A hospedagem da barbárie em um Airbnb
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  • Foto do escritorMariluci Cardoso de Vargas

A hospedagem da barbárie em um Airbnb

Atualizado: 4 de out. de 2022

Nos primeiros dias de agosto de 2022, uma denúncia ecoou no Twitter: a casa onde funcionou o Dopinha de Porto Alegre, um dos lugares de tortura e detenção clandestina durante a ditadura civil-militar brasileira, estava cadastrada no Airbnb como imóvel a ser alugado por hóspedes na capital do Rio Grande do Sul. Este texto busca analisar a discussão acadêmica acerca dos patrimônios difíceis ou sombrios, apresentar as vozes da ditadura que se fizeram ouvir nos últimos anos para que o local seja patrimonializado e as tensões para que seja transformado em um memorial sobre o terrorismo de Estado da ditadura civil-militar que se estendeu entre os anos 1960 e 1980 no Brasil.


Casa onde funcionou o Dopinha de Porto Alegre. Reprodução.

Abrigos sombrios dos passados recentes como lugares de memória e consciência


A ressignificação de lugares que serviram como centros clandestinos de detenção ilegal, tortura ou execução durante as ditaduras militares do Cone Sul (isto é, a transformação de um local utilizado no passado para o exercício de violações de direitos e violências em um local de conhecimento público dessas práticas e de rememoração do que deve ser repudiado pela sociedade) é uma das medidas de responsabilidade dos Estados que se propõem a superar legados de extrema violência. Tais Estados, por sua vez, devem se prestar: 1) ao reconhecimento das graves violações de Direitos Humanos; 2) à reparação das pessoas submetidas a tratamentos cruéis e degradantes por agentes estatais; 3) ao alerta à sociedade quanto ao repúdio às práticas de violência e terror de Estado em uma perspectiva de (re)construção e consolidação do Estado democrático de direito.


Nesse sentido, desde 2012, os países do Mercosul, incluindo o Brasil, firmaram um compromisso que resultou no documento Princípios Fundamentais para as Políticas Públicas sobre Sítios de Memória. Para Déborah Neves, este documento visa assegurar que “os sítios sejam preservados com a finalidade de servir como prova judicial, a partir de estudos periciais, e principalmente impedir que sejam realizadas modificações estruturais que alterem seu valor histórico”. Neves comenta que locais identificados e reconhecidos pelos poderes públicos por serem portadores de algum componente memorial nem sempre são patrimonializados por seu valor histórico. Em alguns casos, ela avalia, a identificação e o tombamento são realizados com base na relevância arquitetônica do imóvel em detrimento de outros valores tão importantes quanto este. Os processos de patrimonialização de heranças sociais advindas de catástrofes geradoras de traumas, impassíveis de despertarem sentimentos de orgulho e exaltação, tendem a ser um desafio para gestoras e gestores públicos. Afinal, qual município, estado ou país deseja acumular como patrimônio conjuntos de bens que atestam partes desonrosas de sua história?

Segundo Cristina Meneguello, “os patrimônios difíceis atestam a ocorrência de regimes de exceção promovidos pelo Estado, bem como a atuação de grupos na perseguição e na tentativa de aniquilação de outros [...] [e] buscam evitar a ocultação dos fatos e a desacreditação das vítimas, esclarecendo as sociedades sobre seu passado recente”. A especificidade de objetos e locais dessa natureza a serem patrimonializados e, quiçá, incluídos em um percurso do chamado dark tourism está em tornar visíveis situações e práticas de momentos históricos em que regimes de força vigoraram às custas de brutalidades, mortes e desaparecimentos forçados. Tais ações, em um contexto de superação do legado desumanizante, tendem a ser esquecidas, ocultadas, apagadas, relativizadas ou negadas.


