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Revolucionar o mundo, reconstruir a vida: as esquerdas brasileiras dos anos 1968

Atualizado: 10 de jan. de 2023

À primeira vista, o título deste texto de estreia da coluna Horizontes utópicos, que escreverei para o site História da ditadura, causa estranheza. Como um único ano pode ser colocado no plural? Não se trata de um equívoco de digitação. Esta expressão, les années 1968, cunhada pelo sociólogo francês Bernard Lacroix, tampouco é fruto do acaso. Lacroix busca demonstrar a impossibilidade de compreendermos 1968 como evento histórico reduzido ao ano de 1968. No limite, faz coro aos demais historiadores e cientistas sociais que lançam luz para a limitação de explicação de eventos históricos por si mesmos, acentuando a necessidade de inserirmos os objetos de análise em uma duração, não os limitando a datas e personagens rigidamente demarcados.

Sendo assim, les années 1968, como utilizado aqui, busca remontar, através da trajetória das esquerdas brasileiras surgidas na segunda metade da década de 1960, constituintes da geração de 1968, aspectos daquela conjuntura. Onde confluíam e fundiam-se – não desprovidas de fragilidades e contradições – a ação e o sonho, a utopia e a realidade, a revolta e a revolução, o comunismo e a liberdade. Buscarei demonstrar como as esquerdas que se formaram após o golpe civil-militar de 1964, em sua maioria partidárias da luta armada e provindas do movimento estudantil, sonharam a revolução brasileira em termos de um projeto revolucionário coletivo e individual.

De antemão, deve-se dizer, inspirado no historiador francês Jean-François Sirinelli, que geração não é um estrato demográfico constituído, exclusivamente, por seu caráter “biológico”, mas também, e sobretudo, por sua característica cultural. Dito de outro modo, mais do que um metrônomo que marca o tempo, constrói-se uma geração a partir de acontecimentos inauguradores e assinaladores que imprimem identidade a um grupo.

No Brasil, em linhas gerais, a geração de 1968 inicia seu processo de formação no imediato pós-golpe de 1964, na intersecção entre fatores diversos. A aparição do “poder jovem”, que passa a reivindicar seu lugar como agente histórico. A reorganização do movimento estudantil, com suas demandas, greves e manifestações por melhorias na estrutura universitária. E, por fim, a fragmentação das organizações de esquerda decorrente, fundamentalmente, do processo de críticas, pela cúpula e pelas bases, da principal força hegemônica daquele período, o Partido Comunista Brasileiro (PCB).


Manifestação estudantil contra a ditadura militar. Fundo Correio da Manhã. Arquivo Nacional. Wikimedia Commons.

Uma insatisfação generalizada. A explosão de subjetividade, representada na recusa ao papel social que era, até então, atribuído aos jovens, com um destino pré-definido de trabalho, casamento, família e filhos relacionava-se com os avanços científicos, capitaneados pela pílula anticoncepcional, que desvencilhava as relações sexuais do matrimônio.


Em relação ao movimento estudantil, deve-se indicar três aspectos determinantes. Primeiro, a tríade composta pela repressão, supressão e controle das entidades estudantis, simbolizadas na Lei Suplicy e no Decreto-Lei 477. Além disso, a estrutura universitária que não condizia com o número crescente de ingressantes no ensino superior. Por fim, a interferência estadunidense no ensino brasileiro, simbolizada nos acordos MEC-USAID.Combinados, davam o tom da insatisfação que atingiria o paroxismo com o assassinato do estudante secundarista Edson Luís, em março de 1968, e a Passeata dos 100 mil no centro do Rio de Janeiro, em junho do mesmo ano.


Por fim, as críticas demolidoras tecidas ao PCB, que remontavam a diversos fatores. Algumas, mais imediatas, responsabilizavam o partido pelo golpe, especialmente pela leitura tático-estratégica da revolução democrático-nacional capitaneada por João Goulart e a burguesia nacional e, também, pela não resistência a uma “passeata militar”, conforme expressão de Caio Prado Júnior em A revolução brasileira. Contudo, outras, mais profundas, diziam respeito à própria maneira de fazer política. A estrutura partidária, com suas práticas e hierarquias, pareciam imobilizadoras àqueles militantes, jovens ou nem tão jovens assim, como era o caso, por exemplo, de Carlos Marighella, pioneiro na ruptura com o PCB e adesão à luta armada. Se Luís Carlos Prestes, secretário-geral do partido, havia dito, pouco antes do golpe, que os golpistas que se aventurassem teriam as cabeças cortadas e nada fez quando as tropas rumaram ao Rio de Janeiro, o objetivo, a partir da confluência dessas três grades de insatisfações, impelia a menos falar e muito fazer. O tempo era de ação.


