Os Sons da Revolução: a canção popular engajada na América Latina
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  • Foto do escritorLuís Felipe Machado de Genaro

Os Sons da Revolução: a canção popular engajada na América Latina

Historiadores e apreciadores da canção popular brasileira e latino-americana precisam fazer uma série de questionamentos quando se propõem a manejar a música como objeto de pesquisa e reflexão. Isso tanto no ato de escrever como no ato de escutar, principalmente quando se dedicam a comparações estéticas, rítmicas, de gênero e mesmo ideológico-políticas e mercadológicas.


O campo da História Cultural da música popular no continente, quando olhado com mais atenção, parece um terreno fértil e bastante controverso – muito em razão do “fator subjetivo” que carrega, do “gosto próprio” de seus ouvintes e dos muitos preconceitos que se espalham rapidamente.


Grupo Cuncumen com Salvador Allende - Reprodução
Grupo Cuncumen com Salvador Allende - Reprodução

Por isso, proponho duas frentes de discussão: apreender os resíduos da canção popular que ganhou contornos singulares nos anos 1960 e 1970, em diversos rincões da América Latina, e, não menos importante, compreender se seria possível, hoje, na chave do engajamento político, dos “ecos” do que se entendia como “canção de protesto”, uma canção popular engajada na região.


Sons e sangue latino-americanos


A história da canção popular latino-americana confunde-se com as conjunturas autoritárias a que fomos submetidos na segunda metade do século XX. Nesse período, juntas militares e setores das classes dominantes golpearam os países do Cone Sul e outras regiões de um continente marcado por dinâmicas históricas conflituosas, desiguais e opressivas, ocupando instituições de Estado e acelerando desigualdades abissais.


As temáticas dessas canções evidenciavam a expropriação das multidões trabalhadoras, a escravização de pessoas e o genocídio de seus povos originários, além da urbanização e “modernização” aceleradas, empobrecendo e precarizando as massas do continente. As letras não se “apegavam” ao passado, mas a partir dele, projetavam um futuro.


Salvador Allende: “Jamás hubo tantos folcloristas y de tanta calidad. Con nosotros están los más y los mejores”. © Diario El Siglo
Salvador Allende: “Jamás hubo tantos folcloristas y de tanta calidad. Con nosotros están los más y los mejores”. © Diario El Siglo. Reprodução.

Ainda no final dos anos 1950, raízes de renovação sonora começaram a ramificar em diferentes países, em um terreno adubado com sangue: a Cuba de Carlos Puebla, com suas canções tradicionais sobre a concentração fundiária e a miséria no período pré-revolucionário; os “campos da fome” do Chile e da escuridão nas minas de carvão, da folclorista Violeta Parra; e os vastos pampas argentinos, por onde os “índios” passavam em caminhos tortuosos, que eram explicitados pelo cancioneiro Athaualpa Yupanqui.


A década de 1960 seria responsável por uma maior integração e circulação entre cantautores, intérpretes e artistas das mais variadas correntes, imbuídos no “espírito de época”, o “espírito latino-americanista”, confluindo para o movimento difuso, plural e heterogêneo da Nova Canção Latino-Americana – na qual estava inserida, entre distanciamentos e aproximações, a Música Popular Brasileira. Chico Buarque e Milton Nascimento, Daniel Viglietti e Silvio Rodriguez, Ali Primera e Victor Jara, por exemplo, foram algumas das personalidades que compuseram nesse momento histórico.


Cantora Argentina Mercedes Sosa. Década de 1960
Cantora Argentina Mercedes Sosa. Década de 1960. Imagem: Annemarie Heinrich. Wikimedia Commons.

Distantes do panfletário, da propaganda em forma de hino de corte nacionalista, do protesto pelo protesto – uma “birra de crianças”, como denominou a tucumana Mercedes Sosa, em 1974 – o engajamento político dos cantautores e intérpretes latino-americanos alçava-se às longas tradições nacionais e populares de luta política por um mundo novo, arregimentadas em um “acúmulo cultural de rebeldias” semeados na América Latina (HEREDIA, p. 235, 2020).


