Trajetória pela memória
Atualizado: 29 de mai. de 2021
Nesta coluna, pretendo refletir sobre a potencialidade que os lugares de memória e os patrimônios difíceis relacionados à ditadura civil-militar brasileira podem ter no estabelecimento de pontes com a Educação em Direitos Humanos. Para isso, pretendo escrever e convidar pesquisadores, agentes sociais, representantes de entidades, militantes dos Direitos Humanos e outros que estejam imbuídos da mesma luta para contribuir com a coluna. Para uma compreensão maior de quem sou e do porquê da escolha do tema, escrevo um pouco sobre o meu percurso.
Iniciei minha trajetória nas áreas de História, Memória e Patrimônio aos 30 anos, quando fiz o curso técnico de Museu no Centro Paula Souza na ETEC do Parque da Juventude em São Paulo, no ano de 2009. Para a conclusão dele, estudei aquela que é considerada a matriz do samba paulista: o Samba de Bumbo, ou “Samba Rural Paulista”, como Mário de Andrade nomeou em suas pesquisas. O TCC tinha por objetivo apresentar um plano expográfico completo sobre o tema, o museu que abrigaria a exposição, seus custos etc. Através deste primeiro processo de pesquisa, tive a oportunidade de conhecer uma manifestação cultural que tem na memória um vetor de influência, permanência e resistência.
Por meio do curso, entrei como estagiário no setor Educativo do Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) e, somado ao período em que supervisionei o setor, permaneci oito anos na instituição, trabalhando com educação em museu. Localizado na última chácara conventual da cidade de São Paulo, o Mosteiro da Luz abriga o museu e, desde 1774, ano de sua fundação, é mantido por monjas concepcionistas da Ordem da Imaculada Conceição. Construído em taipa de pilão, o prédio é tombado nas três esferas do patrimônio: nacional, pelo IPHAN; estadual, pelo Condephaat; e municipal, pelo Conpresp. Mesmo que seu tombamento esteja inserido no contexto das primeiras proteções feitas pelo IPHAN – preservação de construções luso-coloniais – instiguei-me a querer saber mais sobre o processo de transformação de um bem em patrimônio.
Ainda no museu, iniciei minha formação em História. Primeiro em uma faculdade privada, e posteriormente na Universidade Federal de São Paulo, a UNIFESP. Nela, participei de dois grupos de estudos que me direcionaram ainda mais para as temáticas que pesquiso: Grupo de Visitas, Estudo e Pesquisa em Patrimônio (GVEPP), com a coordenação da professora Lucília Siqueira; e o Grupo de Estudos Ditadura e Memoriais, com a coordenação da professora Graciela Foglia. Lembro que, em uma das visitas que realizamos pelo GVEPP ao órgão estadual de patrimônio, tive contato, pela primeira vez, com a temática sobre patrimônios difíceis na conversa com a historiadora e servidora do órgão, Deborah Neves. Ela foi a responsável pelo relatório que subsidiou o parecer favorável ao tombamento do complexo que abrigou a antiga Operação Bandeirante (OBAN) e o DOI-Codi de São Paulo, em 2014, e que, hoje, analiso para a minha monografia final do curso de História.
Após sair do museu, estagiei no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-SP), no Arquivo Textual, ficando um ano e meio. Tive a oportunidade de trocar experiências com historiadores, arquivistas, arquitetos e arqueólogos, o que em muito contribuiu para que meu entendimento sobre o tema do patrimônio se ampliasse. Auxiliar pesquisadores nos processos de tombamento que estão no arquivo também ajudou a conhecer mais sobre como funcionam os trâmites internos da instituição. Ao sair, testemunhei brevemente o início do processo que visa registrar o Samba de Bumbo como patrimônio imaterial brasileiro.
Desde julho de 2019, estou no Núcleo de Preservação da Memória Política, mais conhecido como Núcleo Memória (NM), entidade que trabalha com a preservação e a promoção da memória das lutas políticas no país, valorizando a educação em direitos humanos e os lugares de memória relacionados à ditadura civil-militar. O NM tem participado da construção de um memorial que trabalhará com as memórias de luta e resistência de diferentes grupos sociais (trabalhadores, estudantes, advogados e ex-presos políticos). O local escolhido para abrigá-lo será nas antigas Auditorias Militares Federais da 2ª Circunscrição Judiciária, símbolo da repressão e resistência na ditadura, localizado na capital paulista, e se chamará Memorial da Luta pela Justiça. O NM também participou do processo de implementação do Memorial da Resistência de São Paulo, é membro da Rede Latino-americana e Caribenha de Lugares de Memória (RESLAC) e da Coalizão Internacional dos Sítios de Consciência (ICHS), além de ter articulado a construção da Rede Brasileira de Lugares de Memória (REBRALUME). O NM realiza, ainda, o curso intitulado “Lugares de Memória e Direitos Humanos no Brasil” que, por conta da pandemia do coronavírus, foi realizado de maneira virtual, possibilitando que pessoas de diversos lugares do país e do exterior participassem. Nesse sentido, iniciamos um ciclo de lives chamado “Conhecendo Lugares de Memória”, em que são apresentados locais já consolidados (ou que estejam em processo) que fazem parte da REBRALUME.
O exercício de revisitar minhas memórias no percurso feito até aqui pelas áreas de História, Memória e Patrimônio, me dá a certeza de que nada teria sido feito caso pessoas não tivessem oportunizado espaços para o diálogo, como foi feito aqui no História da Ditadura, através do convite do Paulo César Gomes. Colegas, professores, alunos, visitantes, técnicos, profissionais, ex-presos políticos, militantes dos Direitos Humanos, e tantos outros tem me mostrado, nestes últimos 12 anos, que fala e escuta são imprescindíveis para a transformação. E essa “pedagogia do diálogo”, como diria Paulo Freire, que pretendo estabelecer nesta coluna. Sejam bem-vindes!
Este artigo é dedicado à memória de Raphael Martinelli e Alípio Freire.
Créditos da imagem destacada: Ato da Frente Povo sem Medo Ditadura Nunca Mais - DOI-CODI, São Paulo, 05.ago.2019. Foto: César Rodrigues (Acervo do autor).
És uma pessoa de conhecimento singular!!! Parabéns pela coluna!!!!
Grande César, excelente trabalho e parabéns pela caminhada meu amigo!
Viva o César! Suas experiências pessoal e profissional são incríveis e vai ser ótimo aprender com você por aqui!
Trajetória significativa de um historiador que vai, no caminho, transitando pela complexidade das fontes e o comprometimento do político.
Parabéns pelo caminho e pela coluna!