A reabertura da sede do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro
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  • Foto do escritorBárbara Goulart

A reabertura da sede do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

No dia 4 de setembro de 2023, numa segunda-feira calorenta de um inverno quase verão do Rio de Janeiro, o Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM/RJ) reabriu sua sede na Rua General Polidoro, em Botafogo. Fechada desde 2019 por causa de problemas estruturais do prédio, seus arquivos foram também guardados em local mais seguro por medo do que poderia acontecer durante o governo Bolsonaro (2019-2022). O Grupo sobreviveu ao governo de extrema-direita e à pandemia de Covid-19, que obrigou suas reuniões quinzenais a se tornarem virtuais e menos frequentes. Tendo a maioria de seus militantes mais de sessenta anos e somando-se os diversos impactos físicos e subjetivos em seus corpos desde a ditadura, era mais que necessário ficar em casa.


Mural na sede do GTNM/RJ com imagem de desaparecidos políticos
Mural na sede do GTNM/RJ com imagem de desaparecidos políticos. Acervo do GTNM/RJ fotografado pela autora.

No corredor estreito que leva até a sala, realizou-se uma homenagem a Luiza Miriam Martins, militante do grupo que faleceu recentemente. Sua família estava presente para inaugurar um retrato da mãe e uma placa, penduradas em uma parede. Discursos emocionados foram feitos por seus dois filhos, lembrando a importância do GTNM/RJ na vida de Luiza. As reuniões do grupo eram um espaço de conforto e conversa entre amigos, ajudando na saúde emocional de uma mulher com uma trajetória de vida difícil. Professora aposentada e militante feminista, foi filiada ao PCdoB em sua juventude e viu seis de seus familiares serem presos pela ditadura. Com o início da pandemia, Luiza teve dificuldades em acompanhar as reuniões virtuais, perdendo o espaço de convivência com amigos militantes.


Homenagem a Luiza Miriam Martins na sede do GTNM/RJ.
Homenagem a Luiza Miriam Martins na sede do GTNM/RJ. Acervo do GTNM/RJ fotografado pela autora.

Logo depois, o presidente do Grupo, o historiador Rafael Maul, leu um poema de sua autoria. Apesar de ser apresentado como presidente, Rafael sempre insiste em lembrar que é uma diretoria colegiada que preside o GTNM/RJ. De fato, seu núcleo é composto por mulheres, tendo como nomes mais famosos Cecilia Coimbra, Victória Grabois, Elizabeth Silveira e Silva e tantas outras que lutam há décadas por justiça a seus amigos e familiares, mortos durante a ditadura.


Em uma conversa com Elizabeth, antiga presidente do Grupo, ela comentou que o GTNM/RJ “não tinha chance nem de existir” durante o governo Bolsonaro e, por isso, comemorou a vitória de Lula. Porém, ela lembrou: “eu não sou governo. Eu sou familiar e representante do Grupo Tortura Nunca Mais”. Assim, pontuou que a luta do Grupo é constante e feita sem vínculos com partidos políticos. Em outro momento da conversa, Rafael Maul recordou que até hoje não foi cumprida a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que responsabiliza os militares pelos crimes cometidos no combate à Guerrilha do Araguaia. Maul também falou sobre a falta de espaços de memória em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos da ditadura.


Rafael Maul e as imagens de desaparecidos políticos presente na sede do GTNM/RJ
Rafael Maul e as imagens de desaparecidos políticos presente na sede do GTNM/RJ. Acervo do GTNM/RJ fotografado pela autora..

Marquei uma conversa com Rafael Maul para a semana seguinte. Na ocasião, ele comentou sobre como a pandemia e a eleição de Jair Bolsonaro afetaram as atividades do Grupo. Esse foi o seu relato:


Quando eu cheguei aqui, o arquivo já tinha esse formato de pastas pretas com essa ‘logozinha’ do grupo em amarelo. Eu cheguei em 2005. Eu tinha me formado, estava no mestrado, e estava desempregado! E aí foi o Badaró [o historiador Marcelo Badaró Mattos] que me falou: ‘olha, o pessoal do Grupo Tortura Nunca Mais está precisando de gente para trabalhar lá’. Eu também estava em uma transição de militância, então também foi bom. Chegar aqui para trabalhar também já me deu um outro sentido da militância, mas eu vim para trabalhar mesmo, como estagiário, focalizado no arquivo. Eu não era um arquivista: meu trabalho era organizar um pouco o arquivo numa lógica em que já estava estruturado, além de receber e orientar as pessoas que vinham pesquisar por motivos diversos.

