O moralismo e as direitas: as contribuições de Benjamin Cowan
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  • Foto do escritorCaio Fernandes Barbosa

O moralismo e as direitas: as contribuições de Benjamin Cowan

A ascensão das extremas direitas em vários países do mundo trouxe consigo curiosas peculiaridades discursivas e fórmulas políticas elevadas ao primeiro plano da política nacional, que têm intrigado cientistas sociais tanto pelas suas semelhanças quanto pelo seu poder de mobilização. Esses discursos, notadamente marcados pelo anticomunismo, não estão restritos às experiências contemporâneas, mas mantêm fortes traços de correspondência com experiências anteriores – principalmente, com discursos difundidos por setores conservadores durante a Guerra Fria. Esse moralismo como uma reação à modernidade, tem funcionado ao longo das décadas em diferentes contextos e com diferentes resultados. Expressa-se, principalmente, pela defesa da heteronormatividade, dos papéis patriarcais de gênero, da sobriedade e da obediência como um valor civilizatório. Funciona como uma suposta normalidade, um conjunto de regras tácitas que rejeita a diversidade dos comportamentos humanos considerando-os uma ameaça social à família e à religião. No Brasil, o moralismo tem sido usado para defender posições eugênicas, atestar a inviabilidade nacional e denunciar supostas infiltrações comunistas. Combinados, anticomunismo e moralismo tornaram-se importantes armas de desumanização e demonização do “inimigo”, ao mesmo tempo em que produziam coesão entre conservadores.


Esse contexto tem estimulado historiadores como Benjamin A. Cowan a se dedicarem à análise dos radicalismos de direita, às noções de moralidade e sexualidade no contexto da Guerra Fria no Brasil. Além de artigos publicados em vários periódicos – como American Quarterly, The Journal of the History of Sexuality, The Hispanic American Historical Review, Radical History Review, Latin American Research Review, dentre outros –, Cowan produziu dois importantes livros: Securing Sex: Morality and Repression in the Making of Cold War Brazil (2016), e Moral Majorities across the Americas: Brazil, the United States, and the Creation of the Religious Right (2021), sobre a repressão durante a ditadura militar, cuja análise passa fundamentalmente pela organização das direitas no Brasil e sua relação com os Estados Unidos.


Esses dois livros, separados por um período de cinco anos e ainda inéditos no Brasil, são alguns dos objetos da análise desta coluna, na qual busco indicar livros que ainda não foram publicados em português e acervos documentais estrangeiros, sobre experiências ditatoriais, terror de estado e Guerra Fria que podem contribuir para a ampliação da historiografia brasileira sobre a ditadura. Os livros de Cowan são sugestões para quem deseja entrar nesses becos de livros não traduzidos e vielas de arquivos desse Labirinto Estrangeiro.

O primeiro livro de Cowan, Securing Sex: Morality and Repression in the Making of Cold War Brazil, foi publicado pela University of North Carolina Press em 2016 – mesmo ano em que o Brasil passava por um golpe de Estado que encerrava o governo democrático de Dilma Rousseff. A expressão que dá nome a obra, “Securing Sex”, tem um sentido de prender com firmeza, no caso, o sexo, para que não possa ser movido ou perdido. Enquanto o subtítulo, “moralidade e repressão na construção da Guerra Fria no Brasil”, dá uma ideia mais específica do livro. Securing Sex venceu três premiações, incluindo o prêmio Alfred B. Thomas da Southeastern Council of Latin American Studies (SECOLA) e o prestigioso Brazil Section Book Award da Latin American Studies Association (LASA). No livro, a contribuição decisiva para o campo da história cultural da repressão e das direitas durante a Guerra Fria e a ditadura militar é o conceito de pânico moral, derivado do trabalho de Stanley Cohen, Folk Devils and Moral Panics (1972). Para Cowan, esse pânico moral seria composto da