Os sentidos atribuídos aos bens materiais ou imateriais provenientes de conjunturas marcadas por guerras, ditaduras, conflitos armados internos, sistemas concentracionários e segregacionistas dependem dos elementos que compõem a reestruturação de um pacto social favorável à harmonia coletiva. Segundo os estudos acerca da justiça de transição, passada a conjuntura de violência extrema alguns elementos são necessários para a conciliação pública, tais como: a) As negociações para a pacificação; b) o esclarecimento das circunstâncias das violações de Direitos Humanos; c) as possibilidades de responsabilizações de autores de crimes contra a humanidade que congreguem reformas institucionais; d) as políticas públicas de memória e reparação para uma maior visibilidade e circularidade do testemunho do horror. Sendo assim, a presença das vozes dos que estiveram lá é imprescindível para determinar a alegórica linha fronteiriça entre a selvageria e o bem-estar social.

A rememoração da barbárie, de seus locais e a educação em Direitos Humanos no Brasil


No Brasil, as políticas públicas de Direitos Humanos como bússola regulatória da qualidade da democracia – sobretudo após a Constituição Federal de 1988, marco importante para a consolidação do Estado de direito – estiveram (e estão) nas agendas políticas de alguns grupos partidários e organizações da sociedade civil. Operadoras e operadores dessas políticas estatais têm buscado demarcar as diferenças entre o sistema republicano e a ditadura. Ao constatar que a gestão do passado recente seria morosa, conflituosa e sem persecução penal pela forma como foi estruturada a sua transição em torno dos crimes da ditadura, grupos de pessoas atingidas pela repressão não se furtaram em registrar, catalogar e publicizar vestígios testemunhais das barbáries cometidas pela ditadura.

O Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) indica mais de duzentos e trinta locais, clandestinos ou institucionalizados, onde ocorreram graves violações de Direitos Humanos durante os anos de ditadura. Isso não significa que todos os espaços marcados pela catástrofe tenham sido identificados. Ainda em 2022, poucos lugares são amplamente conhecidos por estes fatos, sendo o Memorial da Resistência de São Paulo, onde funcionou o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS/SP) entre 1940 e 1983, o único ressignificado. Se antes o Departamento servia como estrutura para monitorar a oposição e a resistência à ditadura, agora, como arquivo e memorial, é um espaço de ampliação do conhecimento sobre os anos de repressão por meio de exposições, cursos, palestras, publicações de pesquisa e manutenção de biblioteca e acervo.

O caso do Dopinha em Porto Alegre/RS


No Rio Grande do Sul, dentre os trinta e nove locais listados como espaços onde ocorreram graves violações de Direitos Humanos pelas investigações da CNV, está o Dopinha ou Dopinho, um prédio privado do final dos anos 1920, onde práticas desumanas foram realizadas por agentes a serviço da ditadura. O Dopinha foi identificado, ainda na década de 1960, durante as investigações do Ministério Público Estadual acerca das circunstâncias da morte que ficou conhecida como “o caso das mãos amarradas”, devido à forma como foi encontrado o corpo do sargento paraense Manoel Raimundo Soares no Rio Jacuí, em 1966. Desde então, para além dos inquéritos abertos, as vozes de familiares e ativistas de Direitos Humanos não se calaram para denunciar os crimes cometidos entre 1964 e 1966 na casa localizada na rua Santo Antônio, nº 600, no bairro Bom Fim.


Mesmo que as ocorrências no Dopinha sigam um trajeto sinuoso entre lembranças e esquecimentos, suas marcas foram expostas com maior vigor há uma década, momento em que comitês pela verdade, memória e justiça da sociedade civil formaram-se pelo Brasil a fim de fortalecer e acompanhar os trabalhos da CNV em uma perspectiva crítica.

Em 2012, o Comitê Carlos De Ré da Verdade e da Justiça em Porto Alegre passou a protagonizar uma proposta para que o Dopinha fosse desapropriado pelos poderes públicos e transformado no Centro de Memória Ico Lisbôa, em homenagem ao catarinense Luiz Eurico Tejera Lisbôa. Ico, como era chamado pelos mais próximos, foi um militante de oposição à ditadura vinculado a Ação Libertadora Nacional (ALN). Morto em 1972, foi a primeira pessoa submetida ao desaparecimento forçado durante a ditadura, tendo seus restos mortais restituídos à família em 1982.