É bom lembrar que isso aqui é um arquivo de uma organização que nunca teve muitos financiamentos. Os financiamentos foram muito específicos e, de fato, a gente nunca teve nenhum financiamento para o arquivo. Então, a gente tem uma organização amadora mesmo. Ela vai se dando pelo empenho de algumas militantes e, depois, com o auxílio de alguns estagiários. Às vezes, alguma rubrica que entrava para o projeto ajudava em algumas coisas do arquivo. Já tiveram duas situações assim. Uma se perdeu, na verdade. A gente chegou a ter um programa no computador em que eu ia inserindo o que existia no arquivo e o programa dava uma certa organizada nisso. E, na outra coisa que a gente teve financiamento, foi para a digitalização de uma parte do acervo. Isso entrou como rubrica de um projeto maior voltado para atendimento clínico e jurídico. 

Alguns arquivos do GTNM/RJ.
Alguns arquivos do GTNM/RJ. Acervo do GTNM/RJ fotografado pela autora.

Quando eu entrei aqui, quem era presidente era a Bete [Elizabeth Silveira e Silva, irmã de Luiz René Silveira e Silva, desaparecido na Guerrilha do Araguaia]. Eu não conhecia a Bete – na verdade, eu nunca tinha vindo no Grupo. Eu nunca trabalhei com ditadura na faculdade. Foi muito engraçado porque, quando eu entrei, a Bete falou assim: ‘Olha, isso aqui é uma organização política. Você vai trabalhar, mas para trabalhar aqui você tem que se apropriar do nosso debate. Então faz parte do trabalho participar das reuniões toda segunda-feira à noite!’. E aí eu olhei para ela e falei: ‘tá ótimo!’. Passei, eu acho, cinco anos fazendo ata das reuniões depois disso! [risos]

E aí, o que eu fazia, na verdade? Eu quase não abri entrada nova. Eu ia pegando o material que chegava, ia colocando nas entradas e ia revendo o material que já estava dentro das pastas, para ver o que tinha duplicado. Teve um momento em que a gente teve uma indecisão, que foi minha também. Foi uma indecisão bem no momento anterior à gente ser organizado digitalmente mesmo: o que fazer com documentos que faziam sentido para mais de uma pasta? A gente xerocava e duplicava. Isso dava um trabalho...

De qualquer maneira, a gente ainda tinha uma concepção muito de clippings de jornal também. Tinha muita entrada que era clipping de jornal e também coisas que eram mais fundamentais sobre o grupo, ligadas à memória do grupo, depoimentos de ex-presos, por exemplo. Havia alguns depoimentos dados para o grupo, mas muitos eram coisas de jornal que saíam de ex-presos que a gente separava e guardava. Eram coisas que a imprensa noticiava e que eram ligadas à luta do grupo mais diretamente. Outras menos diretamente, mais ligadas ao debate sobre Direitos Humanos, sobre violência na favela ou violência policial, por exemplo. Na verdade, as entradas eram “Violência Policial Brasil” e “Violência Policial Rio de Janeiro”. Até coisas que eram de países. Aí tem do mundo inteiro: Timor Leste, tudo o que é Cone Sul, tudo o que é América Latina, Guatemala, Honduras... Tem pastas sobre tudo isso. A maior parte vinha de clippings de jornal mesmo. Só que volta e meia a gente tinha um documento que era, por exemplo, um documento de comunicação do grupo com organizações desses países ou com organizações de Direitos Humanos do Brasil. Se chegava um e-mail que era de uma galera de Honduras, a gente botava lá na pasta de Honduras. 

Alguns arquivos do GTNM/RJ.
Alguns arquivos do GTNM/RJ. Imagem: Acervo do GTNM/RJ fotografado pela autora.

Então, o que acontecia – e eu acho que faz parte do nosso amadorismo – é que muitas vezes o material ficava um pouco mesclado. Ficava entre uma hemeroteca de clippings temáticos, e documentos outros, de correspondência de grupos, de relatórios, que, às vezes, mandavam para a gente – isso nas pastas mais genéricas.

E aí tem as pastas que acompanham mais a luta do grupo. Então, por exemplo, as Medalhas de Resistência [Medalha Chico Mendes de Resistência, entregue todo ano pelo GTNM/RJ para homenagear grupos ou indivíduos ligados à temática dos Direitos Humanos], Grupo Tortura Nunca Mais na imprensa, tem os textos da Cecília [Cecília Coimbra, membro da diretoria, foi presa no DOI-CODI durante a ditadura], inauguração de logradouro público [ruas inauguradas com nomes de perseguidos pela ditadura militar]. 

