Salve João Cândido, os heróis e as heroínas populares
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  • Foto do escritorThiago Mourelle

Salve João Cândido, os heróis e as heroínas populares

Atualizado: 11 de mai. de 2021

João Cândido, o “Almirante Negro”. Eternizado na canção de João Bosco e Aldir Blanc, o “Mestre-Sala dos Mares” foi o líder de um dos maiores gritos de nossa história contra o racismo: a Revolta da Chibata de 1910. Porém, a forma como seu legado foi e é tratado diz muito sobre a falta de compromisso de nossa elite com os grandes líderes populares brasileiros. Você sabia que, até hoje – 111 anos depois da heroica revolta –, ainda aguardamos a homologação oficial de seu nome no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria?


Para compreender mais, te convido para uma viagem no tempo. E vamos longe, ao ano de 1822. Embora tenham ocorrido uma série de eventos populares no contexto da independência, a memória divulgada por muito tempo nos livros se resumia a dom Pedro, à elite brasileira e aos portugueses e ingleses como únicos envolvidos. Fatos como a Revolta do Brigue Palhaço (1823), por exemplo, e mesmo a Revolução Pernambucana (1817) ou a Confederação do Equador (1824) ficavam em segundo plano. Quem foram seus líderes, os homens e as mulheres que, à época, lutaram por mudanças?


Da mesma forma, as revoltas regenciais, por muito tempo, tiveram pouco espaço nas salas de aula e quase todas eram tratadas como se tivessem mais pontos em comum do que diferenças. A mais estudada, que já inspirou novelas e outros programas de televisão, é justamente a que envolveu mais lideranças de elite: a Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha. Enquanto isso, a Cabanagem, no Pará, guerra popular que mobilizou milhares de indígenas e negros, recebeu menos holofotes.


Saltemos para a abolição da escravidão: por muito tempo, sua responsabilidade foi atribuída quase que exclusivamente à princesa Isabel, citada, simbolicamente, no samba campeão da Imperatriz Leopoldinense, de 1989, como “Isabel, a heroína / que assinou a lei divina”.


Chegando à República, lembramos de livros importantes como Os Bestializados, do historiador José Murilo de Carvalho, que mostra a posição marginal da população mais pobre na passagem do Império para o novo regime. O próprio Carvalho aponta a necessidade, em 1889, de se criar heróis nacionais. Afinal, um país deveria ter heróis, datas cívicas, bandeira, enfim, todo um aparato que define quem somos enquanto nação. Era necessário “construir” um Brasil, definir o que este país seria.


Se em 1822 o projeto de Brasil das elites foi um país governado por um monarca e que baseava sua economia na escravidão, em 1889 essa ideia foi atualizada pela urgência em se tornar uma nação branca – daí o estímulo à imigração europeia – e pela paulatina entrega do controle político a um pequeno grupo de cafeicultores. O grande herói, que tem um feriado só pra ele até hoje, seria o branco – e nem tão pobre assim –Joaquim José da Silva Xavier, popularmente conhecido como “Tiradentes”, participante de uma conspiração que não pegou em armas e não derramou uma gota de sangue.


Pintura retrata o alferes Tiradentes pouco antes de ser enforcado como punição pela participação na Conjuração Mineira de 1789. Reprodução.

É claro que, nesse resumo acima, não abordei uma série de fatos. Havia vozes dissonantes, houve disputas em cada um desses momentos. Mas fato é que, no “resultado final”, o que ficou mais marcado foi o viés conservador da condução de nossa história pelas elites governantes.


No Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, ao lado do citado Tiradentes, estão também outros homens brancos como dom Pedro I e duque de Caxias. Porém, nas últimas décadas, na mesma toada que vem mudando o ensino de História, entraram no livro o brilhante autodidata Luiz Gama – considerado o patrono da Abolição – e João de Deus Nascimento – um dos líderes da Conjuração dos Alfaiates (1798) –, ambos negros. Além deles, foram contemplados personagens indígenas como Sepé Tiaraju – defensor dos Sete Povos das Missões contra ataques portugueses e espanhóis – e Clara Filipa Camarão – que resistiu a ataques holandeses quando da invasão ao nordeste no século XVII –, ambos indígenas. O livro, que tinha apenas dez nomes ao final do século XX, hoje tem cerca de cinquenta personagens, trazendo representatividade de grupos até então excluídos. Inclusive, houve a inclusão do termo “heroínas” em seu título, se somando aos “heróis”.


Cada vez mais esses históricos líderes populares têm emergido do fundo do mar da História para ganhar espaço dentro dos muros acadêmicos e também fora deles. Porém, essa ocupação da esfera pública também tem sido combatida com força. A estátua de Zumbi no centro do Rio de Janeiro, por exemplo, chegou celebrada pelo movimento negro, mas também foi alvo de um discurso crítico de grupos que tentam repetidamente relativizar sua importância, talvez incomodados pelo crescente protagonismo negro.