Desde 2012, muitas negociações foram travadas entre os proprietários da casa (que indicaram interesse na venda para o Estado ou para o município), a sociedade civil e representantes do Executivo dos poderes municipal e estadual, mas o Memorial segue como um projeto não concretizado. De lá para cá, a casa sofreu diversas reformas e intervenções estruturais, como a instalação de uma piscina no pátio externo – o que compromete, por exemplo, a identidade do local-testemunho e as investigações arqueológicas. Além disso, se transformou em uma opção para hospedagem temporária no Airbnb. Embora no site de locação não constasse que o local hospedou a barbárie durante a ditadura, ao verificar que a lugar possui as marcas do sombrio passado na sua estrutura, possíveis futuros hóspedes realizaram denúncias nas redes sociais repudiando a ideia de que o imóvel poderia servir como acolhida e aconchego.



A capital do Rio Grande do Sul acumula mais de sessenta imóveis tombados pela Prefeitura, porém o Dopinha não se encontra nesse rol. A promessa de seu tombamento pelo Executivo municipal em 2014 também ficou no vácuo. Sendo assim, esta reflexão também se dirige aos poderes públicos que tiveram oportunidades de desapropriar o imóvel de valor histórico e não o fizeram.

Conteúdo testemunhal em audiovisual e marcas territoriais


Em 2014, testemunhas sobreviventes da ditadura que reconhecem o Dopinha como um sítio de memória e consciência foram reunidos em um documentário intitulado Dopinha, realizado por Juliana Borba e Luiz Paulo Teló, então estudantes de jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), e lançado na esteira dos cinquenta anos do golpe civil-militar. O curta-metragem intercalou testemunhos de pessoas atingidas pela sistemática repressiva, como Suzana Lisbôa, Carlos Heitor Furtado de Azevedo, Rafael Guimaraens; integrantes do Comitê Carlos De Ré da Verdade e da Justiça, como o músico Raul Ellwanger e a advogada Christine Rondon; o coordenador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke; e o coordenador da Comissão Estadual da Verdade, Carlos Frederico Guazzelli. Junto a fragmentos de seus relatos, foram incluídas imagens de documentos como jornais, audiovisuais cedidos pela TVE-RS e uma entrevista da pesquisadora Susel Oliveira da Rosa, professora do departamento de História da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e autora da tese Estado de exceção e vida nua: violência policial em Porto Alegre entre os anos de 1960 e 1990, defendida na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2007.

Entre falas e canções, imagens do Dopinha aparecem: uma casa vazia e um quintal descuidado, o retrato do abandono e do descaso. No ano de produção do documentário, perante as tratativas dos interessados no assunto, a casa parecia estar na iminência de ser transformada em um lugar em que as memórias sobre o local e sua história passariam a ser latentes e de acesso público, na proposta do Memorial Ico Lisbôa. Especificamente, o curta-metragem trata do caso de Manoel Raymundo Soares e das investigações que levaram os porto-alegrenses a serem informados sobre o que ocorria naquela bela residência localizada no bairro Bom Fim.

Em 2015, por iniciativa do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, seu coordenador, Jair Krischke, em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre, foi instalada uma placa na calçada localizada na frente do Dopinha, a fim de conscientizar a sociedade sobre as práticas repressivas e as graves violações de Direitos Humanos ocorridas durante a ditadura. Na placa constam as seguintes informações:








Primeiro centro clandestino de detenção do Cone Sul. No número 600 da rua Santo Antônio, funcionou estrutura paramilitar para sequestro, interrogatório, tortura e extermínio de pessoas ordenados pelo regime militar de 1964. O major Luiz Carlos Menna Barreto comandou o terror praticado por 28 militares, policiais, agentes do Dops e civis, até que apareceu no [rio] Guaíba o corpo com as mãos amarradas de Manoel Raimundo Soares, que suportou 152 dias de tortura, inclusive no casarão. Em 1966, com paredes manchadas de sangue, o Dopinha foi desativado e os crimes ali cometidos ficaram impunes.

Os dados impressos no mármore sintetizam as diversas investigações sobre o assunto realizadas pela sociedade civil e por operadores da justiça. O projeto Marcas da Memória realizou a sinalização de nove locais em Porto Alegre onde foram praticados crimes no contexto de sistemática e generalizada repressão do Estado de exceção. As marcas da barbárie destes lugares-testemunho, contudo, não se apagam pela presença das placas que caracterizam os espaços e, tampouco, são recebidas sem contestações ou tensões pela sociedade.

