Uma ditadura contra a corrupção?
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Uma ditadura contra a corrupção?

Atualizado: 15 de out. de 2020

Imagine 14 toneladas de papel. Para fabricá-las foram necessários algo em torno de 200 árvores, 140 mil litros de água e 70Mw/hora de energia elétrica.[1] São essas as dimensões do material produzido pela ditadura militar contra os acusados de corrupção. Ao todo formaram mais de 3000 processos com denúncias de enriquecimento ilícito dos mais variados tipos, que incluíram desde pequenos roubos de materiais de construção em obras de cidades do interior até enormes desfalques, fraudes contratuais, contravenções, e supostas fortunas acumuladas por políticos. Analisar esse acervo é o meu trabalho.

O combate à corrupção foi uma das bandeiras do movimento de 31 de março de 1964. Às vésperas do golpe, nos primeiros meses daquele conturbado ano, o comunismo e a quebra da hierarquia nas Forças Armadas, segundo a maior parte da grande imprensa escrita e os opositores do presidente João Goulart, eram os perigos em jogo; no entanto, devemos lembrar que, ao menos há uma década, grupos de projeção nacional já defendiam a causa do combate à corrupção com grande entusiasmo. Lembre-se, por exemplo, das pressões contra Getúlio Vargas, acusado de instaurar um “mar de lama” no Catete. Ou da campanha eleitoral bem-sucedida de Jânio Quadros que angariou quase seis milhões de votos. “Varre, varre, vassourinha, varre, varre, a bandalheira pois o povo já está cansado de sofrer desta maneira”, dizia o conhecido jingle. A corrupção foi central no debate político do país desde meados da década de 1950 e a esperança de combatê-la animava muita gente, especialmente entre as classes médias das grandes cidades, que lotavam as fileiras do principal partido de oposição naquele período, a União Democrática Nacional (UDN). Carlos Lacerda, um de seus líderes, falava constantemente pelo rádio e no jornal Tribuna da Imprensa sobre a crise moral na política e era acompanhado por uma enorme legião de pessoas. As principais vítimas de acusações eram os presidentes Vargas, Kubitschek, Goulart e os políticos ligados a eles, expostos como corruptos, demagogos e aproveitadores das benesses do poder.

Getúlio Vargas

Getúlio Vargas (Imagem: Reprodução)


O assunto era comum também nos quartéis. Embora haja uma ideia de que os militares profissionais não devem se envolver em política, basta um rápido olhar sobre a história republicana brasileira para perceber que esse modelo não se cumpre. A dinâmica dos quartéis foi decisiva no cenário nacional desde, pelo menos, o fim da Guerra do Paraguai, ainda no Império. A partir daí a grande política do país interessou também aos militares. Nisso esteve incluída a corrupção. Basta ver algumas das aparições públicas de oficiais e seus principais manifestos desde a época do suicídio de Vargas. Em vários deles, há sinais de preocupação com o tema. Para os mais radicais, o caminho que aos poucos se abria era o da intervenção para a “solução” do problema. Muitos foram seduzidos pelos discursos de Lacerda, pela ação da UDN, e compartilhavam um moralismo diante dos políticos. O radicalismo militar, expresso em diversas tentativas de golpe, também se inspirava nisso. Veja, por exemplo, a Revolta de Aragarças, perto do fim do governo de JK. Seu objetivo era o de promover a campanha de Jânio Quadros e a necessidade de “moralização dos costumes políticos”, como se dizia.

João Goulart (Imagem: Reprodução)

João Goulart (Imagem: Reprodução)


