Por uma reflexão acerca do estatuto de espectador no Teatro: presente e passado I
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  • Foto do escritorHenrique Vertchenko

Por uma reflexão acerca do estatuto de espectador no Teatro: presente e passado I

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

No dia 26 de maio, a mítica companhia alemã Berliner Ensemble publicou em suas redes sociais uma foto com a nova configuração da plateia de seu teatro em tempos de pandemia. Para a retomada dos espetáculos, foram retiradas poltronas e até mesmo fileiras inteiras visando garantir o almejado distanciamento mínimo de seus espectadores. A foto – acompanhada da legenda “Nova realidade” – foi replicada em inúmeros jornais pelo mundo e chamava atenção pelo ineditismo da iniciativa, gerando um impacto visual capaz de, talvez, dizer mais do que as inúmeras especulações que têm sido feitas a respeito do futuro do teatro. De fato, nos últimos meses, um grande número de artistas e pesquisadores tem escrito em sites, blogs e veículos de comunicação em geral inquietações e reflexões que evidenciam como a alteração brusca no curso de um modo de produção traz não somente fortes impactos econômicos e abalos nas funções da organização produtiva, mas também redefinições, ou ao menos impasses, na própria natureza dessa arte.

Concomitantemente a essas reflexões, multiplicaram-se maneiras – por vezes alternativas e por vezes paliativas – de se cobrir o vácuo deixado pelo fechamento das salas de espetáculo e pelo impedimento ético, sanitário ou jurídico de se realizar atividades com aglomerações. Foram disponibilizados online registros de peças filmadas, casos, no Brasil, de espetáculos de grupos como o Teatro Oficina, o Grupo Galpão, a Armazém Cia de Teatro, a Cia Mungunzá, o Ultralíricos, dentre inúmeros outros. Mais característico do contexto europeu, grupos de grande projeção internacional, como o próprio Berliner Ensemble, o alemão Schaubühne e a Comédie Française, optaram por exibir alguns de seus registros em dias e horários específicos, produzindo a ideia do compartilhamento de uma sessão que ocorre em espaços distintos e simultâneos. A Comédie Française, por exemplo, chegou a elaborar uma agenda com a programação de suas transmissões, seguindo uma lógica de alternância de espetáculos similar ao seu funcionamento in loco. Atipicamente, não se compartilha o espaço. Só se compartilha o tempo do espectador, e não o do ator, quebrando uma articulação indissociável para a noção que possuímos de teatro.

De modo diverso, algumas iniciativas buscam o compartilhamento do tempo entre espectador e artista, experimentando formatos relativamente novos que pretendem a conexão online e simultânea entre ambos, eliminando, ao menos, o descompasso temporal. É o caso, por exemplo, de ações dos grupos Magiluth, Clowns de Shakespeare e Armazém, além do projeto Teatro #EmCasaComSesc, que já contou com a participação de atores e atrizes como Grace Passô, Renata Sorrah, Matheus Nachtergaele, Mariana Lima, Sérgio Mamberti, Georgette Fadel, Cacá Carvalho, Yara de Novaes, Bete Coelho e Teuda Bara. As propostas, nesses casos, vão de releituras domésticas e audiovisuais de peças anteriores a criações rapsódicas e jogos cênicos virtuais que demonstram, em maior ou menor grau, as experimentações de linguagem em uma plataforma nova para esse segmento. Evidentemente, os formatos não se restringem a esses. Contudo, temos aqui um panorama de respostas para a crise que diz respeito, sobretudo, à fruição do espectador e ao modo como ele se relaciona com a obra. O problema, portanto, é de origem social e econômica, mas possui implicações epistemológicas uma vez que os critérios e limites do que entendemos por teatro são constantemente colocados à prova.

Não é raro que teatros fechem por razões econômicas, grande parte das vezes sem uma mobilização ampla que o impeça. No entanto, um fechamento completo e em escala global motivado por imposições não humanas fere um determinado ethos. No mundo moderno europeu ocidental, orgulhoso de seus teatros cosmopolitas, nem mesmo guerras fecharam completamente os teatros, gerando, inclusive, novas maneiras de se produzir. A instituição teatral figura, assim, como um dos bastiões da cultura e do patrimônio iluminista, sendo utilizada como tal por diversas orientações políticas capazes de orientar de maneira distinta suas finalidades. Esses usos e essa carga simbólica podem ser vislumbrados, como exemplo, por meio de um desconhecido documento burocrático: em processo do Serviço Nacional de Teatro (SNT), datado de 14 de outubro de 1942, o diretor do órgão, Abadie Faria Rosa, busca garantir o orçamento para a área, ameaçado em face do estado de beligerância, relembrando, como apoio argumentativo, que mesmo com as revoltas contra Floriano Peixoto em 1893 e contra Washington Luiz em 1930 a polícia decidiu manter os teatros do Rio de Janeiro abertos “para apagar o aspecto sombrio da cidade”.[1]

