros da Silva e Francisco Campos, o AI-1 é um instrumento jurídico sintomático de um mundo polarizado e que, por isso, adotava uma semântica muito própria do contexto de Guerra Fria ao ressaltar a necessidade de um inimigo a ser combatido. Somado a isso, a presença da Doutrina de Segurança Nacional nascida no interior da Escola Superior de Guerra apontava que o inimigo se encontrava dentro do próprio território nacional. Quem seria ele?
Nos termos do preâmbulo do AI-1, o Comando Supremo da Revolução, que assinou o ato, objetivava drenar “o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas”. O tom eugênico salta aos olhos e traz a necessidade de um adendo para a compreensão do Ato Institucional: o seu preâmbulo foi escrito por Francisco Campos (enquanto os onze artigos que compõe o ato foram de autoria de Carlos Medeiros). Campos também foi o redator da Carta Constitucional de 1937, que possuía, de acordo com Rogerio Dultra dos Santos, um caráter claramente antiliberal e ditatorial – sendo esse tipo de constitucionalismo influenciado pelo jurista alemão, e também nazista, Carl Schmitt.
Por fim, delineados alguns dos aspectos jurídicos e ideológicos do AI-1, é interessante pontuar como esse ato de exceção se manifestou na vida dos brasileiros. De acordo com as historiadoras Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, esse Ato Institucional permitiu o encarceramento de milhares de pessoas em estádios de futebol e em navios da Marinha; a detenção de aproximadamente 50 mil pessoas na Operação Limpeza; a instalação de Comissões Especiais de Inquérito e de Inquéritos Policiais Militares (os famosos IPMS), que foram responsáveis por muitos expurgos na administração pública baseados em um “completo desprezo pelas regras da justiça”. Assim, as autoras apontam: “estima-se que 4841 pessoas perderam direitos políticos ou foram cassadas, aposentadas ou demitidas pela ditadura – só o AI-1 teve como alvo 2990 cidadãos. Nos quartéis, os expurgos atingiram as três Forças e remeteram 1313 militares para a reserva”.
O relatório Brasil: Nunca Mais ainda apresenta que, em 11 de junho de 1964, poucos meses após a imposição do ato, foram cassados “três ex-presidentes da República (Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart); seis governadores de estados; dois senadores; 63 deputados federais e mais três centenas de deputados estaduais e vereadores”. A partir desses dados, é possível visualizar como a violência e o arbítrio foram instrumentalizados pela figura do Ato Institucional, o que se tornaria mais evidente quando da edição do Ato Institucional número 5.
Contudo, apesar da viabilização dessa violência por meio dessa figura jurídica – que, frisa-se, é inconstitucional e representa um instrumento de exceção – é preciso pontuar que a violência de Estado que se iniciaria por meio do golpe civil-militar foi de caráter sistemático. Isso quer dizer que a violência se deu e ocorreu muito além do que as próprias figuras jurídicas de exceção permitiam, ou seja, essa violência não pode ser tributada exclusivamente ao Ato, mas deve ser tributada ao Fato: uma ditadura civil-militar que violentou milhares de pessoas.
A título de conclusão, deixo aqui a frase final da crônica de Carlos Heitor Cony, que, além de previsão para um sol que iria raiar em 1985, pode ser também um alento em tempos tão duros:
“Enfim, temos o Ato e o Fato. O Ato é esse mostrengo moral e jurídico que empulhou o Congresso e manietou a nação. O Fato é que a prepotência de hoje, o arbítrio de hoje, a imbecilidade de hoje estão preparando, desde já, um dia melhor, sem ódio, sem medo. E esse dia, ainda que custe a chegar, ainda que chegue para nossos filhos ou netos, terá justificado e sublimado o nosso protesto e a nossa ira”.
Créditos da imagem destacada: Leitura do Ato Institucional nº 1 pelo General Sizeno Sarmento Ferreira. Fundo: Correio da Manhã. Arquivo Nacional. Wikimedia Commons.
Referências bibliográficas
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca mais. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
CÂMARA, Heloisa Fernandes. STF na ditadura militar brasileira: um tribunal adaptável?. Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Direito na Área de Concentração Direito do Estado no Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.
CONY, Carlos Heitor. O ato e o fato: O som e a fúria do que se viu no Golpe de 1964. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
SANTOS, Rogerio Dultra dos. Teoria constitucional, ditadura e fascismo no Brasil. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021.
SCHWARCZ, Lilia Mortiz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: Uma biografia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Lamento discordar. Vários artigos sobre a assunto insistem em avaliar Atos Institucionais na vigência do estado de direito quando nunca foram matérias infra-constitucionais. Os mesmos poderiam ter qualquer outra denominação, mas foram apenas os regramentos necessários pós ruptura de forma a restabelecer condições mínimas para atendimento da vontade popular contra o comunismo e a favor da família, sobejamente demonstrados por vários em grandiosos movimentos populares. Militares temporáriamente e dentro de sua atribuição institucional tomaram as atitudes necessárias para combater guerrilheiros e restabelecerem as condições mínimas necessárias para concluir essa difícil missão. Infelizmente adjetivar tais medidas como “ditadura” sem informar que outras medidas tomar para atendimento da vontade popular. É LAMENTÁVEL!