Um historiador, a República e os quartéis
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  • Foto do escritorVictor Traldi

Um historiador, a República e os quartéis

Atualizado: 29 de abr. de 2021


 

Um choque de realidade política nos sonhos de juventude me levou a estudar os militares.


 

Era junho de 2013. Com dezesseis anos à época, eu não estava nas ruas em meio aos protestos que tomaram o Brasil, nos quais se agregaram as mais diversas reivindicações. “O povo acordou”, era o que se dizia. Na sala de casa, assistia atônito às imagens de Brasília, onde centenas de pessoas subiam no prédio do Congresso Nacional – cenas inéditas e inusitadas para mim. Lembro-me de ter sentido um frio na barriga: aquilo claramente era um grande acontecimento, aquilo parecia “histórico”. Entretanto, passadas as manifestações, minhas atenções se voltaram às preocupações mais imediatas daquele momento da vida. Ainda não sabia que junho de 2013 era somente o início de grandes mudanças no Brasil.


Cinco anos depois, em 2018, um polêmico deputado federal do Rio de Janeiro – capitão reformado do Exército Brasileiro e entusiasta da ditadura militar – chegava ao segundo turno da eleição presidencial. Mesmo afastado da campanha e dos debates televisivos por conta do atentado a faca sofrido em Juiz de Fora, Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente da República com mais de 55 milhões de votos. Porém, mais do que apenas a ascensão política de um deputado folclórico, a eleição de Bolsonaro foi o coroamento do retorno dos militares a um papel de protagonismo na política brasileira. Após dois anos de governo Bolsonaro, mais de seis mil militares – da ativa e da reserva – ocupam cargos no Poder Executivo. O vice-presidente, Hamilton Mourão, é um general-de-Exército, e onze dos atuais vinte e três ministros de Estado têm formação militar. Além disso, não raro, apoiadores do presidente clamam por uma intervenção das Forças Armadas na política nacional.


Contudo, voltemos novamente no tempo. Entre 2014 e 2018, minha preocupação com o cenário político do país crescia na mesma medida em que meu interesse por temas relacionados às Forças Armadas. Como aluno de graduação em História, estudei a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e, principalmente, a ditadura militar brasileira. Na arena política, a sucessão de acontecimentos parecia cada vez mais rápida: a reeleição de Dilma Rousseff, a crise de seu segundo mandato, o impeachment, o turbulento governo de Michel Temer... E, em um piscar de olhos, o Brasil passou a ser governado por oficiais do Exército que elogiam torturadores. Esse foi o choque de realidade política que me levou a estudar os militares.


Posse de Jair Bolsonaro. Autor: Marcos Brandão (Agência Senado). Wikimedia Commons.

Ora, o retorno dos militares ao poder não aconteceu em um piscar de olhos. A inquietação acerca das causas mais profundas e das consequências desse processo é compartilhada por diversos estudiosos das Ciências Humanas, que vêm publicando suas interpretações nos últimos anos . O objetivo dessa coluna, A República e os quartéis, é contribuir com essa discussão por meio de artigos que reflitam acerca das relações entre os militares e a política no Brasil.


Para pensar essas relações, voltaremos nossas atenções ao passado, notadamente à ditadura militar e ao início da Nova República, períodos de importantes transformações na política e nos quartéis. O regime autoritário que durou mais de duas décadas e o problemático processo de redemocratização do país surtiram efeitos que são sentidos ainda hoje. Portanto, é necessário revisitá-los e deles pinçar elementos que possam ajudar a explicar o complexo cenário atual. Como é imperativo ao historiador que se debruça sobre o tempo presente, assuntos contemporâneos relativos às Forças Armadas também serão abordados, como a atuação dos militares no combate à pandemia de Covid-19, as operações de Garantia da Lei e da Ordem, as polêmicas discussões acerca do Artigo 142 da Constituição Federal, a Lei n. 13.954/19 – que promoveu a reestruturação da carreira militar –, os gastos do Ministério da Defesa e, é claro, os militares e o governo Bolsonaro. Os temas são os mais variados e as fontes são abundantes.


O historiador José Murilo de Carvalho, ao rememorar os acontecimentos de 1964, afirmou que “já na época, pareceu-me que a falta de previsão sobre a natureza do golpe devia ser atribuída à falta de conhecimento sobre um ator fundamental da vida republicana que eram os militares” . Desde então, nosso conhecimento sobre as Forças Armadas brasileiras aumentou consideravelmente, mas, mesmo assim, nos encontramos novamente em um momento de grande fragilidade da democracia e suas instituições. O que, como historiadores, podemos fazer diante desse contexto? É o que buscarei responder em A República e os quartéis.


Créditos da imagem destacada: Deposição do Governo João Goulart – Golpe de 1964. 02 abr. 1964. Fundo documental: Correio da Manhã. Wikimedia Commons.


  1. CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Edição revista e ampliada. São Paulo: Todavia, 2019. p. 9.

  2. Algumas das dezenas de recentes publicações que se debruçam sobre esse processo e sobre a relação dos militares com o governo Bolsonaro são: AMORIM NETO, Octavio; ACÁCIO, Igor. De volta ao centro da arena: causas e consequências do papel político dos militares sob Bolsonaro. Journal of Democracy em português, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 1-29, nov. 2020; CARVALHO, José Murilo de. Uma república tutelada. In:______. Forças Armadas e política no Brasil. Edição revista e ampliada. São Paulo: Todavia, 2019. p. 15-25; FREIXO, Adriano de. Os militares e o governo Jair Bolsonaro: entre o anticomunismo e a busca pelo protagonismo. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2020; MARTINS FILHO, João Roberto. Ordem desunida: militares e política no governo Bolsonaro. Perseu: História, Memória e Política, São Paulo, n.18, ano 13, p. 167-193, out. 2019; ORTEGA, André; MARIN, Pedro. Carta no coturno: a volta do partido fardado no Brasil. São Paulo: Baioneta Editora, 2019; PINTO, Eduardo Costa. Bolsonaro e os quartéis: a loucura com método. Texto para Discussão do IE/UFRJ, Rio de Janeiro, n. 6, p. 1-29, mar. 2019; SOARES, Samuel Alves. Volvieron los militares en Brasil? La democracia obstruida por la cuestión militar. Nueva Sociedad, Buenos Aires, n. 278, p. 48-58, nov.-dez. 2018.

  3. CARVALHO, op. cit., p. 172.

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