A ditadura do algoritmo e o governo Lula
Atualizado: 6 de fev. de 2023
Sabe-se que os algoritmos, alicerces da economia digital, servem de força-motriz para grande parte dos aplicativos e serviços de internet, e essa característica – pretexto eficaz para o controle de mercado – faz com que as empresas os mantenham em segredo.
Não obstante, deveria ser normatizada e normalizada a possibilidade de as pessoas decidirem se querem ou não receber sugestões, dentre inúmeras outras, de anúncios publicitários baseadas em informações coletadas sobre elas.
São raros os casos de países que começam a se atentar para a inadiável mediação e regularização, por parte do Poder Público, do manejo dos algoritmos – cada vez mais aprimorados pelas empresas de tecnologia.
É pertinente, portanto, analisar o lugar em que se encontra o Brasil nesse complexo cenário de administração e de sentido atribuído aos dados das pessoas, os quais perpassam, quase que em sua totalidade, pelo domínio e manipulação dos algoritmos.
No entanto, diante dessa conjuntura, certos documentos sigilosos da empresa Uber vieram à tona, confluindo para a urgência de regulamentação, no ordenamento jurídico brasileiro, das práticas corporativas muitas vezes nebulosas dessas Big Techs.
Estopim
A incongruência entre os preceitos difundidos pela alta cúpula da empresa Uber e suas práticas turvas foi manifestamente atestada com o vazamento de mais de cento e vinte mil documentos sigilosos da empresa, incluindo e-mails, mensagens de texto via operadoras de celular e WhatsApp, bem como relatórios internos da plataforma entre 2013 e 2017, intitulados Uber Files. Estes documentos foram vazados ao Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) – o qual inclui jornalistas de renome ligados ao The Guardian e ao Le Monde, por exemplo – e revelados em 10 de julho deste ano.
De acordo com a reportagem, a empresa teria interferido na legislação de diversos países da Europa para impulsionar sua expansão internacional. Nessa monta, membros da direção da Uber, principalmente o seu então CEO, Travis Kalanick, se encontraram com pelo menos seis dirigentes centrais da geopolítica mundial com o intuito de acelerar o lobby em seus países. Foram citados Joe Biden (à época vice-presidente americano), Emmanuel Macron (então ministro da economia da França) e Benjamin Netanyahu (então primeiro-ministro de Israel). Membros da Comissão Europeia também foram procurados pela organização.
Em 2014, Kalanick teria se encontrado ao menos quatro vezes com Macron, numa tentativa de iniciar uma expansão europeia, começando pela França. Com o lançamento do UberPop no país (versão que oferece corridas a preços mais baixos no app), o então ministro teria prometido alterar a legislação francesa a fim de permitir a operação da companhia mesmo após a explosão de protestos de taxistas franceses contra o aplicativo. Pouco tempo depois, Macron assinou uma legislação regulamentando o cadastro de motoristas para a empresa americana.
Também foi apurado conforme a documentação revelada pelo ICIJ, que a Uber buscou deslocar a atenção de suas obrigações tributárias ao auxiliar autoridades a cobrar impostos de seus motoristas ao mesmo tempo em que enviava seus lucros para paraísos fiscais, como Bermudas. A alta cúpula da Uber, nesse contexto, ativou o que intitulavam de “kill switch”, tendo por objetivo a eliminação do acesso aos funcionários da empresa aos seus sistemas para impedir que as autoridades apreendessem provas durante operações em escritórios de pelo menos seis países.
Ademais, extrai-se da documentação que a Uber estimulou violência contra os próprios motoristas, que eram o público-alvo de manifestações de taxistas em diversos países, como França, Itália, Bélgica, Espanha e Holanda. Esse contexto de embate entre as categorias também foi vivenciado no Brasil. Para alguns executivos, esses casos eram uma forma de forçar a regulamentação dos serviços propostos pela empresa e de ajudar a popularizar o aplicativo: “Acredito que valha a pena”, escreveu Kalanick. “Violência garante sucesso. E esses caras [taxistas] devem ser confrontados, não?”.
Através de nota, em resposta à reportagem do The Guardian, a Uber advoga que “milhares” de livros, reportagens e “até série de televisão” foram feitos para contar a história da companhia. “Esses erros levaram ao mais infame acerto de contas da América corporativa. Isso levou a um enorme escrutínio público, processos, investigações de governos e a demissão de diversos executivos.”
Ainda de acordo com a nota, a contratação de Dara Khosrowshahi, atual diretor-geral da Uber, veio para mudar a empresa, determinar uma nova cultura de trabalho e metas sustentáveis. Segundo a Uber, compliance, código de ética e governança foram criados dentro da companhia. “Quando dizemos que a Uber é uma companhia diferente hoje, dizemos isso literalmente: 90% dos funcionários atuais chegaram à empresa depois de Dara.” “Não vamos e não iremos dar desculpas por comportamentos passados que claramente não estão de acordo com nossos valores atuais. Em vez disso, pedimos ao público que nos julgue pelo que fizemos nos últimos cinco anos e pelo que faremos nos próximos anos”, acrescenta.
Por este prisma “lobbístico” de pressão a países do centro capitalista, alterando leis e relações trabalhistas de outrora, vem à tona um importante questionamento: e o que a Uber e empresas análogas (Ifood, Glovo, Rappi, 99 etc.) fizeram com a política e a gestão relativas aos seus algoritmos?
A ditadura virtual
É fato indubitável que a prestação de serviços realizada através dos aplicativos está operando uma transformação de grande significado na forma de organizar, regular, controlar e gerir o seu fornecimento à clientela. Um dos elementos basilares que caracterizam estes novos modelos econômicos é a gestão algorítmica das atividades e da informação. Os algoritmos são, provavelmente, a questão mais turva e mais importante para compreender a deterioração das garantias laborais que os trabalhadores conquistaram, principalmente, ao longo do século XX.