Em síntese, tanto no movimento estudantil quanto nas organizações de esquerda, imperava um estado de espírito pautado pela negatividade, no sentido de negação da sociedade tal qual ela é. Contudo, essa negatividade não se restringia a críticas difusas e estéreis às amarras da sociedade e às práticas políticas, consideradas obsoletas e reacionárias. Muito ao contrário. No ventre da crítica repousavam os sonhos utópicos da construção de uma outra sociedade brasileira e, no limite, de um outro mundo. E tanto a crítica como a utopia, partes fundantes e indissociáveis da geração de 1968 brasileira, adquiriam contornos mais nítidos a partir de uma espécie de caos teórico, em que referências das mais diversas – e por vezes conflitantes – coabitavam e construíam um mesmo imaginário.


Pela ótica política, no sentido de teorias que apontavam caminhos tático-estratégicos e leituras conjunturais, houve uma quebra no monopólio das visões e análises propagadas pelo PCB e, no limite, também pela União Soviética (URSS). Fulguravam perspectivas que realçavam o papel de vanguarda dos países periféricos na construção internacional do socialismo, como era o caso das leituras da teoria da dependência propagadas por André Gunder Frank, Rui Mauro Marini e Theotônio dos Santos e do marxismo norte-americano, especialmente em Paul Sweezy e Paul Baran. De acordo com o vocabulário marxista, as condições objetivas pareciam estar dadas, faltavam apenas braços que se empenhassem em tomar o céu de assalto. E esses braços estavam, sobretudo, fora da Europa, dos Estados Unidos e da União Soviética.


Manifestação estudantil contra a ditadura militar. Fundo Correio da Manhã. Arquivo Nacional. Wikimedia Commons.

Além disso, os escritos maoístas e, sobretudo, as análises derivadas da revolução cubana, em especial de Che Guevara e Régis Debray, propagando a guerra de guerrilhas, sensibilizavam significativamente a geração de 1968 por apontarem a ação revolucionária como fator fundamental para a realização da revolução.

Contudo, a constituição da miríade de organizações de esquerda que optaram pela luta armada contra a ditadura não se explica, unicamente, pelas visões que ressaltavam aspectos conjunturais e tático-estratégicos e, portanto, restritas às organizações políticas. A explosão da subjetividade e as perspectivas teóricas que a afirmavam auxiliam a compreender, a nível individual, a opção dos agentes históricos pela luta armada naquele contexto. Inicialmente, sublinho a importância do existencialismo de Jean Paul Sartre, destacando o papel do indivíduo. Em outro registro, mas na mesma chave analítica, nota-se a influência da junção entre a psicanálise e o marxismo, condensada nas perspectivas de Herbert Marcuse em Eros e Civilização e, especialmente, nas propostas do alemão Wilhelm Reich em A revolução sexual. Publicados no Brasil em 1968, adquiriram bastante relevância por acoplarem-se à ruptura com os costumes que teve lugar no contexto da segunda metade da década de 1960.

Essas duas correntes de pensamento confluíam na busca pela construção do chamado homem-novo. Este, extraído dos Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844 de Marx, chegava ao Brasil por intermédio da obra de Erich Fromm O conceito marxista de homem, editado em 1961. Para além dos Manuscritos, a obra trazia comentários e interpretações a respeito do texto, muito críticos à experiência soviética e bem elucidativos da perspectiva que buscava recuperar: “Para Marx, a meta do socialismo era a emancipação do homem, e esta era a mesma coisa que a autorrealização dele no decurso de seu relacionamento e identificação com o homem e com a natureza. A meta do socialismo era o desenvolvimento da personalidade individual.”

