Uma “Lição de Liberdade”?
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  • Foto do escritorMélanie Toulhoat

Uma “Lição de Liberdade”?

Atualizado: 9 de mai. de 2022

Acaso e escolhas em uma pesquisa sobre histórias, educação popular e histórias em quadrinhos.


No ano de 2017, durante a fase mais difícil da redação da minha tese, eu já estava, de certa forma, isolada social e geograficamente – como a maioria dos profissionais da área a essa altura da realização do doutorado. Corri muito para terminar meu trabalho e defendê-lo em setembro de 2019, para, finalmente, poder desfrutar da imensa liberdade de sair, de viajar, de curtir. E chegou a pandemia... Contudo, em 2017, eu ainda tentava – metódica e freneticamente, página após página – compensar o atraso acumulado durante os anos anteriores: analisava os desenhos deixados de lado, consertava o que eu havia errado e lutava para não deixar o navio afundar. Buscava escrever incansavelmente, até finalizar a tese. Assim, não houve tempo para o desenvolvimento de novas reflexões: tudo ficou para depois.


Mas foi nesse período que conheci, quase por acaso, o Instituto de Ação Cultural (IDAC), fundado em 1971 em Genebra por Paulo Freire, o cartunista Claudius Ceccon e o casal Rosiska e Miguel Darcy de Oliveira, assim como os projetos de educação popular desenvolvidos pelo IDAC em países da África Lusófona. Enquanto relia as edições do periódico paulista Versus, deparei-me com uma história em quadrinhos publicada em 1977: “Lição de Liberdade”, dividida em sete pranchas.


Versus, n. 15, outubro de 1977, p. 35

As imagens – assinadas por Claudius Ceccon – contavam a história da Guiné-Bissau e de Cabo-Verde, evocando sucessivamente a África pré-colonial, o tráfico de pessoas escravizadas, o sistema colonial, a figura de Amílcar Cabral, a resistência contra uma sociedade piramidal e, finalmente, a difícil reconstrução dos países após a Independência. Lembro de ter pensado: “Uai... Claudius foi à Guiné-Bissau? Certo. Tratarei disso mais tarde”. O típico “eu faço isso depois”, semelhante ao “eu durmo apenas uma hora e volto a escrever” quando já são quatro horas da manhã.



De fato, tratei disso depois. Aconteceu em novembro de 2018, quando vi a chamada para o colóquio internacional “Afriques Transatlantiques” (Áfricas Transatlânticas), organizado na Universidade de Paris Diderot, no âmbito do projeto ANR-FAPESP “Transatlantic Cultures”. Lá, logo no início do verão de 2018, as coisas estavam começando a ficar realmente complicadas. Eu não tinha mais trabalho, mas não podia estar desempregada; tinha acabado de dar um curso de História do Brasil, mas que só seria pago vários meses depois; estava farta da minha tese, mas ainda me sobrava um pouco mais de um ano no doutorado. A chamada me atraiu e me fez lembrar de “Lição de Liberdade”, a história em quadrinhos do cartunista brasileiro contando as histórias da Guiné-Bissau – entre elas, a história da educação e da alfabetização no país. Portanto, eram muitas histórias para contar. Decidi cavar um pouco mais, procurar fragmentos. Com cerca de quinze linhas escritas, respondi à chamada e minha proposta foi aceita. Apresentei o que eu tinha: quase nada. Pistas de reflexões, ideias, intuição. Mas sentia que valia a pena. Sentia a excitação da descoberta, sentia os fios a desvendar e a tecer, sentia o ânimo de um novo projeto em potencial, mesmo atolada em um trabalho de tese sem fim – trabalho que, para constar, um dia chegou ao fim e cujo resultado me deixou orgulhosa e encantada. Em resumo, eu sentia que essa nova história poderia me levar para outro lugar.


Estes documentos iconográficos – pontos de partida de um projeto pós-doutoral atualmente em fase inicial –, me incentivaram a pesquisar as circunstâncias de sua realização. Foi assim que tomei conhecimento do encontro entre Cláudio Ceccon e Paulo Freire no exílio em Genebra, e da trajetória comum de ambos na África Lusófona. Com a fundação do IDAC, acolhido no Conselho Mundial das Igrejas, o grupo de brasileiros exilados queria responder coletivamente aos pedidos recebidos por Freire, que acabava de publicar sua famosa obra Pedagogia do Oprimido, nos Estados Unidos, e de realizar atividades educacionais de amplo alcance.


Mário Cabral, recém-empossado como Ministro da Educação da Guiné-Bissau, convidou-os em setembro de 1975 para contribuírem com seu Programa Nacional de Alfabetização e para mostrar-lhes alguns dos laboratórios precursores para a desconstrução do sistema colonial: as “brigadas de alfabetização”. O trabalho tinha um duplo objetivo: desenvolver a alfabetização de adultos na Guiné-Bissau e em Cabo Verde e realizar um seminário permanente sobre pedagogia. Eles se basearam fortemente no trabalho prévio realizado pelas forças do Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e na dinâmica de treinamento, rigor e conscientização desenvolvida durante a Guerra de Libertação (1963-1974).


