“The Troubled Land”: um documentário estadunidense sobre o Nordeste brasileiro
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  • Foto do escritorArthur Lira

“The Troubled Land”: um documentário estadunidense sobre o Nordeste brasileiro

Aruanda, Vidas secas, O auto da compadecida, Bacurau... o cinema produz e reproduz inúmeras imagens sobre o Nordeste brasileiro. Estas imagens constroem discursos tão fortes quanto a definição territorial do que seria essa região do país. O Nordeste é uma invenção humana e foi caracterizado de diferentes formas, como nos propõe o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior em seu livro “A invenção do Nordeste e outras artes” (2009). São os homens e as mulheres que criam e definem as fronteiras do regional ou do nacional. Essas invenções são construídas não apenas pelas artes, mas também por outros tantos campos e sujeitos.

Nos últimos tempos, recordo de dois personagens importantes para a construção política de uma imagem do Nordeste: Francisco Julião (1915-1999) e Celso Furtado (1920-2004). Lembro o primeiro pela recente leitura do livro “Francisco Julião: em luta com seu mito” (2016), obra do historiador pernambucano Pablo Porfírio, que possui ainda uma vasta produção de artigos sobre o advogado das denominadas Ligas Camponesas. O segundo, pela efeméride (virtual) em torno do seu centenário, em 2020. Ambos, personagens importantes do cenário conturbado da luta pela terra vivenciada no Brasil durante os anos 1950 e 1960.

As Ligas Camponesas ergueram-se no Nordeste brasileiro com o intuito de combater a cultura do latifúndio. Criadas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1945, estas organizações defendiam a reforma agrária e melhores condições de trabalho no campo. Durante o governo Dutra, a ilegalidade do PCB fez com que as Ligas fossem duramente sufocadas.

Dez anos depois, no Engenho Galileia, na cidade de Vitória de Santo Antão (PE), foi criada e legalmente constituída a Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP). O movimento social tinha por finalidade auxiliar os camponeses com despesas funerárias, assistência médica e jurídica, formando ainda uma cooperativa de crédito que buscava livrar o camponês do domínio do latifundiário.

Além de promover a institucionalização da SAPPP, o advogado e então deputado estadual, Francisco Julião, conseguiu, em 1959, a desapropriação do engenho em favor dos arrendatários, numa luta política e jurídica travada com a família do proprietário Oscar Arruda Beltrão. Em meio às disputas, a imprensa prontamente chamou a SAPPP de Liga, em referência ao antigo movimento do PCB.

A questão da terra motivou também ações do governo federal. Ainda em 1959, o presidente Juscelino Kubitschek criou a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), idealizada por Celso Furtado. O objetivo era produzir estudos sobre a situação socioeconômica do Nordeste e encontrar soluções para a região. Em diferentes frentes, muitas vezes conflitantes, Julião e Furtado atuaram politicamente no contexto nordestino assolado pela fome e por injustiças sociais.

Apesar de renomados e estudados, um fato pouco conhecido é que Francisco Julião e Celso Furtado foram protagonistas do documentário estadunidense Brazil: The Troubled Land (1961), dirigido pela cineasta Helen Jean Rogers e produzido pela emissora de televisão American Broadcasting Company (ABC), de Nova Iorque. Filme inédito no Brasil até o ano de 2000.

Alerta de spoiler


O filme narra a luta pela terra no Nordeste brasileiro sob um panorama da Guerra Fria, momento em que o flagelo da região é tido como um espaço propício à difusão do comunismo.

Celso Furtado chegou a afirmar em sua autobiografia que, por seu caráter polêmico, o Conselho de Segurança Nacional julgara inconveniente a exibição do filme em território nacional. Possivelmente o consideraram “subversivo”. A luta no campo era uma ferida exposta do Brasil, que a ditadura militar brasileira tratou de tentar apagar desde os primeiros momentos do golpe, como mostra um outro documentário famoso – Cabra marcado para morrer (1984), dirigido pelo carioca Eduardo Coutinho.

Mas voltemos à produção estadunidense. Em 1961, a diretora Helen Jean Rogers esteve no Brasil para documentar o movimento social das Ligas Camponesas e a vida do trabalhador no campo. A realização do filme recebeu apoio logístico da Sudene, com direito a sugestões de Celso Furtado acerca das filmagens. O contato com o órgão federal revela o estreitamento das relações entre os EUA e o Brasil, ainda mais alinhados naquele ano com a criação da “Aliança para o Progresso”, programa cooperativo proposto pelo governo do presidente norte-americano John F. Kennedy (1961-1963).

