Pera aí… o humor gráfico é político?
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  • Foto do escritorMélanie Toulhoat

Pera aí… o humor gráfico é político?

Atualizado: 5 de abr. de 2022

 

De 1974 a 2020, Laerte, o Rei e o Brasil

O nascimento, em 1974, de um evento inteiramente dedicado à valorização e à difusão do humor gráfico, em Piracicaba (SP), pode ser, ainda hoje, surpreendente. Em pleno período repressivo, sob a censura prévia, um pequeno grupo de cartunistas locais e membros da administração municipal apostaram na organização de um Salão de Humor em Piracicaba, que passou a ser “internacional” a partir da quarta edição, em 1977. Foram buscar na redação do Pasquim as celebridades e o ânimo necessários para o início do projeto. A lenda conta que o argumento da cachaça piracicabana acabou por convencer a turma do Rio de Janeiro, já bastante entusiasmada com o projeto. A prefeitura apoiou a iniciativa de imediato, contribuindo financeiramente e materialmente para o evento localizado à margem do eixo Rio-São Paulo, dominante na produção cultural brasileira.

Piracicaba não é São Paulo, ainda menos nos anos 1970. Uma prova bem nítida disso é a presença exuberante e alucinada de selvas, índios e cobras no quadrinho levemente romantizado Piracicaba Mon Amour, publicado por Claude Moliterni, diretor editorial da Dargaud, fundador do Salon international de la bande dessinée d’Angoulême, na França, e convidado durante a segunda edição do Salão de Piracicaba em 1975, totalmente inspirado pela viagem às terras do interior do estado. Mas isso, sem dúvida, é outro assunto.

Numerosas lógicas coexistiram durante as primeiras edições do Salão, que tinham o objetivo de alcançar sucesso internacional e, ao mesmo tempo, de garantir certa proteção em relação à censura do regime militar. A importante valorização inicial da produção gráfica norte-americana e europeia rapidamente cedeu espaço para o quadrinho, a charge e a caricatura latino-americanos, sobretudo brasileiros, num contexto autoritário, cujas dimensões eram regionais.

Os desenhos premiados em Piracicaba, no decorrer dos anos, assim como os sucessivos cartazes das edições, manifestaram uma grande diversidade de estilos e temáticas, agindo como reveladores de um certo imaginário brasileiro durante a segunda metade dos anos 1970. As várias formas de violência cometidas pelo Estado autoritário, associadas ao contexto político internacional da Guerra Fria, ocuparam um lugar de grande destaque nas produções laureadas a cada ano no Salão, pelo menos até 1977. Porém, o ano 1978 viu a emergência de novas temáticas sociais, políticas, culturais e ambientais dentro da produção premiada. A análise do Salão de Piracicaba permite, neste âmbito, observar de maneira refinada o estado do desenho de humor brasileiro da metade dos anos 1970 e começo da década seguinte, trazendo à tona a existência de uma margem de manobra cultural à escala de um município que assumiu abertamente um enraizamento dentro da crítica ao regime militar.

O relatório da primeira edição do evento apresenta os membros da banca de premiação: Millôr Fernandes, Ziraldo, Fortuna, Jaguar e Zélio Alves Pinto. A fonte também indica a inscrição de 75 cartunistas e 220 desenhos para o concurso. Os arquivos do Salão contêm as deliberações manuscritas da mesa, indicando os trabalhos favoritos de cada um dos membros. Em 1974, na ocasião do primeiro Salão de Piracicaba, quem ganhou o prêmio foi Laerte Coutinho. O desenho original, em preto e branco, acertava em cheio a temática da repressão física e da tortura, pegando emprestado elementos do vocabulário visual medieval. O carrasco, os porões, os instrumentos de metal aquecido para torturar… tudo para se tornar um clássico do desenho contestatório.

Laerte Coutinho, 1o prêmio do Salão de Humor de Piracicaba, 1974 (original 39×29 cm). Acervo do Centro Nacional de Documentação, Pesquisa e Divulgação de Humor Gráfico de Piracicaba (CEDHU)

O desenho de Laerte não tinha sido publicado em periódico algum antes de ser mandado pela cartunista para concorrer ao prêmio. A cena representa uma criança vítima da tortura: pendurada pelos braços, acorrentada e com bolas de canhão amarradas aos pés. No primeiro plano, o carrasco encapuzado, com sorriso sádico, está aquecendo a ferramenta da tortura. Atrás, um grupo de apoiadores impacientes assiste à cena. A charge retoma e mistura elementos visuais dos registros medieval e contemporâneo, acessórios, roupas e instrumentos que autorizam analogias para denunciar a tortura praticada pelo regime militar nos anos 1970. Os capuzes e capacetes, o mangual e o chicote convivem sem problema com a presença anacrônica dos óculos de sol usados pelos capangas, desejando permanecer anônimos.