A verdade é que em 2018, quando Bolsonaro ganhou, a gente fez um movimento de retirada de muita documentação daqui de dentro. Hoje a gente pode falar, porque estamos retornando. Isso não foi algo só do Grupo: foi uma certa rede, que já existia, mas que se fortaleceu naquele momento também. Uma das iniciativas foi isso de retirar parte da documentação. Então tem documentação aqui, por exemplo, de memória nossa, uma parte dessa documentação foi retirada. A gente acabou não retirando a documentação de mortos e desaparecidos porque a maior parte dessa documentação já estava toda digitalizada e uma parte estava sistematizada pela Comissão de Reparação do Rio – uma comissão do Rio que o Grupo Tortura Nunca Mais participou. A gente tinha assento mesmo de avaliação. Eu acho que as pessoas que ficaram na avaliação foram Bete e Victória [Victória Grabois, membro da diretoria do Grupo, perdeu o pai Maurício Grabois e o irmão André Grabois, mortos na Guerrilha do Araguaia].    

Esse é o nosso acervo. Temos documentos também sobre as “Diretas Já”, a Constituinte... Sobre a Constituinte, tem vários debates que estão colocados. Um deles é sobre o projeto de lei que o grupo fez naquele momento para tipificar a tortura como crime de lesa humanidade, mas aí a gente teve uma derrota. A tortura entrou na Constituição, mas depois a regulamentação não foi muito o que se pretendia – mas isso é um outro debate. Mas tem esse tipo de entrada, ligada à história do grupo. A gente tem documentação sobre agentes da ditadura, e documentação sobre pessoas ou grupos que foram homenageados com a Medalha, mas que tem elementos mais específicos. Então, por exemplo, violência urbana e policial no Rio de Janeiro, a gente tem coisas específicas sobre a Chacina de Acari, a Chacina da Candelária. Então tem algumas coisas que saem desse lugar mais geral. Porque também são processos que o grupo acompanhou de várias formas.

Quem acompanhou muito isso foram Carmem e Victória, porque a Carmem também é mãe de uma pessoa assassinada pelo Estado, na verdade dentro de um quartel [Carmem Lapoente da Silveira, mãe do cadete Márcio Lapoente, morto em 1990, na Academia Militar das Agulhas Negras]. Também tem uma entrada específica sobre ele, sobre o cadete Lapoente. A Carmem é uma pessoa super na dela, mas ela é na verdade uma referência para o Brasil, para tudo isso. Até hoje, quando coisas acontecem, ela é contactada. Então quando o filho dela foi assassinado, ela veio para cá logo depois e se tornou um pouco uma referência. Ela foi fazendo parte também de uma rede de mães atingidas pela violência do Estado. 

Uma coisa que eu acho que era importante e hoje em dia não está rolando muito.... Hoje tem a ver com a falta de organização do acervo, mas antes eu acho que tinha a ver com uma questão política, de conjuntura. Inicialmente, de 2005 a 2010, pelo menos, a gente recebia muita gente que vinha pesquisar aqui. Toda semana, praticamente, tinha alunos de escola pública para pesquisar, alunos de particulares também, a galera vinha fazer entrevista, ver vídeo. Assistiam o VHS ali! A gente tinha um acervo de VHS. Não era enorme, mas era de boa qualidade. O acervo já foi digitalizado. Na verdade, o Marcelo Zelic [pesquisador especializado em Direitos Humanos e ditadura, voltado para a defesa dos povos indígenas], que faleceu, digitalizou tudo, passou para DVD e subiu na memória. Eu o ajudei um pouco a organizar. Os acervos digitalizados pelo Armazém da Memória foram os de audiovisual. Por nós, foi digitalizado o acervo de mortos e desaparecidos, os arquivos de todos os jornais do Grupo, os dossiês do Brasil Nunca Mais.

Convido então todos os pesquisadores a conhecerem o acervo do Grupo e acompanharem nossas atividades.

Para mais informações, visite o site https://www.torturanuncamais-rj.org.br/


 

Como citar este artigo:

GOULART, Bárbara. A reabertura da sede do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. História da Ditadura, 4 dez. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-reabertura-da-sede-do-grupo-tortura-nunca-mais-do-rio-de-janeiro. Acesso em: [inserir data].

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