Não há dúvidas, portanto, de que há um grau de ineditismo no momento atual – ao menos nessa escala e nos últimos cem anos – no que se refere não somente ao modo de se produzir teatro, mas também aos impactos no imaginário romântico de um teatro que resiste, ou que é no mínimo resiliente às adversidades. Afinal de contas, o que vivemos não diz respeito apenas ao lugar do teatro em uma sociedade digitalizada, mas ao impeditivo concreto da presença física. Evidentemente, isso não significa alardear, de maneira profética, o fim do teatro, como foi feito de forma constante nos primórdios do cinema. Anatol Rosenfeld[2] defendia, no final dos anos 1960, que há uma espécie de reserva de domínio privativa da arte teatral que, devido à sua especificidade de comunicação, garante sua sobrevivência diante da incessante criação de outros veículos, como o cinema, o rádio e a TV. A despeito disso, as figurações do apocalipse teatral ganharam diferentes matizes ao longo do tempo – esgotamento, decadência, incapacidade de concorrência, encolhimento diante da cultura de massas, assimilação pela indústria cultural –, o que foi construído e assimilado pelos artistas e pelos debates críticos, impulsionando as transformações da própria área.

Perceber historicamente essas metamorfoses não significa ter a certeza de que o teatro não possa um dia desaparecer. Mesmo que isso pareça difícil, é sempre bom lembrar que há sociedades do passado e do presente que não possuem teatro da maneira como o concebemos a partir de uma construção que se deu no mundo moderno ocidental – isto é, como uma formalização elaborada e cultivada dentro dos códigos da intencionalidade artística. Há, de outro modo, diversas manifestações, em geral rituais, que podem ser entendidas também pelo viés da teatralidade, respondendo ao que estudiosos como Jacó Guinsburg[3] chamaram de “necessidade antropológica”. Essa perspectiva tem sido fundamental para pesquisas que buscam um alargamento da compreensão do fenômeno teatral e se debruçam sobre triunfos renascentistas e barrocos, ritos ameríndios, festas coloniais e teatro jesuítico, ou seja, expressões que possuem um eixo de produção simbólica representacional estruturado em convenções por vezes, mas nem sempre, ficcionais, mas que se distanciam do que se determinou chamar de teatro no Ocidente.[4]

Afirmar que dificilmente o teatro desapareça não corresponde a recusar as suas transformações, muitas vezes radicais. Se, por um lado, é um tanto óbvia a definição de que o teatro é a arte da presença, por outro, negar novas possibilidades pode resvalar em uma postura conservadora que nega a própria história do teatro. Ainda em 1997, o franco-argelino Denis Guénoun, em “O teatro é necessário?”, buscava responder qual o lugar dessa arte em um contexto contemporâneo globalizado e tecnocentrado. A sua crise estética e institucional, já percebida desde então, procederia de duas dinâmicas contrárias: o teatro se encolhe, é empurrado para as margens pela televisão e pelo cinema, e o público é cada vez mais escasso; ao mesmo tempo, o seu fazer se amplia, há legiões de aspirantes e seus praticantes se disseminam em escolas, presídios, hospitais e organizações sociais. A crise estaria exatamente na violência dessa fricção, já que o teatro consistiria em não uma, mas duas atividades simultâneas – o ver e o fazer –, condição elementar para sua existência. Para Guénoun, “[…] o momento que vivemos está marcado pelo divórcio entre ambas: aprofunda-se a separação entre o teatro que se faz (ou que se quer fazer) e o teatro que se vê (ou que não se quer mais ver). Atores e espectadores caminham sobre trilhos cujo trajeto é divergente […]. É preciso rearticular em uma outra síntese as condutas que o desejo de ver e o impulso de agir engendram.”[5] A partir dessa constatação, ele afirma que a necessidade do teatro contemporâneo – de função fluida – é baseada na sua busca pela autossuficiência, fazendo com que o espectador o procure objetivando simplesmente presenciar uma operação de teatralização, isto é, um jogo compartilhado entre atores e público.