Quando disse que tinha encontrado essas imagens “quase por acaso”, o “quase” é importante. No contexto de minha tese sobre o humor gráfico, publicada na imprensa independente durante a ditadura militar brasileira, eu já dava um papel de destaque a caricaturas, charges, histórias em quadrinhos, gravuras e fotomontagens. Sempre tentei analisar, criar e escrever uma história a partir das imagens, como fontes para a pesquisa; mas também considerá-las como elementos provocadores de desdobramentos, verdadeiros agentes da história. Usá-las como meras ilustrações do assunto, como pretextos ou como álibis para a abordagem de um assunto clássico: era isso que eu tratava de evitar. O problema é que partir de imagens para produzir reflexões e trabalhos científicos rigorosos na história significa inventar um pouco o próprio método, andar por aí, olhando o que está sendo feito na linguística e na semiologia. Naturalmente, hoje as fontes iconográficas não são mais banidas da caixa de ferramentas das historiadoras sérias e dos historiadores sérios. No entanto, cursos de metodologia especificamente dedicados às fontes visuais não são tão frequentes nas graduações e tampouco nos programas de pós-graduação – ainda menos se essas fontes visuais tiverem a “arrogância” de serem elementos satíricos ou humorísticos, e às vezes até mesmo em outra língua.


Serviço de cultura e educação nacional do PAIGC, O nosso livro, Uppsala, 1974, p. 1

Este quadrinho de Claudius – inicialmente feito em diapositivas para ser projetado como material didático – me levou ao campo da circulação de práticas anticoloniais e pedagógicas e ao estudo das possíveis reconfigurações das experiências pedagógicas de Freire. Assim, busco analisar as práticas educativas emancipatórias desenvolvidas na Guiné-Bissau e em Cabo Verde: os Centros de Educação Popular Integrada (CEPI); as escolas-piloto organizadas como no povoado Sedengal, no norte da Guiné-Bissau; a importância das brigadas de alfabetização durante a guerra de libertação liderada pelo PAIGC; os manuais escolares alternativos à educação colonial; os itinerários pedagógicos e os grupos de trabalho com as forças armadas ou em zonas rurais. Também procuro identificar as diferenças estruturais entre os processos na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, sendo que este último apresentou muito mais reminiscências do sertão de Pernambuco para os educadores brasileiros. A espinhosa questão dos desafios linguísticos entre o português e o crioulo também contribuiu para forjar o desafio deste projeto educativo.


Essa pesquisa lança luz sobre a circulação Sul-Sul das práticas pedagógicas transatlânticas, ao mesmo tempo em que aponta novas formas de estudar a desconstrução do sistema educativo colonial na África Lusófona. Passo a passo, nos arquivos on-line a que tenho acesso neste momento, no decorrer das entrevistas que consigo realizar, descubro os métodos de alfabetização para jovens e adultos, assim como os projetos de educação desenvolvidos durante a guerra pelo PAIGC, orientados para a emancipação, luta e conscientização. “Vô aprender a ler, pra dar lição aos meus camarada”, diz o samba popular. Cai como uma luva. Uma das linhas possíveis de continuidade entre o trabalho pioneiro realizado pelo PAIGC e as experiências postas em prática com o IDAC pode ser vista na necessária reconstrução do Estado, que encontrou na educação descolonial uma base fundamental.


Nô Pintcha, 1975, p. 4.

Desta vez, o quadrinho de Claudius me levou a considerar as imagens como suportes didáticos, elementos materiais e testemunhas de campanhas de alfabetização, ferramentas sonhadas da democratização dos saberes projetadas com um lençol branco e bancos de madeira nos subúrbios de Bissau. O material visual criado no âmbito destes trabalhos de alfabetização, educação popular integrada e circulações dos saberes e conhecimentos, teve obviamente um alto alcance simbólico, na valorização das riquezas e potencialidades, da força e sabedoria das pessoas que participaram destas iniciativas de desconstrução do sistema colonial. O quadrinho de Claudius me levou, de fato, a criar este novo projeto de pesquisa pós-doutoral, que tento desenvolver no Instituto dos Mundos Africanos em Aubervilliers, no suburbio norte de Paris. Espero sinceramente que, num futuro bem próximo, ele me leve de volta ao Brasil. Me levou de volta à educação popular, me levou de volta às imagens. Vai me levar a Lisboa, vai me levar num futuro bem proximo às ruas de Bissau e à cidade de Abidjan, na Costa do Marfim. Iêêê, me leva. Bem mais longe do que imaginava.


Créditos da imagem destacada: Chegada de Paulo Freire e Claudius Ceccon em Bissau, recebidos por Mário Cabral, 1976.


 
  1. Claudius Ceccon, “Lição de Liberdade” in Versus, n. 15, outubro de 1977, p. 35-41.

  2. Essa pesquisa de pós-doutorado está sendo desenvolvida no LabEx HASTEC (História e Antropologia dos Saberes, das Crenças e Técnicas) da Escola Prática de Altos Estudos (EPHE) em Paris, afiliada no Instituto dos Mundos Africanos (IMAF) no Campus Condorcet em Aubervilliers, durante o ano letivo 2020-2021.

  3. Paulo Freire, Pedagogy of the Oppressed, New York: Herder and Herder, 1970.

  4. Borges, Sónia Vaz. Militant Education, Liberation Struggle, Consciousness: The PAIGC Education in Guinea Bissau 1963-1978. Berlin: Peter Lang, 2019.

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