João Cândido, depois de passar décadas apenas tendo por monumento “as pedras pisadas do cais” – mais uma referência à canção de João Bosco e Aldir Blanc –, finalmente teve sua estátua erguida em 2008, no centro da capital fluminense. Porém, até hoje, ainda aguarda a inserção do seu nome no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, fato que o governo Bolsonaro não hesitou em trabalhar para protelar ainda mais.


No final de 2019, o deputado Eduardo Bolsonaro pediu que o projeto de lei que pedia tal inclusão – de autoria do deputado Chico D'Ângelo – passasse antes pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, da qual era presidente, pedido acolhido pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia. O parlamentar designado como relator da proposta foi o pastor Marco Feliciano. De lá pra cá, nenhuma decisão foi tomada.


Já havia sido feita uma tentativa, em 2007, por meio do então senador Paulo Paim e da deputada Maria do Rosário. Porém, o deputado Severiano Alves, relator da Comissão de Educação e Cultura, rejeitou o pedido e teve seu parecer chancelado pela comissão, em 2008. A justificativa usada foi o fato de que a Marinha já havia vetado uma homenagem a Cândido em 1959 e que a Revolta da Chibata era entendida pelos militares como motim e quebra de hierarquia e não como um ato heroico.


Revolta da Chibata. 26 de novembro de 1910. Wikimedia Commons.

Cabe lembrar que João Cândido foi “perdoado” oficialmente pelo governo brasileiro apenas em 2006, já passados 96 anos da Revolta da Chibata e 37 de sua morte. No fim de sua vida, recebia apenas uma pensão vitalícia de seu estado natal, o Rio Grande do Sul, graças ao esforço do então governador Leonel Brizola. Passou a receber o benefício em 1959, já com 79 anos, e com esses dois salários mínimos passou os dez últimos anos de sua vida.


Cândido foi recordado sistematicamente em diferentes momentos de nossa História. Foi celebrado na famosa Revolta dos Marinheiros, em 1964, momento-chave que aumentou a crise entre o presidente João Goulart e militares de alta patente. Anteriormente, recebeu homenagens do bem humorado jornalista Aparício Torelly, autointitulado “Barão de Itararé”, que acabou agredido por oficiais da Marinha após publicar uma série de reportagens em seu Jornal do Povo, em 1934, lembrando o “Almirante Negro”.


Façamos um rápido exercício: se hoje em dia, em plena década de 2020, a luta antirracista ainda é urgente... Se nos anos 1980 era comum, até na televisão, os negros serem chamados de macacos... Se nos anos 1930 ainda havia o discurso eugenista... Imagine em 1910, apenas 22 anos após o final da escravidão, quão forte era o racismo em nossa sociedade! Na Marinha, quase sempre os negros eram apontados como os culpados em delitos que envolviam também brancos, mas o tratamento era diferente dependendo da cor da pele do marinheiro.


Como nos mostra o historiador Álvaro Pereira do Nascimento, João Cândido e seus colegas deram um basta a essa violência. Talvez sem a convicção de estarem em uma luta antirracista, certamente tinham a consciência de estarem se posicionando contra uma grande injustiça: mais uma vez um negro recebia dezenas de chibatadas, sem dó, a mando de oficiais brancos. Daquela vez, contudo, houve uma resposta: os subalternos tomaram os navios e ameaçaram bombardear a capital da República. Participaram 2.379 praças. Para efeito de comparação, a revolta do Encouraçado Potemkin, ocorrida na Rússia em 1905, não chegou a 500 tripulantes a bordo da embarcação. Além do “abaixo a chibata!”, o grito que pedia “liberdade!” também ecoava e ainda irradia até hoje.


Mas o que os brancos acharam disso? Como trataram essa “afronta”? Os marinheiros foram inicialmente anistiados por um governo que, poucos dias depois, não cumpriu com sua palavra. Muitos foram expulsos da Marinha, outros torturados e até mortos nas prisões da Ilha das Cobras; o ápice desse processo foi sua expulsão do Rio de Janeiro no navio Satélite, apelidado de “navio negreiro republicano”. Nos 69 dias de viagem rumo à região norte do país, nove pessoas foram fuziladas na embarcação, sob acusação de motim. Ao final, os passageiros acabaram jogados em diversos seringais, onde alguns morreram vitimados da malária, disenteria e outras doenças tropicais.


João Cândido é mais um desses heróis e heroínas populares que lutaram por direitos e contra injustiças ao longo da História do Brasil. É urgente não só trazer esses nomes à luz, mas lutar para que tenham o mesmo destaque que outros, historicamente, sempre tiveram.

Com todo o respeito a Tiradentes e a outros tantos, João Cândido merece um feriado nacional. Seu nome, com certeza, precisa estar no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Fatalmente, isso irá acontecer, pois eles “podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera”.



Créditos da imagem destacada: João Cândido sendo entrevistado (BR_RJANRIO_PH_0_FOT_14291_003). Fundo Correio da Manhã. Arquivo Nacional.

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