Em síntese, se as perspectivas conjunturais e teórico-estratégicas lançavam luz sobre a exploração que derivava do sistema capitalista, as perspectivas que realçavam aspectos individuais incorporavam novas questões. Sublinhava-se, para além da exploração, a alienação das sociedades em que “com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”. Era necessário, para além da ruptura com o modo de produção capitalista, romper o muro entre os homens – no sentido de gênero humano – e a vida, como dizia Reich. Os indivíduos não deveriam lutar por um ideal comunista que se encontrava distante, mas a “meta comunista era a realização de sua própria vida independente.” Somente recuperando e integrando essa perspectiva individual ao projeto coletivo da luta armada é que nos aproximamos de compreender a ação política nos anos 1968.

Essa união entre um projeto revolucionário coletivo e outro individual não estava livre de fragilidades e contradições. De início, era clara a resistência de uma via marxista, dogmática, que buscava deslegitimar e, no limite, ridicularizar as questões individuais sob o chavão dos “desvios pequeno-burgueses.” Para além, a liberdade sexual não rompeu com a estrutura patriarcal mesmo dentro das organizações que se propunham vanguardas revolucionárias. Ao contrário. São inúmeras as evidências de que, salvo raras exceções, o papel das mulheres pouco se alterou em relação à ocupação de cargos de liderança e protagonismo nas organizações que propuseram a luta armada, apesar da maior presença de mulheres em relação às organizações tradicionais de esquerda do período. Além disso, pouca ou nenhuma importância foi dada às questões homossexuais e raciais no seio dessa geração. Portanto, o homem-novo, livre de toda exploração, opressão e alienação, não se realizou nem mesmo na microssociedade daquelas organizações.

Contudo, as fragilidades e contradições não descaracterizam ou desmerecem a utopia sonhada por aqueles militantes. Apenas apontam, como bem diz o título do livro de Zuenir Ventura, que o ano de 1968 não terminou. As questões colocadas naquele período devem, ainda, ser respondidas. Assim, mesmo que o “assalto contra a ordem do mundo” tenha sido derrotado e o inimigo, que parecia, aos olhos ingênuos, extirpado, reapareceu fulgurante, a derrota não é indicativo de que as armas da geração de 1968 não tenham permanecido enfiadas “na garganta do sistema de mentiras dominantes”. A principal delas? A possibilidade de enxergar utopias no horizonte. Não no sentido que lhe dá o senso comum, como algo inalcançável, mas “um outro que de modo algum é necessariamente abstrato ou alheio ao mundo, mas sim inteiramente voltado para o mundo: o sentido de ultrapassar o curso natural dos acontecimentos.” Referencias Bibliográficas:


BLOCH, Ernst. O princípio esperança, tomo I. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

DEBRAY, Regis. Revolução na Revolução?, São Paulo: Centro Ed. Latino Americano, s.d.

FROMM, Erich. O conceito marxista de homem. 2ªed. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

GARAUDY; HYPPOLITE; ORCEL; SARTRE; VIGIER. Marxismo e existencialismo. Controvérsias sobre a dialética. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1966.

GUEVARA, Ernesto “Che”. Guerra de Guerrilhas (1960), 10ª ed. São Paulo: edições populares, 1987.

FRANK, André Gunder. “A agricultura brasileira: capitalismo e mito do feudalismo”. In: STEDILE, João Pedro (Org.) A questão agrária no Brasil: o debate na esquerda (1960-1980). São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 35-100.

LÖWY, Michael. A estrela da manhã. Surrealismo e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosoficos. São Paulo: Boitempo, 2005.

PRADO JÚNIOR, Caio A revolução brasileira. (1966) 7ªed. São Paulo: Brasiliense, 1987

REICH, W. A revolução sexual. 8ªed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2ª ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2010.


Crédito da imagem destacada: Protestos de maio de 1968 em Paris. Autor: 人民画报. Wikimedia Commons.


  1. LACROIX, Bernard. « Les jeunes et l’utopie : transformations sociales et représentations collectives dans la France des années 1968. » In : Mélanges offerts au professeur Jacques Ellul, Paris : PUF, 1983, p. 719-742

  2. FROMM, Erich. O conceito marxista de homem. 2ªed. Rio de Janeiro: Zahar, 1962, p. 45.

  3. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosoficos. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 80.

  4. REICH, W. A revolução sexual. 8ªed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 142.

  5. DEBORD, Guy apud LÖWY, Michael. A estrela da manhã. Surrealismo e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 85.

  6. BLOCH, Ernst. O princípio esperança, tomo I. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 22.

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