Além disso, é de suma importância buscar o cerne dos objetivos dessas empresas no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais tanto de seus clientes quanto de seus prestadores de serviço quando da utilização dessa gestão algorítmica de informações: não se sabe ao certo o que as empresas fazem ao manipularem os dados dos trabalhadores e dos clientes – pelo menos não oficialmente.
Os Uber Files suscitam, para além do expediente de pressão sobre políticos e instituições públicas, um acobertamento das reais intenções dessas plataformas pelos líderes que transitaram – e ainda transitam – no poder. Os dados são o novo petróleo e ditaduras costumam acobertá-los, manipulá-los, alterá-los e desfazê-los.
No que tange a revides contra a diluição dos direitos trabalhistas perpetrados pela Uber e empresas de plataforma a ela semelhantes, vale ressaltar que já existem algumas mudanças percebidas em determinados ordenamentos jurídicos localizados – principalmente na Europa, como é o caso do Reino Unido e da Espanha. E isso ocorreu antes das revelações feitas pelo ICIJ.
No Reino Unido, já vigora o incremento da decisão de sua Suprema Corte em relação à concessão de direitos trabalhistas aos uberizados, determinando a tais trabalhadores o direito a salário mínimo e a férias remuneradas. Já no caso espanhol, o governo, sindicatos e empregadores decidiram introduzir na legislação trabalhista que os entregadores de empresas de plataforma, como a Uber Eats, sejam considerados assalariados.
É importante a movimentação dos países que vão ao encontro da garantia laboral dos precarizados, mas é a China que parece ter compreendido mais a fundo a problemática pertencente às plataformas digitais: diante da opacidade de informações, as autoridades chinesas buscam redefinir a legislação de algoritmos. Há dois anos, o Estado chinês tem sido particularmente intransigente com o setor de empresas de tecnologia, que monitora por meio de práticas até então amplas. Várias grandes empresas foram multadas por abusos em termos de proteção de dados pessoais, concorrência e direito dos usuários. Em meados de 2022, a empresa Didi, líder em veículos com motoristas (tal qual a Uber), foi multada em 1,215 bilhão de dólares por violar as regras de proteção de dados.
De acordo com uma lei aprovada em março deste ano, as empresas devem garantir ao órgão regulador chinês que seus algoritmos se enquadrem dentro do marco regulatório do país. “No momento, as autoridades não pediram explicitamente para que as empresas modifiquem seus algoritmos”, explica Angela Zhang, especialista em direito chinês na Universidade de Hong Kong, à AFP. “Os reguladores, no momento, estão coletando informações”, acrescenta.
O governo Lula e a gestão dos dados pessoais
Partindo desse cenário, foi percebido que, em diversos momentos, Lula – principalmente desde que saiu da prisão, em 2019 – e o Partido dos Trabalhadores (PT) têm defendido, através de diversas declarações, uma espécie de arcabouço regulatório que contemple e proteja os trabalhadores uberizados do Brasil. Nesse sentido, Lula comentou no primeiro discurso após a sua soltura: “o povo tá passando fome, o povo tá desempregado, o povo não tem mais trabalho de carteira assinada, o povo tá trabalhando de Uber, o povo tá trabalhando de bicicleta pra entregar pizza”.
O programa de governo apresentado pelo ex-presidente e sua equipe de campanha propõe que sejam realizadas negociações visando incluir trabalhadores uberizados na proteção da lei trabalhista brasileira. A campanha de Lula e o PT querem trazer para o seu espectro a simpatia dos cerca de 1,4 milhão de profissionais que hoje prestam serviços para empresas de aplicativo, sejam as de entrega ou as de transporte. A disputa contra o atual presidente por esses possíveis eleitores é considerada um ponto crucial na campanha petista.
“Acho que a prioridade número um para os trabalhadores de aplicativos é a inclusão previdenciária. Ele não tem auxílio de saúde; se ficar inválido, não tem proteção social; se sofrer acidente, não tem proteção. Então, é um trabalhador totalmente desamparado”, advogou um dos formuladores da proposta que consta no programa. “A Espanha acabou de fazer isso [legislar sobre os direitos dos uberizados], para que o cara que trabalha no Uber tenha o mínimo de garantia, o cara que entrega alimento tenha o mínimo de garantia. Tem que ter descanso semanal remunerado, jornada de trabalho, férias, senão ele voltou a ser escravo”, declarou o ex-presidente em meados deste ano.
É importante, logicamente, que um(a) candidato(a) à Presidência da República se atente para as garantias trabalhistas dos prestadores de serviço precarizados, especialmente quando se trata de uma relação de trabalho muito pouco contemplada nos ordenamentos jurídicos mundo afora. O novo governo Lula, para além da legítima proteção jurídica que almeja entregar ao trabalhador uberizado em relação aos seus direitos laborais – como o fizeram alguns de seus contemporâneos europeus –, precisaria se aprofundar na complexidade do tema mirando-se um pouco mais no exemplo da China. Nesse contexto de volta ao poder, vão se deparar, ininterruptamente, com um sensível e complexo update no capitalismo: os algoritmos que tudo veem e controlam e uma imensa quantidade de dados pessoais para administrar.
Como citar este artigo:
NETO TAVARES. A ditadura do algoritmo e o governo Lula. História da Ditadura, 6 fev. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-ditadura-do-algoritmo-e-o-governo-lula. Acesso em: [inserir data].
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