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Pensando o fracasso da desnazificação

  • Foto do escritor: Carlos Bauer
    Carlos Bauer
  • 20 de jan. de 2021
  • 7 min de leitura

Nos últimos dez anos, a indústria cinematogrÔfica trouxe à luz duas obras importantes sobre o nazismo. O primeiro filme, Negação (2016), é uma adaptação do conhecido livro History on trial: my day in Court with a Holocaust denier (2005), de Deborah Lipstadt. A renomada acadêmica estadunidense é conhecida por seu trabalho sobre a negação do holocausto, desconstruindo falÔcias difundidas como verdades históricas.

Foi exatamente a negação da Shoah que levou o inglês David Irving, muito envolvido com grupos de extrema-direita, a processar a autora na Inglaterra. O julgamento ganhou contornos dramÔticos, colocando frente a frente negacionistas e o trabalho crítico e metódico de historiadores acadêmicos. Apesar de parecer um absurdo para muitas pessoas, o número e a força dos negacionistas não devem ser desconsiderados, visto que sua força e reverberação política vêm avançando em variadas Ôreas das ciências e sociedade.

O segundo filme retrata um assunto diferente, mas inserido no mesmo contexto. Labirinto de mentiras (2015) reproduz o esforƧo de promotores da Alemanha Ocidental que acabou levando aos chamados ā€œJulgamentos de Auschwitz (1963)ā€. A história retrata a realidade do pós-guerra: nazistas reintegrados Ć  sociedade da jovem democracia alemĆ£, alĆ©m de evidenciar a presenƧa de antigos colaboradores no Poder JudiciĆ”rio.

Este não é um texto de crítica cinematogrÔfica, mas essas duas obras são importantes pontos de partida para uma discussão que muitas vezes escapa do currículo do ensino bÔsico e não passa por reflexões dos discentes: a desnazificação. O problema recorrente de se periodizar tudo com supostas finalidades pedagógicas acaba engessando os conteúdos de ascensão do fascismo/nazismo e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com isso, cria-se a concepção de que o nazismo morre com o encerramento do conteúdo e do cronograma.

Na verdade, falar de desnazificação é extremamente delicado, jÔ que o próprio conceito deve ser problematizado em sua formação. O prefixo des oferece uma ideia de negação. Logo, entende-se como o processo de desmonte das estruturas hitleristas. Talvez seja esse um dos principais questionamentos: é possível arrancar as raízes de algo tão inserido na sociedade, nas mentalidades e na política como foi o nazismo?

Ademais, ao pensarmos nas estruturas do nazismo nĆ£o podemos incorrer no esquecimento da influĆŖncia do conservadorismo alemĆ£o no Terceiro Reich. Encontramos tais caracterĆ­sticas se olharmos para o passado romĆ¢ntico, para as campanhas de unificação, para a nobreza da terra etc. Ɖ inegĆ”vel que o hitlerismo foi novidade em muitos sentidos, mas aprimorou, em grande parte, elementos do conservadorismo alemĆ£o. Um exemplo Ć© o antissemitismo, muito associado ao holocausto, mas jĆ” existente hĆ” centenas de anos no continente europeu.

Portanto, muitas raĆ­zes do nazismo foram plantadas na gĆŖnese da sociedade alemĆ£. O trabalho de desnazificação estaria disposto a confrontar ou a conservar essa realidade? NĆ£o Ć© irrelevante o contexto do processo e os seus agentes. A Alemanha do pós-guerra era uma nação destruĆ­da, ocupada, falida e sem estrutura polĆ­tica. Ruth Andreas-Friedrich, em DiĆ”rios de Berlim ocupada (1945-48), retrata a realidade do povo alemĆ£o nos meses que se passaram Ć  morte de Hitler no bunker da Chancelaria. Dessa maneira, nĆ£o era o povo alemĆ£o que estava Ć  frente do inĆ­cio da desnazificação, eram os aliados. Assim como os tribunais do pós-guerra foram coordenados pelos vencedores, fato analisado por Hannah Arendt ao observar o julgamento de Adolf Eichmann, de onde partiu a fonte para o conceito de banalidade do mal. Inicialmente, os aliados adotaram a chamada polĆ­tica dos 4D’s: democratizar, descentralizar, desnazificar e desmilitarizar.