Destinado a acelerar o desenvolvimento econômico e social da América Latina e – o que era ainda mais importante para os EUA – impedir o avanço do socialismo e do comunismo na região, a Aliança para o Progresso teve como um dos principais centros de atuação o Nordeste brasileiro. O órgão chegou a investir milhões de dólares em cooperação técnica com a Sudene (PORFÍRIO, 2016, p. 31).

A preocupação dos EUA com o Brasil é expressa no argumento principal do documentário: evitar que o Brasil não se tornasse uma nova Cuba. No cenário de Guerra Fria, o Nordeste brasileiro era peça chave da disputa entre EUA e URSS, visto como um território “perigoso” sob o olhar da Central Intelligence Agency (CIA) e da imprensa estadunidense.

A presença da TV ABC na zona da mata pernambucana, histórica região canavieira do Nordeste, é um exemplo desse olhar estrangeiro sobre o país. Como fio condutor da peça, Helen Rogers filmou a vida de um trabalhador do campo: Severino que, como tantos outros Severinos, “iguais em tudo na vida”, exprimia a “realidade” dos camponeses.

As filmagens revelam uma proximidade da diretora com cada um dos personagens. A trajetória de Severino mostra ao público o drama e a pobreza do camponês e de sua família. Os discursos e atuações de Francisco Julião são acompanhados de perto. Celso Furtado concede uma entrevista sobre as ações da Sudene para solucionar aquelas mazelas. Ainda tão presente em nossas elites, é de se destacar o exibicionismo do “coronel” Constâncio Maranhão, patrão de Severino, em posse de um revólver: “Essa é a minha arma. Essa é a lei aqui, decide tudo. A melhor feita nos Estados Unidos. É a coisa mais importante que possuo”. Os tiros do coronel diante da câmera representam a origem do poder secular do latifúndio. Numa clara referência às Ligas, afirma: “se alguém chegar aqui e tentar organizá-los, ‘o pau comeu’” (enquanto a legenda traduz o nordestinês como: eu mato).

A proximidade com os personagens é expressa ainda por uma fotografia publicada pelo jornalista Urariano Mota, enviada pelo fotógrafo espanhol Fernando Martinez Lopez, que trabalhou na produção. Nela, podemos ver Julião ao lado de Rogers, de braços dados, ambos sorrindo. Mota (2015) descreve a foto: “Helen Rogers, Francisco Julião, Eva (tradutora) e Bill Hartigan (cinegrafista). Era um flagrante da política traiçoeira dos Estados Unidos, que enviara uma bem-intencionada cineasta ao Nordeste do Brasil, para que documentasse uma nova Cuba em território pernambucano (...)”.


Helen Rogers, Francisco Julião, Eva e Bill Hartigan. Acervo Pessoal de Fernando Martinez Lopez, Fonte: Jornal GGN.

Traiçoeira, pois o filme é uma peça panfletária contra as Ligas e, especialmente, contra o próprio Francisco Julião. “Ele é um seguidor de Fidel Castro e Mao Tsé-Tung, inimigos dos Estados Unidos. Ele fala com os camponeses do Brasil, mas suas palavras ecoam por toda a América Latina”, exalta a narração do filme em seus momentos iniciais. A fome, a pobreza, os baixos salários, a exploração latifundiária são apresentados tão somente como caminhos para o comunismo. Tornando camponeses, como Severino, “presas” fáceis. E vinte milhões de camponeses ocupam aquela região, alerta o narrador.

A entrevista com Furtado na Sudene é o único momento em que escutamos a voz da Helen Rogers. Marcando sua presença direta no filme, ela questiona:

O que os Estados Unidos podem fazer para ajudar?

John Kennedy e Celso Furtado na Casa Branca discutindo o desenvolvimento do Nordeste brasileiro (1961). Acervo Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.

Acredito que o primeiro brasileiro a ver este filme foi o próprio Celso Furtado. Em 1961, ele esteve na Casa Branca para encontrar com o presidente John Kennedy e discutir sobre planos de cooperação ao desenvolvimento do Nordeste da Aliança para o Progresso. Na oportunidade, o documentário foi exibido a convite do próprio Kennedy. De acordo com o depoimento de Juarez Farias, advogado e economista que acompanhou Furtado a Washington:

Celso foi à audiência [com J.F. Kennedy], e quando terminaram os 15 minutos [tempo da reunião], o cerimonial avisou ao Presidente Kennedy e ele pegou Celso pelo braço. “Vamos aqui que eu quero mostrar um documento”. Aí Celso saiu com ele pela Casa Branca e foi para o Salão de Cinema e estava lá o filme The Troubled Land, o Problema da Terra, numa tradução livre, que era a história do Severino. Kennedy disse: “Esse filme foi visto por 35 milhões de americanos. Nós estamos decididos a ajudar o Nordeste” (IN: SOUSA; THEIS; BARBOSA, 2020, p. 52).