No caso do Dopinha, por exemplo, passados cinco anos da placa fixada, esta foi acimentada pela moradora da residência. Após a denúncia de que a inscrição havia sido retirada ou apagada por uma camada de cimento, o Ministério Público determinou que a sinalização fosse realocada no mesmo espaço do passeio público. Pelo fato do bem material ser proveniente dos recursos da administração municipal, os custos ficaram sob encargo da residente da casa. Em 2021, a placa foi novamente afixada e está à disposição das pessoas que passarem pelo endereço.


Em um de seus artigos, o historiador francês François Hartog utiliza a cidade de Berlim para pensar as relações entre o patrimônio e o tempo. Hartog adverte que um dos arquitetos responsáveis pelas mudanças na capital alemã após a reunificação, Hans Scharoun, afirmou que “não se pode ao mesmo tempo construir uma sociedade nova e reconstruir os prédios antigos”. Esta frase evidencia de maneira magistral que a reconstrução (que associo à ressignificação) dos bens de pedra e cal são produtos das mudanças dos sentimentos e dos discursos da sociedade em relação ao seu passado. Diante disso, a casa que hospedou a barbárie seguiria com suas marcas referentes ao passado sombrio ocultadas – não fossem algumas iniciativas da sociedade civil e de suas demandas aos poderes públicos. A quem servem o silenciamento, o apagamento, o esquecimento e a ocultação do ocorrido naquele espaço?

Embora o caso reforce o que já sabemos, ele não deixa de nos provocar a observar a gestão escolhida pela sociedade e pelos poderes públicos no que diz respeito a este passado recente, dificultando a guinada para um projeto nacional que respeite de fato os Direitos Humanos e permitindo que as graves violações sigam hospedadas neste país.

Vozes sobre a ditadura seguem ecoando nas ruas do bairro Bom Fim. Dias depois do fato se espalhar e do imóvel ser retirado do site de locação, cartazes de autoria não revelada apareceram em algumas paredes e postes de luz do bairro com as seguintes frases:


Quem governa a nossa memória? Dopinho. Sítio de Memória.;
Casarão rua Santo Antônio, 600 Lugar de memória Tombamento Dopinho; 
Aqui imóvel Arqui memória Jaz Dopinho Centro de torturas; 
Quem quer morar num Centro de Torturas? Tombamento Dopinho. 

As frases clamam pelo tombamento e institucionalização deste local como lugar de memória. Resta saber se as demandas serão escutadas e atendidas pelos poderes públicos ou se seguirão ignoradas até a próxima polêmica em torno do local que hospedou a barbárie.


 

REFERÊNCIAS:

BARETTA, Jocyane Ricelly. Arqueologia e a construção de memórias materiais da ditadura militar em Porto Alegre (1964-1985). Dissertação de Mestrado em História, Campinas, UNICAMP, 2015.

BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório, vol. I, Brasília, CNV, 2014.

HARTOG, François. Tempo e patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vo. 22, n. 36, p. 261-273, jul/dez, 2006.

HYPÓLITO, Bruno Kloss. Relatório Tovo: a investigação de um crime em Porto Alegre na década de 1960. Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v.2, n. 1, dez. 2010. p. 61-65.

MENEGUELLO, Cristina. Patrimônios difíceis (sombrios). In: CARVALHO, Aline; MENEGUELLO, Cristina (Org.). Dicionário temático de patrimônio: debates contemporâneos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2020. P. 245-248.

NEVES, Deborah Regina Leal. Patrimônio da ditadura. In: CARVALHO, Aline; MENEGUELLO, Cristina (Org.). Dicionário temático de patrimônio: debates contemporâneos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2020. P. 155-158.

PEREIRA, Nadine Mello. Usos do passado, usos do presente: o centro clandestino de repressão Dopinha em Porto Alegre (1964-2018). Dissertação de Mestrado em História, Porto Alegre, PPGH/UFRGS 2020.



Como citar este artigo:

VARGAS, Mariluci Cardoso de. A hospedagem da barbárie em um Airbnb. História da Ditadura, 3 out. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/ahospedagemdabarbarieemumairbnb. Acesso em: [inserir data].


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