70 anos da morte de Getúlio Vargas: um ensaio sobre 1937, 1964 e os tempos atuais
Há 70 anos, Getúlio Vargas encerrava uma trama política intensa e desgastante com um tiro no peito, tirando a própria vida. O final trágico causou comoção nacional, em especial aos trabalhadores e milhões de admiradores que cultivou após cerca de 18 anos governando o Brasil. Em sua carta-testamento, ele se colocou como um mártir do povo brasileiro, que resistiu bravamente à sanha de seus adversários que, como anti-heróis, queriam escorraçá-lo do poder e fazer uso da política para benefícios privados.
Obviamente, ele não escreveu nenhuma linha sobre os anos ditatoriais de seu governo, regime em que violência e censura foram impostas e que teve como grande marca a propaganda sobre ele mesmo como um governante infalível, predestinado e bondoso. Seu sacrifício, quase análogo ao de Jesus Cristo, teria sido pelo bem dos humildes, inclusive tendo a consciência dos desdobramentos de tal ato para a posteridade, na frase final: "saio da vida para entrar na História".
Como um dos líderes do "Grupo de Pesquisa Dimensões do Regime Vargas e seus desdobramentos" (CNPq), me interessa muito essa palavrinha final: "desdobramentos". Nas disputas sobre a memória, na ressignificação que esta recebe de tempos em tempos pelas novas gerações, qual o lugar que os fatos ocorridos naquela época ocupam hoje na História do Brasil? De certo modo, sua ditadura é muito menos lembrada do que a de 1964. Não apenas por nosso último período ditatorial ser mais recente, mas também pelo fato de que muitas figuras políticas contemporâneas se engajaram nessa briga memorial a fim de exaltar o período de 1964 a 1985 como algo positivo e benéfico ao país, o que, consequentemente, despertou também o movimento contrário que visa rememorar os absurdos e crimes cometidos pela nossa última ditadura.
Relações entre as ditaduras de 1937 e 1964
Como pesquisador do período Vargas há mais de 20 anos, posso afirmar: estudar 1937 nos ajuda a compreender 1964. A segunda ditadura aproveitou (e muito!) do aparato repressivo construído durante o Estado Novo (1937-1945), inclusive as técnicas de tortura e de vigilância, muitas capitaneadas por Filinto Müller (1900-1973), homem-forte do presidente entre 1933 e 1942 na preparação e execução de políticas repressivas. Muller, aliás, se tornou senador e foi presidente da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de apoio à ditadura militar, no período que talvez tenha sido o de maior opressão do regime, entre 1969 e 1973.
As correlações não param por aí. Francisco Campos, autor da Constituição de 1937, ajudou na concepção de atos institucionais no imediato pós-golpe de 1964. E outras diversas figuras de destaque no governo Vargas apoiaram e/ou tiveram lugar no governo militar durante a ditadura seguinte. Além disso, de forma mais abrangente, é claro que o aparelhamento, a maior profissionalização e a valorização financeira e técnica das Forças Armadas brasileiras, desde 1930, as tornaram mais fortes e bem-preparadas a ponto de conseguirem tomar o poder das mãos de João Goulart alguns anos depois, em um golpe de Estado contra um presidente eleito democraticamente. Assim como o anticomunismo, que teve um protagonismo, a partir de 1930, que ainda não tivera anteriormente, e que serviu como mote para o golpe de 1937 e, igualmente, para o de 1964.
Mas se, por um lado, tivemos o "varguismo vencedor" na figura de uma ideologia autoritária, violenta e repressora; por outro, também tivemos outra faceta, o "varguismo derrotado", o que demonstra o enorme grau de complexidade que é estudar os períodos em que Getúlio Vargas governou o país. A conjuntura e seus aliados em 1930 são totalmente diferentes dos de 1934, que também se diferem daqueles de 1937 e, mais uma vez, mudaram completamente em 1951. Voltando aos "derrotados": é lógico que o golpe militar, que em 2024 completou 60 anos, se colocou frontalmente contra as reformas políticas e sociais que se desenvolveram desde os primeiros governos Vargas. João Goulart, que chorou e discursou no enterro de Getúlio, em 1954, era um dos admiradores e herdeiros do ex-presidente, e grande parte dos que se opuseram ao seu governo e apoiaram o golpe de 1964 tinha o trabalhismo e as políticas sociais como grandes adversários.
Permanências no tempo presente: políticos como “heróis salvadores”
Setenta anos depois do suicídio que parou o Brasil, levando uma multidão de pessoas emocionadas às ruas, o legado e os desdobramentos dos anos 1930, 1940 e 1950 subsistem até hoje, em diversos aspectos, uns com maior e outros em menor força. É chamada por alguns de "Era Vargas", expressão que evitamos usar por entendermos chancelar uma visão sacralizadora do presidente e que reforça a tal "história dos grandes homens" da qual tentamos nos dissociar.
Toda história é história contemporânea, disse Benedetto Croce. Algo similar também foi falado por José Honório Rodrigues e outros intelectuais brasileiros e estrangeiros. No sentido de que olhamos para o passado com as preocupações do presente, impelidos pelo que nos chama a atenção a partir dos dias de hoje. E assim é, muitas vezes, revisitado o período em que o Brasil teve Vargas como mandatário, sob o olhar do presente, na tentativa de compreender temáticas como o fascismo no Brasil, as leis trabalhistas, as grandes estatais, entre outras.