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Missão e objetivos da ocupação dos EUA 1. Desnazificação: Remoção de nazistas de todas as posições de poder. Plak 004-004-008-T1, Budesarchive (Entnazifizierung, Wiederaufbau und Selbstverwaltung, 1947)

Ɖ um erro, portanto, compreender a desnazificação como fato isolado. Ela foi parte do projeto de ocupação da Alemanha, esta que caminhou para a reprodução clara da bipolaridade entre estadunidenses e soviĆ©ticos chegando Ć  construção do muro em 1961. O trĆŖs D’s restantes eram mais passĆ­veis de ĆŖxito do que ir de encontro aos resquĆ­cios sociais do nazismo.

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Missão e objetivos da ocupação dos EUA 2. Desnazificação: Remoção de nazistas de todas as posições de poder. Plak 004-004-008-T2 Budesarchive (Entnazifizierung, Wiederaufbau und Selbstverwaltung, 1947)

Outro ponto é a profundidade da doutrina e a sua representação. Os julgamentos de Nuremberg, iniciados jÔ em 1945, buscaram condenar criminosos de guerra, lidar com os crimes contra a humanidade, classificar o RSHA (Reichssicherheitshauptamt, ou, gabinete de segurança do Reich) como organização criminosa e condenar lideranças nazistas. O führer jamais foi julgado, tirou a própria vida para não cair em mãos soviéticas. Goebbels tirou sua própria vida, a da esposa e as dos filhos. Himmler também recorreu ao suicídio. Goering chegou perto da execução, mas se matou em sua cela.


Portanto, grande parte do alto escalĆ£o jĆ” estava morto antes do julgamento. Ɖ óbvio que outras figuras de poder ainda estavam vivas, nĆ£o Ć  toa foram julgadas e executadas, geralmente com enforcamento. Entretanto, qual Ć© o impacto social da execução pensando na jĆ” citada profundidade do movimento?

Recorremos, para isso, ao trabalho de Robert Gellately, muito criticado pela historiografia marxista por se colocar no campo revisionista da História. Gellately dedica sua pesquisa ao apoio da sociedade alemĆ£ ao nazismo, presente em vertentes como as denĆŗncias de populares Ć  Gestapo. Tais denĆŗncias muitas vezes possuĆ­am interesses próprios, mas outras eram clara simpatia ao movimento. Outra vertente Ć© o suposto desconhecimento dos campos de concentração, muito presente em frases como ā€œnós nĆ£o sabĆ­amosā€. Este desconhecimento Ć© irreal; grande parte dos alemĆ£es sabia, mas agiu como se os campos pertencessem a outro mundo.

Fora os cidadĆ£os comuns, os membros do ā€œbaixo escalĆ£oā€ tambĆ©m podem entrar nesta abordagem. O caso da Gestapo Ć© clĆ”ssico, como exposto por Frank McDonough. A polĆ­cia secreta utilizou grande parte do efetivo prussiano de policiais criminais, muitos nĆ£o filiados ao nazismo antes da ascensĆ£o de 1933. As lideranƧas eram dadas a indivĆ­duos doutrinados recrutados em faculdades de Direito. Nos julgamentos de Nuremberg, a defesa da Gestapo acabou fracassando ao apontar o argumento de policiais comuns para tentar evitar a classificação de ā€œorganização criminosaā€.

Além desses casos, podemos citar o Poder JudiciÔrio e a religião. Para a manutenção de cargos públicos, a justiça se rendeu ao nazismo. Eichmann defendia agir dentro das normas ao realizar seu trabalho. A realidade é que a suposta legalidade estava nas mãos do nazismo, o que expõe a complexidade do tema. Entre os religiosos, as igrejas sofreram com divisões internas: grupos apoiadores do nazismo e grupos perseguidos.

Como seria possĆ­vel lidar com esses e outros segmentos sociais influenciados pela magnitude do Terceiro Reich? O mĆ©todo adotado pelos aliados mostrou-se ineficaz desde a sua gĆŖnese: utilizar tribunais de desnazificação, formulĆ”rios para levantamento de nazistas, utilização de ā€œex-nazistasā€ na limpeza das ruas destruĆ­das, com ração diĆ”ria reduzida, e exposição de documentĆ”rios com imagens da realidade da guerra.

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Grethe Weiser, atriz, Ć  frente da comissĆ£o de desnazificação. Ɖ classificada como "aliviada" e pode continuar a exercer a sua profissĆ£o. B 145 Bild-P029199, Bundesarchiv (Berlin - Grethe Weiser vor der Entnazifizierungskommission)

Os formulĆ”rios fracassaram principalmente pelo nĆŗmero elevado de indivĆ­duos que os preenchiam. Outro fator determinante foi o crescente desinteresse dos alemĆ£es em relação Ć s potĆŖncias ocupantes. Por que seriam eles os responsĆ”veis pelo futuro da Alemanha? Qual a propriedade que teriam sobre o passado e o futuro da nação? Ɖ equivocado conceber o arrependimento instantĆ¢neo de antigos membros das fileiras nazistas, o que influenciava na persistĆŖncia do clima de nós e eles.