Com a ditadura em curso após 1964, a corrupção foi um dos motivadores da chamada “operação limpeza”, logo no início do regime. Para executá-la, foi criada a Comissão Geral de Investigação (CGI) que centralizou os Inquéritos Policiais-Militares (IPMs) e mirou os tachados de “subversivos” e “corruptos”. Os responsáveis por estas investigações formaram cedo a “linha dura” do governo e defendiam o aprofundamento do caráter autoritário daquela que se proclamava “Revolução”. Os duros exigiram rapidez nas punições, razão pela qual o responsável pela CGI, o marechal Taurino de Resende, foi exonerado de sua função pouco tempo após posse, por não ser eficiente. Na ocasião de sua saída, declarou que “o problema mais grave do Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”. Quem assumiu seu lugar foi o almirante Paulo Bosísio, que recrutou membros das polícias estaduais e civis para acelerar os resultados do novo organismo. Entretanto, ainda em outubro de 1964, a comissão teve de paralisar seus trabalhos, pois o artigo sétimo do ato institucional de 9 de abril, que embasava punições dessa natureza, expirou. No relatório que entregou ao presidente Castelo Branco sobre as atividades da CGI, Bosísio não escondeu sua frustração pela “falta de prazo” para os trabalhos e declarou esperança de que o governo pudesse alcançar “horizontes infinitamente mais amplos do que aqueles que podemos descortinar sob nossa modesta posição.”. Era uma forma de pressionar o presidente por novas punições.

Elas só vieram anos mais tarde. Em 1968, um órgão específico sobre o tema foi criado, a Comissão Geral de Investigações, de mesma sigla que o anterior, mas de procedimentos e atuação diferentes. Foi responsável por investigar denúncias de enriquecimento ilícito e sugerir a pena de confisco de bens ao presidente da República, algo que se tornou possível por meio do artigo oitavo do AI-5. A CGI era financiada pelo ministério da Justiça e, aos poucos instalou seções pelos estados, as chamadas subcomissões gerais de investigações, SCGI. Esse conjunto de organismos especializados no combate à corrupção foi o chamado “sistema CGI”, que funcionou durante dez anos e produziu o imenso acervo de que falamos no início desse texto e que hoje está sob a guarda do Arquivo Nacional.

Juscelino Kubitschek (Imagem: Reprodução)

Juscelino Kubitschek (Imagem: Reprodução)


Todo esse ativismo da ditadura pode levar à interpretação apressada e, infelizmente, bastante comum, de que “na ditadura não havia corrupção”. Essa é uma hipótese que não se sustenta diante da pesquisa histórica. A censura aos grandes meios de comunicação não permitia que a população conhecesse os casos de desvio de dinheiro público, exceto quando interessava ao regime. Na prática, a fala moralista voltada para a condenação de desfalques das fortunas públicas funcionou, ao mesmo tempo, como um recurso para perseguir inimigos políticos e foi uma tentativa de legitimar o governo autoritário. Muitos eram os que defendiam a suposta “mão firme” dos militares. O que hoje sabemos é que a CGI não foi muito efetiva e, como admitiram alguns de seus membros em relatórios, era uma espécie de espantalho. Apenas assombrou aqueles que foram atingidos por suas investigações. Puniu poucos e não modificou a relação com a coisa pública, como se declarou que iria fazer. Fora isso, casos de obras faraônicas e soluções econômicas suspeitas habitam, até hoje, a imaginação popular sobre os generais.

O anseio de combater a corrupção não justifica, ou explica, sozinho, a ditadura. Conecta-se a outras questões fundamentais, tão ou mais relevantes; mas, se quisermos realmente entendê-la, serão inúteis explicações simplistas ou que se prendam somente aos relatos daqueles que a viveram, em uma batalha de memórias e versões, que pouco contribui para o entendimento histórico. O estudo da atuação da ditadura contra a corrupção ajuda a perceber as expectativas e valores daqueles que se envolveram na defesa do regime autoritário. Em que acreditaram e quais lógicas orientaram suas ações. Revela, ainda, uma face incômoda da história da ditadura: muitos foram os que a defenderam, direta ou indiretamente. Alguns serviram de forma ativa aos porões da repressão. E não apenas militares: muitos foram os civis, cidadãos comuns, que contribuíram com o governo ditatorial. Os arquivos da CGI estão lotados de evidências desse tipo.

Em tempos onde a corrupção segue na ordem do dia, em que se discute seus impactos na sociedade brasileira e em suas práticas políticas, não parecerá inoportuno olhar para uma época em que o tema contribuiu para a defesa de um regime violento que durou mais de vinte anos.

Diego Knack é historiador.

Para saber mais sobre o assunto:

[1] Informações do Departamento de Energia dos Estados Unidos.

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