O filme gerou comoção dos estadunidenses. Em julho de 1961, o Correio Braziliense (11 jul. 1961, Brasília, p. 1, 1º caderno) noticiou a chegada de donativos aos nordestinos do Brasil: “desde a exibição em cadeia da ABC, no dia 13 de junho, vem chegando cartas tanto à ABC, como a jornais, perguntando como o signatário poderá prestar sua ajuda”. Foram coletadas roupas e até dinheiro para comprar terras aos camponeses. A diretora Helen Rogers foi solicitada a enviar donativos dos Estados Unidos ao Brasil através da Embaixada dos EUA e da Cruz Vermelha.

A interferência de Helen Rogers nas questões políticas brasileiras, todavia, não se tratava de uma “estreia”. A estudante Helen Jean Rogers Secondari esteve no Brasil no início da década de 1950, período em que a União Nacional dos Estudantes (UNE) viveu uma ascensão direitista. Entre 1951 e 1952, ela atuou como representante internacional da National Student Association (NSA) na Europa e América Latina. Arthur Poerner (2004, p. 42) chega a afirmar que, em 1951, era a estudante quem ditava as normas para a UNE. Rogers foi enviada pelo departamento de Estado dos EUA, através de setores governamentais “especializados” em assuntos estudantis, preocupados com a situação política do país. O objetivo era claro: deter a “infiltração comunista” nas universidades brasileiras. Distantes 10 anos, as viagens de Rogers ao Brasil em 1951 e 1961 apresentam o mesmo teor: o medo do comunismo.

O golpe de 1964 foi uma vitória dos EUA. E também do latifúndio. A Sudene ficou sob o comando dos militares. As Ligas sucumbiram. Com a edição do primeiro Ato Institucional (AI-1), Celso Furtado foi incluído na lista de cassados, perdendo seus direitos políticos. Em abril de 1964, seguiu para o Chile, indo posteriormente para os EUA e para a França em exílio. Francisco Julião foi preso e exilado, deixou o país em dezembro de 1965 com destino ao México. Com a anistia, ambos retornaram ao Brasil em 1979.

Uma cópia de The Troubled Land permaneceu guardada na residência de Furtado no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e foi recuperada quando voltou do exílio. O achado foi exibido em 2000, nas celebrações do octogésimo aniversário do economista. A versão que circula nas redes (Vimeo e Youtube) facilitou o acesso do público ao rico conteúdo histórico e audiovisual. 1961 esteve muito próximo de 1964. O golpe, apoiado pelos EUA, se concretizou reorganizando as complexas forças políticas do país. E os nossos vizinhos não deixaram de vigiar o Nordeste brasileiro.

Em novembro de 1965, Bob Kennedy, então senador dos EUA e irmão de John Kennedy (assassinado em 1963), esteve em Pernambuco. Foi à Zona da Mata, na cidade de Carpina, onde discursou para os trabalhadores rurais. Discursou também no Recife, simbolicamente, em frente ao Edifício JK no Centro da Cidade, e na Sudene. Mas essa talvez seja uma outra história para esta coluna. Apenas evidencio aqui o traço da incessante sentinela estadunidense.

Por hora, convido aqueles que chegaram até aqui e ainda não assistiram Brazil: The Troubled Land que assistam a essas raras imagens do “encontro” entre Julião, Furtado e a Guerra Fria.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009.

FURTADO, Celso. Obra autobiográfica: fantasia organizada, a fantasia desfeita, os ares do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

MOTA, Urariano. Descoberto o filme que o Brasil não podia ver. Jornal GGN (site), 7 nov. 2015. Disponível em: https://jornalggn.com.br/historia/descoberto-o-filme-que-o-brasil-nao-podia-ver/.

POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros. Rio de Janeiro: Booklink, 2004.

PORFIRIO, Pablo F. de A. Francisco Julião: em luta com seu mito. Golpe de Estado, exílio e redemocratização no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.

SOUSA, Cidoval Morais de; THEIS, Ivo Marcos; BARBOSA, José Luciano Albino (Orgs). Celso Furtado a esperança militante (Depoimentos) - Vol 2. Campina Grande: EDUEPB, 2020.



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