(1) reação, frequentemente por parte das autoridades ou da imprensa, ao aumento do desvio - real ou imaginado – no comportamento social ou na produção cultural; (2) desenvolvimentos em tecnologia de mídia e comunicação ou costume como um gatilho para tal reação; (3) veemência que supera a atual “ameaça”; (4) ansiedade voltada para os jovens, considerados o principal locus de mudança moral; e (5) ligação dessas ansiedades com noções de perigo sexual e corporal degenerativo. (Cowan, 2016, p. 10, tradução nossa)

O conceito de pânico moral convida a repensar as formas como muitos de nós abordamos o tema e como os meios de comunicação produzem ou noticiam informações sobre as direitas hoje. A manutenção dos trending topics com destaque de certas figuras nos noticiários e a visibilidade que determinadas narrativas adquirem por meio de mensagens histriônicas podem ser repensadas e reorientadas a partir do insight de Cowan. Ao narrar as histórias da “direita repressiva-reacionária e extremista”, Cowan oferece um amplo mosaico dos discursos moralistas nos quais a sexualidade e a moralidade ocupam um lugar central. Além disso, o autor ilumina as conexões existentes entre os movimentos conservadores dos anos de 1930 – como a Ação Integralista Brasileira – e a ditadura militar de 1964, influenciada pelas formulações morais e culturais do movimento integralista. A fértil imaginação reacionária é apresentada como uma construção coletiva complexa para a qual foram fundamentais intelectuais católicos como Gustavo Corção, clérigos como dom Geraldo Proença Sigaud, intelectuais estrangeiros como Suzanne Labin, psiquiatras como José Leme Lopes e organizações como a Liga de Defesa Nacional, o Tradição, Família e Pátria (TFP), o Movimento de Rearmamento Moral, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e a Escola Superior de Guerra (ESG), que influenciaram as linhas gerais da repressão a jovens, estudantes, artistas, hippies, a comunidade LGBTT, mulheres etc.


Dom Geraldo de Proença Sigaud (1964). Fundo Correio da Manhã. Arquivo Nacional. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_42203_001. Wikimedia Commons.

O historiador Douglas Attila Marcelino (2011) já havia identificado que o maior volume de material censurado pelos órgãos de repressão não estava estritamente vinculado à política: tratava-se de materiais condenados principalmente por seu conteúdo moral. Cowan demonstra que isso também funciona quando pensamos na ditadura como um todo: não se tratava apenas de uma orientação dos órgãos encarregados pela censura, mas do próprio imaginário das direitas, de elementos que compunham essencialmente o pensamento conservador dominante em organizações civis e militares fundamentais à sustentação da ditadura no Brasil.


O historiador americano realizou pesquisas no Arquivo Nacional, no Arquivo Histórico do Exército (AHEx), na Biblioteca da Academia Militar das Agulhas Negras, na Escola Superior de Guerra e na Biblioteca do Exército. Também analisou cerca de trinta e cinco impressos brasileiros, entre os quais os jornais O Estado de S. Paulo, Correio da Manhã e O Globo e revistas como Claudia, Veja, Manchete, A Defesa Nacional e a Revista Militar Brasileira, que não passaram despercebidas pelo ambiente intelectual brasileiro. Os trabalhos de Renan Quinalha (2018; 2020) e de Antônio Mauricio Brito (2020; 2021) são exemplos significativos das reverberações do primeiro livro de Cowan; mostras dos novos horizontes e perguntas que os historiadores poderão fazer a partir desse trabalho.


Em 2021, a University of North Carolina Press disponibilizou ao público o segundo livro de Cowan: Moral Majorities across the Americas: Brazil, the United States, and the Creation of the Religious Right (Maiorias morais nas Américas: Brasil, Estados Unidos e a criação da direita religiosa), fruto da peregrinação do historiador pelos arquivos mais variados: o Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, o Arquivo da Casa das Redentoristas, o Arquivo Histórico do Palácio do Itamaraty, o Arquivo da Mitra Arquidiocesana de Diamantina, o Arquivo Nacional, a Library of Congress (Manuscripts Division, Paul Weyrich Papers), a Princeton Theological Seminary Library (Carl McIntire Collection) e a University of Oregon Knight Library (James W. Clise Papers). Apesar de recente e ainda não traduzido, os ecos dessa publicação já repercutem no Brasil. Um primeiro sinal foi a recepção elogiosa através da resenha de André Pagliarini na Ilustríssima da Folha de São Paulo.