Nesse sentido, é possível perceber uma série de situações contemporâneas que se assemelham às vividas 70, 80, 90 anos atrás. Algumas delas, são hoje ainda desdobramentos daquela época. Um ponto que cabe citar é a "exaltação do líder", uma das características do nazifascismo e muito utilizada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) na estratégia de divulgação e sacralização da figura de Getúlio Vargas. Ao líder era atribuída a pecha de alguém inquestionável, sempre correto e que fazia o melhor pela nação.
Esse trabalho contínuo realizado pela ditadura de 1937 conseguiu construir um capital simbólico a Vargas como "pai dos pobres" que se perpetua até hoje na memória de muitos brasileiros. Não à toa, houve uma mudança no rumo das campanhas eleitorais no período liberal-democrático (1945-64) e até a União Democrática Nacional (UDN), organização partidária de oposição a Vargas, utilizou do mesmo expediente na propaganda política que elegeu Jânio Quadros como o herói que iria varrer a corrupção, usando como símbolo a vassoura.
Podemos citar diversos outros exemplos, como Fernando Collor, até chegar aos bolsonaristas que atribuíram ao ex-presidente uma aura antipolítica e antissistema, como se ele estivesse acima dos partidos políticos (não esqueçamos das palavras de ordem: “meu partido é o Brasil”) para resolver os problemas do país por meio de suas supostas características míticas. E mesmo alguns grupos de apoiadores de Lula, que o colocaram como figura imaculada, imune a qualquer crítica durante seu terceiro mandato.
Nacionalismo, estatais, leis trabalhistas... As marcas, hoje, dos anos de 1930, 1940 e 1950
Outro ponto muito desenvolvido pela propaganda do DIP, intensificado na Ditadura Militar (1964-1985) e valorizado, ainda hoje, pelos adeptos da educação conservadora é a questão da hierarquia e da disciplina. Traço presente na educação militar e transportado intensamente para os civis durante nossas duas ditaduras. Como dito por Gonzaguinha na música "Comportamento Geral", é como se impelissem à população a busca pelo "diploma de bem-comportado".
Mais um traço que permanece presente décadas a fio é o nacionalismo exacerbado, estimulado institucionalmente nos períodos ditatoriais e diretamente ligado ao autoritarismo e à imposição da hierarquia que citamos anteriormente. Nele, inclui-se como parte indissociável a luta anticomunista, vista como uma batalha contra uma ideologia estrangeira aos ideais nacionais, conforme foi também amplamente divulgado nos anos 1930 e 1940. A ideia de "Brasil, ame-o ou deixe-o", presente no marketing oficial nos anos 1960 e 1970, também se enquadra na mesma visão. Portanto, são vínculos bem nítidos entre 1937, 1964 e hoje.
Um debate também muito atual e necessário é a questão da privatização das grandes estatais, muitas das quais criadas durante o governo Vargas, como a Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional e a Petrobras. É impossível falar da importância delas para o desenvolvimento do país e os projetos que a elas foram vinculados, relacionados à industrialização e ao desenvolvimento nacional, sem voltarmos aos anos 1930 e 1940. Se queremos discutir o Brasil contemporâneo e o que pretendemos para o futuro, é essencial resgatar as origens e os objetivos traçados quando da criação dessas empresas nacionais. Muitas permanências são ainda mais visíveis e gritantes, de enorme simbolismo, como quando Lula imita Vargas e tira um retrato com as mãos sujas de Petróleo, logicamente se vinculando à imagem de protagonista na busca pelo desenvolvimento nacional autossustentável.
Outro exemplo é a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), assunto urgente e de primeira ordem. É igualmente improdutivo debater o significado e a importância das leis trabalhistas sem recordar o passado histórico e a luta dos trabalhadores pela sua implementação. Inclusive as interferências estatais e a forma como foi conduzida sua promulgação, aplicação e limites.
Por fim, entre outros tantos exemplos de assuntos de suma importância a serem pesquisados, que perpassam o governo de Getúlio Vargas e chegam até os dias atuais, cabe citar a música popular e o samba. Nos anos 1930, 1940 e 1950 ocorreu uma transformação cujos desdobramentos chegam até o Brasil de hoje. Vejamos a importância do samba atualmente, seja pela sua popularização internamente, seja como imagem do Brasil no exterior. Protagonismo que se deu a partir da oficialização (e mudança de características) do desfile das escolas de samba e da forma como o governo se relacionava com o carnaval de rua, que passou a ser fortemente apoiado, processo iniciado já nos primeiros anos após a Revolução de 1930.
Todos esses temas são passíveis de estudos pela História do Tempo Presente. A investigação dos períodos em que Getúlio Vargas foi presidente e ditador são de gigantesca importância para a História do Brasil, para a compreensão de quem somos, o que nos tornamos e como se construiu nossa memória, nossos hábitos, nossa cultura, nosso modo de ser. É imprescindível que a historiografia não deixe tais debates morrerem, em especial no ano em que se completam 70 anos da morte de Getúlio Vargas, por meio de um suicídio impactante para toda a sociedade, lembrado e debatido até hoje.
Afinal, cabe ao historiador lembrar o que a sociedade quer esquecer ou, muitas vezes, o que grupos específicos querem que a sociedade esqueça. Porque rememorar traz à tona o debate sobre assuntos como fascismo, estatais, leis trabalhistas, uso político do anticomunismo, exaltação ao líder... Assuntos que estão na ordem do dia, imprescindíveis para a compreensão de nosso país.
Como citar este artigo:
MOURELLE, Thiago. 70 anos da morte de Getúlio Vargas: um ensaio sobre 1937, 1964 e os tempos atuais. História da Ditadura, 27 ago. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/70-anos-da-morte-de-getulio-vargas-um-ensaio-sobre-1937-1964-e-os-tempos-atuais. Acesso em: [inserir data].
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