O conjunto da composição é uma referência à fábula do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, A roupa nova do rei, que narra a história de um monarca que vivia apenas de adulações e de roupas novas luxuosas. A vaidade e o amor pelos tecidos ricos o levaram a acreditar na palavra de dois vigaristas, que o persuadiram de terem a capacidade de tecer uma peça de roupa tão incrível, feita de um tecido tão único, que ia ser invisível aos olhos dos homens comuns. Em um dia em que ocorreu uma missa e uma grande procissão, uma criancinha ingênua percebeu que o rei, convencido de estar vestindo o pano invisível da última moda, estava, em público, despido de qualquer roupa. Então gritou: “Ele não está vestindo roupas!”. Tal expressão foi gradualmente substituída em versões e traduções sucessivas por “O rei está nu!”. Na fábula dinamarquesa, as palavras da criança adquiriram a aura do reconhecimento lúcido do óbvio, pronunciado com coragem e certa ingenuidade, já que todos tinham notado a nudez do rei, mas ninguém ousava dizer, por medo de parecer um tolo, ou pior, uma pessoa comum.

Voltando à Piracicaba, a criança torturada na charge de Laerte gritou precisamente o contrário: “O rei estava vestido!”. Uma interessante reviravolta dos eventos. Os múltiplos níveis de leitura da imagem satírica lhe conferiram um caráter amplamente crítico. Por um lado, denunciava o absurdo de um contexto extremamente repressivo em que o exercício da liberdade de expressão poderia levar à tortura física. Por outro, atacava e colocava em evidência as proibições formuladas em nome da censura moral e da defesa dos costumes considerados adequados, proibindo a representação, ou até mesmo a simples evocação da nudez. Principalmente do rei. Ou do imperador. Ou mesmo do capitão, quem sabe.

O Salão de Piracicaba continuou sendo organizado todos os anos desde 1974, ganhando tamanho, prestígio e reconhecimento. Durante essas décadas que nos separam dos anos 1970, as cartunistas e os cartunistas praticantes do humor político gráfico continuaram atestando cotidianamente, em jornais, revistas e, mais recentemente, páginas, blogs e colunas na nuvem, o papel fundamental da produção gráfica contemporânea brasileira. As novas ferramentas digitais lhes permitem agora contrariar certas formas de censura características da ditadura brasileira e de outros regimes autoritários. Barômetros dos processos políticos, as imagens de protesto de hoje, herdeiras de um complexo imaginário político e de uma tradição cultural, mas também enraizadas em sua época de produção, continuam seu vasto empreendimento de lançar luz sobre as visões do mundo, isso em um Brasil que parece reafirmar e reconfigurar, especialmente nos dias atuais, as atribuições indispensáveis dos cartunistas satíricos e cartunistas políticos. O cartaz do XLV Salão Internacional de Humor realizado em Piracicaba em 2018, hábil releitura feita por Laerte do primeiro desenho vencedor em 1974 à luz dos recentes acontecimentos no panorama político, é uma das melhores provas disso.

Laerte Coutinho, Cartaz do 45to Salão Internacional de Humor de Piracicaba, 2018. Acervo do CEDHU.

Desta vez, a criancinha ingênua torturada não argumenta nada sobre o rei. Já passou da hora. Pelo mesmo processo retórico de antífrase visual, a criança aponta que sim, em 2016, a destituição da presidenta Dilma Rousseff, democraticamente eleita por mais de 54 milhões de votos, sob o pretexto de crime de responsabilidade que nunca foi evidenciado, foi de fato um golpe de Estado. Parlamentar. E, especialmente neste caso, a reutilização e a adaptação de um desenho de protesto, criado durante a ditadura militar pela cartunista Laerte, está longe de ser insignificante. Elas provam pelo menos dois fenômenos enraizados em uma continuidade histórica apavorante. O primeiro é a falta de aprendizado, por parte das autoridades políticas e de boa parte da sociedade brasileira, dos ensinamentos da história recente. O segundo é a capacidade extremamente acirrada do humor gráfico (feito com talento) de se transformar e se adaptar para sintetizar e fazer enxergar com precisão os mecanismos violentos e criminosos que caracterizam tendências ou sistemas autoritários. Essa última charge, publicada por Laerte nas redes sociais e altamente compartilhada recentemente, poderia acabar de comprovar, como se ainda fosse necessário, a imensa lucidez da cartunista em relação ao rei e à boa parte do povo brasileiro.

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