Nesse livro, o autor traça as linhas que conectam conservadores no Brasil e nos Estados Unidos, mostrando que os reacionários brasileiros não foram meros receptores de ideias produzidas no exterior. Aqui também foram formuladas ideias moralistas exportadas para grupos conservadores na América do Norte e na Europa. Essa produção conservadora para exportação está bem documentada pelo desempenho de dom Geraldo Proença Sigaud e pela TFP no Vaticano II e, depois, no trabalho ao lado de aliados estrangeiros, para solidificar e destacar uma agenda que viria a definir o conservadorismo católico e, mais amplamente, cristão. Na agenda, estavam o “anticomunismo; um moralismo estridente e detalhado; antiecumenismo; defesa da hierarquia per si; dedicação anticapitalista à propriedade privada e livre iniciativa; e a defesa veemente da primazia do sobrenatural em um mundo percebido como cada vez mais secularizado” (Cowan, 2021, p.13-14, tradução nossa).


Além dos católicos, Cowan ressalta a emergência de outro centro de poder crítico no Brasil entre os conservadores: os evangélicos. Com o aumento do criticismo entre os católicos e dos questionamentos sobre a natureza do regime político, a ditadura militar intensificou suas relações com setores das direitas conservadoras protestantes. O pesquisador evidencia a autoconstrução política que levou conservadores evangélicos a tornarem-se peça fundamental no tabuleiro político contemporâneo e que tem suas raízes na ditadura militar, como fruto de um amplo diálogo entre as direitas transnacionais. A formação de conexões ainda mais fortes entre os ativistas de direita brasileiros e internacionais, especialmente os norte-americanos, que envolviam até o envio de missionários brasileiros com a finalidade de “salvar” as almas dos estadunidenses, foram importantes para tornar o Brasil “um nexo fundamental, física e ideologicamente nos circuitos que deram origem à transnacional Nova Direita” (Cowan, op. cit, p.15, tradução nossa).


Se em Securing Sex o discurso da defesa da moralidade faz parte do próprio fazer político das direitas, a distinção entre “cortina de fumaça" – para usar o discurso das oposições ao governo Bolsonaro – e a agenda estritamente político-econômica continua sendo complexa e fluida. Em Moral Majorities, ao compreendermos o funcionamento dessas direitas conservadoras e religiosas e seu caráter transnacional, compreendemos a batalha central pelos contornos do mundo de amanhã que está sendo travada no Brasil de Hoje.


Créditos da imagem destacada: Dzi Croquettes. Reprodução.


 

Bibliografia

BRITO, Antonio Mauricio Freitas. A subversão pelo sexo Representações anticomunistas durante a ditadura no Brasil. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, n.72, 2020, p. 859-888.

COHEN, Stanley. Folk Devils and Moral Panics: The creation of the mods and Rockers. Oxford: Oxford University Press, 1972.

COWAN, Benjamin A. Securing Sex: Morality and Repression in the Making of Cold War Brazil. Chapel Hill: UNC Press, 2016.

MARCELINO, Douglas Attila. Subversivos e Pornográficos. Censura de livros e diversões públicas nos anos 1970. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011.

QUINALHA, Renan. Uma ditadura hetero-militar: notas sobre a política sexual do regime autoritário brasileiro. In: GREEN, James; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa; QUINALHA, Renan (org.). História do movimento LGBT no Brasil, 2018, p. 15-38.

______. Censura moral na ditadura brasileira: entre o direito e a política. Rev. Direito Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 11, N. 03, 2020, p. 1727-1755.


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