Esse acúmulo transbordava nos palcos dos festivais, nas manifestações eleitorais e atos contra a censura e a violência política, em entrevistas e diálogos profícuos entre seus artistas-intelectuais, no lançamento de álbuns e LPs, quando uma mesma canção viajava por cordilheiras, florestas e metrópoles, tornando-se hino.


Diferente do que estamos acostumados quando nos deparamos com a palavra “hino”, essas canções eram de resistência contra as opressões e violências, como ocorrera com Canción Por la unidad latinoamericana, do cubano Pablo Milanés; Canción con todos, dos argentinos Armando Tejada Gómez e César Isella; ou mesmo El derecho de vivir en paz, do chileno Victor Jara.


A partir de signos, metáforas e um léxico contestatório e de denúncia, uma incredulidade perante a realidade vivida, o repertório da canção popular latino-americana ganhou contornos transnacionais no momento em que combatia o autoritarismo e as ditaduras militares, acometidos pela censura e o arbítrio.


Vozes femininas como a da mexicana Amparo Ochoa, da chilena Isabel Parra, da argentina Mercedes Sosa e da venezuelana Soledad Bravo, e mesmo Gal Costa, Nara Leão, Maria Bethânia e Elis Regina, no Brasil, estremeciam os ouvintes para além das potencialidades de suas vozes e performances. Se cantava, nos diferentes países, as agruras e os afetos, as dores, sofrimentos e as alegrias das gentes marginalizadas e não nominadas do processo histórico: os ninguéns de Eduardo Galeano.


A Nova Canção Latino-Americana


Produto da modernidade e do “progresso” ocidentais, a música era resultado de arranjos técnicos, gravações e regravações imbricadas nas relações comerciais entre artistas, produtores e “arquitetos” da indústria fonográfica, resultando em produtos vendáveis e lucrativos. A música, a faixa do repertório da Nova Canção – essa árvore com ramificações específicas, as correntes de renovação musical de cada país latino-americano – estava atrelada à sua própria realidade, sob pressões, apagamentos e modificações.


Gabriel García Márquez no Prêmio Nobel de Literatura de 1982
Gabriel García Márquez no Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Reprodução.

A Nova Canção pode ser considerada um movimento moderno e antimoderno, imerso em potencialidades e contradições. Usou das ferramentas da modernidade para contestá-la, denunciar que “as desgraças da vida não eram iguais para todos”, como nos lembrou García Márquez, em 1982, compondo ser possível imaginar um mundo novo, momento em que o caráter utópico das letras, atrelado à agenda de compromisso social e político de seus cantautores unia-se à conjuntura histórica de resistência contra as ditaduras militares.


Entre violências simbólicas e físicas, a vigilância, a retirada de álbuns de circulação, o desterro e a perseguição dentro da própria indústria, os cantautores e intérpretes viveram o seu engajamento político à sua maneira, de acordo com as experiências práticas de cada país.


As canções sobreviveriam ao autoritarismo, mas não à mensagem que carregavam.


Se fora possível cantar sobre a possibilidade de integração, unidade e soberania plena dos povos latino-americanos “irmanados” em uma Pátria Grande, a realidade cruenta dos acontecimentos seria acachapante.


Após o auge da Nova Canção nas décadas de 1960 e 1970, a miséria e o abismo social pareciam ainda maiores e mais difíceis de se combater, acentuados pelo neoliberalismo experimentado no Chile ditatorial e espraiado para o restante do continente nas décadas de 1980 e 1990.


Reestabelecidos os regimes democráticos em diversos países, o espaço público estava enfraquecido. A Nova Canção dissolvia-se porque sua mensagem se tornara impraticável: a revolução social não seria possível, e a integração, apenas pelas vias do comércio e da economia. O possível estava dado, e não era exatamente aquilo que se imaginara com o canto de denúncia e contestação.