Conforme a década de quarenta ia caminhando para seu encerramento, as rivalidades geopolíticas acirraram-se. A Alemanha virou palco dessas divergências entre modelos antagÓnicos e a desnazificação passou por dois momentos quando inserida nessa realidade: instrumentalização e abandono.

A instrumentalização ocorreu no campo da propaganda. No Leste, corria a história de que os ocidentais eram complacentes com os antigos nazistas, muitas vezes tomando-os como aliados (não deixa de ser realidade, os Estados Unidos, por exemplo, importaram cérebros nazistas). Os soviéticos, de início, eram mais duros com os nazistas, enviando-os para campos de trabalho ou condenando-os à morte. Outras acusações iam no sentido de associar nomes da redemocratização com o passado nazista.

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O entulho reacionÔrio deve ir embora! Votem comunistas. Plak 004-012-036, Bundesarchiv (Der reaktionäre Schutt muß weg! Wählt Kommunisten, 1945/49)

O abandono foi progressivo e teve total influĆŖncia da Guerra Fria. Conforme os interesses foram sendo centralizados na disputa global, o foco interno foi sendo solapado pelas duas potĆŖncias. Um caso clĆ”ssico foi a utilização dos bombardeios de Dresden (1945) como objeto de ataque aos ocidentais. SoviĆ©ticos exploraram o ā€œcrime de guerra nĆ£o reconhecidoā€ cometido pelos ocidentais. Dresden foi duramente bombardeada por ingleses e estadunidenses e, atĆ© hoje, seu passado Ć© centro de disputa entre neonazistas e sociedade democrĆ”tica.

O ano de 1948 é visto como o fim da desnazificação e as consequências do abandono corroboram a ideia do fracasso. Na segunda metade do século XX, podemos observar o crescimento da relativização e do negacionismo, mesmo em meio a novos julgamentos como os de Eichmann e de Auschwitz. Até hoje nos deparamos com notícias que trazem figuras idosas sendo condenadas por crimes durante o nazismo.

Existe evidente relação desse fracasso com o aparecimento de grupos neonazistas, ainda que o suposto sucesso nĆ£o fosse impedimento para o fortalecimento de extremistas. Todavia, a desnazificação pode ser vista como um movimento contemporĆ¢neo, jĆ” que sĆ£o muitos os que reivindicam o nazismo como cultura polĆ­tica. Desta forma, as polĆ­ticas de memória – adotadas com ĆŖxito em muitas cidades alemĆ£s – sĆ£o as armas mais eficientes.

Os filmes que abriram este texto trazem, minimamente, essa realidade. Um retrata o julgamento que partiu de convicções pessoais e buscava livrar a Alemanha de pessoas envolvidas nas mortes de Auschwitz. O outro, trata dos reflexos do fracasso: discursos negacionistas vociferados como se fossem liberdade opinião e passíveis de complacência. Ainda é preciso desnazificar.


Carlos Bauer Ć© historiador.

ReferĆŖncias:

ADORNO, T. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação. 3ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.


ANDREAS-FRIEDRICH, R. DiÔrios de Berlim ocupada (1945-1948). São Paulo: Globo, 2012.


ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


GELLATELY, R. Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011.


LIPSTADT, D. Denying the Holocaust: the growing assault on truth and memory. Plume 1994.


LIPSTADT, D. History on Trial: my day in Court with a holocaust denier. Ecco, 2006.


McDONOUGH, F. Gestapo: mito e realidade na polĆ­cia secreta nazista. SĆ£o Paulo: Leya, 2015.


TSUKIMOTO, C S. Entre a desnazificação e a amnésia coletiva. XXIX Simpósio Nacional de História, 2017. Disponível em ANPUH. Acessado em: 22 de outubro de 2020.



CrƩdito da imagem destacada: "A German girl is overcome as she walks past the exhumed bodies of some of the 800 slave workers murdered by SS guards near Namering[1], Germany, and laid here so that townspeople may view the work of their Nazi leaders., 05/17/1945" Cpl. Edward Belfer. May 17, 1945. Nara #111-SC-264895.

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