Não é difícil perceber que a crise atual não só nega as possibilidades convencionais de compartilhamento como também potencializa antigos problemas. Para ficar no caso brasileiro, talvez seja possível interpretar a pandemia como o culminar de um processo de indefinição que já se apresentava há alguns anos, cujos desdobramentos ainda não sabemos. Os impasses anteriores, mas recentes, giram em torno da articulação entre forma e conteúdo, do desejo de se dizer algo enfraquecido pela incipiência técnica, das contrariedades estruturais para criação e, sobretudo, para circulação das obras – o que tem como consequência uma grande dificuldade em se atingir um público mais amplo. Essas questões dizem respeito à linguagem, mas também, e especialmente, aos modos de produção, circulação e recepção das obras teatrais, tocando em temas sensíveis como financiamento, relações entre arte e Estado, formação de público e rompimento de “bolhas” sociais. Evidentemente, há iniciativas que souberam lidar de maneira melhor ou pior com essas questões.

Diante de toda a problemática esboçada até aqui, o espectador emerge como ponto central de reflexão. Não há dúvidas de que as pesquisas acadêmicas têm se debruçado sobre a investigação desse sujeito encarando-o de maneira múltipla: abstrata, concreta, individual ou coletiva. Muitas análises partem dos pressupostos da estética da recepção e de seus desdobramentos, das práticas de leitura em sentido expandido ou das teorias da performance, conferindo a ele maior ou menor autonomia. Certamente, uma das teorizações mais populares no ambiente universitário nos últimos anos é a de Jacques Rancière. Em obras como O espectador emancipado[6], o filósofo amplia a ideia de emancipação intelectual para a figura do espectador no universo das artes. Desse modo, ao buscar compreender o que seria uma arte política ou a política da arte, encara o seu espaço como uma atividade livre de hierarquias, marcada pela horizontalidade e pela autonomia, onde não é possível prever ou prescrever os efeitos da obra sobre um público heterogêneo que não precisa ser ensinado.

No Brasil, as pesquisas que, nos últimos anos, buscaram refletir sobre o espectador de teatro são, em geral, dispersas. Elas se dedicam às relações com as políticas culturais de Estado, a levantamentos estatísticos, pesquisas de opinião e projetos de formação de público. Muitas vezes, sobretudo dentro dos programas de Comunicação Social, o espectador é entendido a partir do exame de hábitos culturais gerais em determinado recorte social e geográfico. Vale dizer ainda que, na grande maioria dos casos, trata-se de um olhar que incide sobre o espectador contemporâneo à própria pesquisa, o que significa dizer que ele é um sujeito do Brasil pós democratização.

Se os pontos levantados aqui podem servir a um pensamento em torno do estatuto do espectador de teatro, motivada pelas novas imposições no contexto da pandemia, afirmo também que essas linhas não servem para oferecer respostas e previsões para o futuro. Jorge Luis Borges[7] evocando Heine, declarou que o historiador é o profeta retrospectivo, quem profetiza o que já aconteceu, sendo a sua arte adivinhar o passado. Desse modo, para o historiador do teatro, um caminho instigante – e de enormes dificuldades – pode ser uma reflexão temporal acerca do estatuto de espectador, isto é, tomá-lo em sua historicidade. Pensar o espectador é pensar também o lugar ocupado pelo teatro nas sociedades, as formas de recepção e a maneira pela qual o público se relaciona com a obra, seja em termos práticos, na atribuição de significados ou na construção de imaginários. Assim, uma história do espectador de teatro, que certamente dialoga com a sociologia da cultura, inevitavelmente encara a historicidade do fenômeno teatral enquanto processo social. Apesar das dificuldades metodológicas e dos trabalhos esparsos, essa coluna buscará, em sua próxima edição, apontar alguns caminhos de pesquisa já trilhados.

 

Notas:

[1] PROCESSO SNT – Nº 37.658/42. – Cedoc-Funarte.

 

Referências:

BORGES, Jorge Luis; Ferrari, Osvaldo. Sobre a filosofia e outros diálogos. Tradução: John O’Kuinghttons. São Paulo: Hedra, 2009.

CARVALHO, S. A teatralidade fora de lugar: a cena Tupinambá no triunfo de Rouen. Sala Preta, v. 17 (2), 192-235, 2017.

______. Teatro e sociedade no Brasil colônia: a cena jesuítica do Auto de São Lourenço. Sala Preta, v. 15 (1), p. 6-53, 2015.

GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? Tradução: Fátima Saadi. São Paulo: Perspectiva, 2004.

GUINSBURG, J. A Idéia de Teatro. In: GUINSBURG. Da Cena em Cena. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 3-8.

MAYOR, Mariana França Soutto. Triunfo eucarístico como forma de teatralidade no Brasil colônia. 2014. 152 f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2014.

PROCESSO SNT – Nº 37.658/42. – Cedoc-Funarte.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1969.

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