A canção engajada e o tempo presente


Difícil acreditar que tudo mudou bruscamente. Vivemos entre os sedimentos históricos daquele período. A canção popular no continente ainda carrega, na sua história de contradições, recuos e avanços. O estandarte das maiorias ainda traz em sua mensagem, no bojo de suas letras, o “fator popular”, mas de outra maneira, aliado a outros gêneros, novos cantantes, ritmos e sonoridades.


Os tempos são outros – e são tempos sombrios. Não são aqueles das juntas militares e da exceção, mas um momento fragmentado, ultratecnológico. Um instante permanente onde a inexistência de uma utopia atrelada a um cenário de competição desenfreada mostra apenas a escuridão à nossa frente: não há futuro, pois, hoje, é mais fácil imaginar o “fim do mundo do que o fim do próprio capitalismo”.


Não obstante, se percebe que os elementos de denúncia compostos e cantados sobre aquela realidade, mais que a luta contra uma ditadura ou os problemas sociais deste ou daquele país, era a construção de uma possibilidade e de um horizonte novo, a crítica da modernidade e do progresso em si. Manejava-se a música como instrumento de transformação, uma “barricada cultural” lado a lado das barricadas de ferro erigidas nas ruas.


O discurso e a linguagem promovidas pela Nova Canção permanecem estranhamente atuais, enquanto a indústria fonográfica e as mutações da indústria cultural crescem exponencialmente, acompanhando as ramificações financeiras e tecnológicas do modo de produção capitalista, da obsolescência programada, da produção de sucatas culturais efêmeras, o objeto-música, o single, produtos vendáveis, como antes, mas agora numa escala avançada, aparentemente irrefreável.


Há canções, compositores e intérpretes engajados em bandeiras e causas específicas, como a supressão do racismo que domina as nossas relações de poder, um olhar atento à opressão misógina contra mulheres periféricas e sujeitos vulneráveis. Além disso, há composições que recuperam traços da Nova Canção, com novas conjunções de gêneros, ritmos e sonoridades, com cantantes negros, indígenas e transgêneros como protagonistas.


Por essa razão, entendo não existir, como antes, uma “canção de protesto” ou “engajada” nos termos do século XX, mas resíduos daquele momento atreladas ao novo, às questões do tempo presente. As letras dos rappers Emicida e Criolo, do porto-riquenho Residente, a palavra-cantada da chilena Javiera Parra, do uruguaio Jorge Drexler e do rockeiro argentino León Gieco, são alguns exemplos das potencialidades do atual cenário da canção popular no continente.


Hoje, vale lembrar, a própria ideia de engajamento, se perguntada a um jovem inserido na realidade das redes, seria apenas o ato de promover uma imagem, um post de Instagram, muitas vezes um produto altamente lucrativo. Nos engajamos mais na própria manutenção do capitalismo, do que em seu oposto: a sua derrocada e o iniciar de um processo de transformação revolucionário.


Como disse, são tempos incertos e sombrios. Recupero o fragmento poético de Bertolt Brecht, lembrado por García Canclini: “nos tempos sombrios se cantará também? Também se cantará sobre os tempos sombrios”.


 

Referências:

CANCLINI, Néstor Garcia. Latino-Americanos à procura de um lugar neste século. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2008.

GARCÍA MARQUEZ, Gabriel. A solidão da América Latina. Conferência Nobel apresentada em 8 de dezembro de 1982. Tradução de G. J. Creus.

HEREDIA, Fernando Martínez. Socialismo como alternativa aos dilemas da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

Mercedes Sosa en Casa de las Américas (1974). Canal Trovacubana, 19 de outubro de 2012.


Como citar este artigo:  

GENARO, Luís Felipe Machado. Os Sons da Revolução: a canção popular engajada na América Latina. História da Ditadura, 30 jan. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/os-sons-da-revolucao-a-cancao-popular-engajada-na-america-latina. Acesso em: [inserir data].

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